AS
ESCRITURAS NÃO PRECISAM DA FÉ,
É
A FÉ QUE PRECISA DAS ESCRITURAS
Textos históricos quais monumentos literários, as
Escrituras dispensam os qualificativos da fé, fragmentada e perdida no
ideológico religioso, configurando-se como narrativas sobre o percurso dos
homens e das mulheres numa existência cuja natureza não definimos.
Contrariamente ao que muitos pensam, as Escrituras não
são textos que transmitam a Palavra de Deus. São textos cuidadosamente
elaborados, transmissores de vivências, propondo caminhos mediante a reflexão
inevitável sobre a problemática da existência de Deus, do Homem e da Vida. Ao
lê-los, estamos lá, não num passado reencarnacionista, em que supostamente
teríamos sido protagonistas dos factos neles descritos, isso seria muito pouco,
mas na nossa natureza. Por outras palavras, não é Deus, mas o humano o
principal protagonista, na sua vivência histórica, reflectindo sobre si mesmo.
Deus jamais se manifestaria a um indivíduo, porque não
existe ninguém com essa mercê. Porém, ser profeta ou redactor do trágico
vivencial que é o nosso, de forma a expor-nos perante nós mesmos é, parece-nos,
mais misterioso que descobrir Deus na História. Mediante as Escrituras, descobrimos que o
mistério não é Deus, mas o próprio Homem. Não pelo carácter de excepcionalidade que muitos lhe atribuem, o tal ser
superior da Criação, mas na vulgaridade quotidiana, lembrando-lhe o quanto é
limitado. Nas Escrituras, os profetas são
homens e mulheres comuns, prova de que não são seres superiores, e que Deus os escolheu
num como e num porquê que não nos diz respeito.
Temos que aceitar, a nada nos conduziria o contrário, que
somos protagonistas de contrários que se enfrentam tais como fé e não fé, amor
e ódio, verdade e mentira, guerra e paz, ciúme, intriga e falsidade, verdade…também
somos ainda aqueles, os tais que procuram uma explicação para a origem de todas
as coisas, criando mitos, parábolas e alegorias, deuses e demónios,
superstição, holocaustos, dádivas, preceitos, orações, cânticos. Tudo isso
encontramos nas Escrituras com o propósito de nos fazer despertar para a grande
e eterna questão “Quem sou eu?”
Não há homens
nem mulheres imunes a esta questão, também não há espectadores. Contracenamos,
todos. Por mais desunidos que nos sintamos, representamos o nosso papel. Aquilo a que chamamos diferenças culturais e
de fé são leituras que polarizam e coloram a nossa vida, porém só fazem sentido
se se perceber que é na pluralidade e na tolerância incondicionais que se
constrói o fresco que colora os céus. Por isso, não é o que a Escritura diz que
é complexo, mas como percebê-la na intemporalidade, isto é, em todos os
momentos da História do Homem.
Conferindo ao leitor uma liberdade total na sua
apreciação, as Escrituras são a voz de uma pedagogia social, numa constante
releitura, com o fito de mais e melhor
se integrarem nas grandes questões existenciais dos homens e das mulheres.
Efectivamente, para ler as Escrituras não precisamos da
fé. Os ateus são, talvez, os seus mais assíduos leitores, os mais críticos, os
mais problematizantes. Despidos das ideologias religiosas, cépticos quanto às
mesmas e criticando-as incisivamente, têm uma extraordinária capacidade de
distanciamento dos textos, o que muito os favorece enquanto leitores; e aos
textos também, uma vez que os encaram como realmente são: livros de História: a
Pré-História e a História de um povo, Israel, no caso da Bíblia Hebraica; o
percurso doutrinário de um profeta judeu com uma mensagem estranha, um
Evangelho, no caso da Bíblia Cristã.
Todavia, há, também, o lado positivo do crente. Se,
lamentavelmente, é verdade que se pode tirar do texto o que se quer, o que é
mau para quem lê e para o texto, e estamos em presença de um mau leitor, pode-se,
igualmente, transpô-lo para a vivência do momento, particular e individual, procurando
nele a resposta avisada e fiável para um problema. Assim, os textos não são
intemporais mercê do punho perspicaz de um redactor mágico e aventureiro, mas
em virtude de uma resposta concreta, atemporal de um sábio que, perspicazmente,
nos ensina que somos os mesmos, muito embora noutros tempos, com outras
experiências. É que as Escrituras têm que ser utilitárias, transversais a todas
as épocas, caso contrário tornar-se-iam meros textos opacos.
Quanto à fé, esta não deve estar dirigida para o texto,
mas para Deus. Isto é, o texto é caminho para Deus mediante a vivência presente
do Homem. É à História que devemos perguntar por Deus; é aqui e agora que
devemos perceber a Sua revelação. Não há mais Deus no passado do que hoje; há
Deus todo, em todas as épocas.
As Escrituras protagonizam de forma objectiva os nossos
mais recônditos pensamentos, tal como os comportamentos, quer sociais quer
individuais, em qualquer espaço e em qualquer tempo.
Quando alguns criticam a Bíblia Hebraica e a Bíblia
Cristã, alegando que Deus nunca poderia ser um Ser perfeito e de suma bondade,
porque permitte comportamentos por vezes tão ignóbeis, isso significa não perceber
que as Escrituras são também a descrição de um processo de crescimento mediante
qualquer coisa a que chamamos livre-arbítrio, que não somos autómatos,
conferindo-nos a responsabilidade dos nossos feitos. Este Deus da Aliança é um
Ser que prima pela liberdade. Essa Aliança é um contrato exitencial,
mostrando-nos que a vida se nos apresenta com inúmeras provas, a primeira e a
maior de todas é a da fé de que Abrâao foi o exemplo maior.
Quem sabe, se mais cedo do que pensamos, a fé encontrará
nas Escrituras a liberdade essencial que mudará definitivamente o rumo da
História, rumo à paz universal.
Margarida Azevedo
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home