quinta-feira, dezembro 01, 2016


AS ESCRITURAS NÃO PRECISAM DA FÉ,

É A FÉ QUE PRECISA DAS ESCRITURAS

 

            Textos históricos quais monumentos literários, as Escrituras dispensam os qualificativos da fé, fragmentada e perdida no ideológico religioso, configurando-se como narrativas sobre o percurso dos homens e das mulheres numa existência cuja natureza não definimos.

            Contrariamente ao que muitos pensam, as Escrituras não são textos que transmitam a Palavra de Deus. São textos cuidadosamente elaborados, transmissores de vivências, propondo caminhos mediante a reflexão inevitável sobre a problemática da existência de Deus, do Homem e da Vida. Ao lê-los, estamos lá, não num passado reencarnacionista, em que supostamente teríamos sido protagonistas dos factos neles descritos, isso seria muito pouco, mas na nossa natureza. Por outras palavras, não é Deus, mas o humano o principal protagonista, na sua vivência histórica, reflectindo sobre si mesmo.

            Deus jamais se manifestaria a um indivíduo, porque não existe ninguém com essa mercê. Porém, ser profeta ou redactor do trágico vivencial que é o nosso, de forma a expor-nos perante nós mesmos é, parece-nos, mais misterioso que descobrir Deus na História.  Mediante as Escrituras, descobrimos que o mistério não é Deus, mas o próprio Homem. Não pelo carácter de excepcionalidade que muitos lhe atribuem, o tal ser superior da Criação, mas na vulgaridade quotidiana, lembrando-lhe o quanto é limitado.  Nas Escrituras, os profetas são homens e mulheres comuns, prova de que não são seres superiores, e que Deus os escolheu num como e num porquê que não nos diz respeito.

            Temos que aceitar, a nada nos conduziria o contrário, que somos protagonistas de contrários que se enfrentam tais como fé e não fé, amor e ódio, verdade e mentira, guerra e paz, ciúme, intriga e falsidade, verdade…também somos ainda aqueles, os tais que procuram uma explicação para a origem de todas as coisas, criando mitos, parábolas e alegorias, deuses e demónios, superstição, holocaustos, dádivas, preceitos, orações, cânticos. Tudo isso encontramos nas Escrituras com o propósito de nos fazer despertar para a grande e eterna questão “Quem sou eu?”

            Não há homens nem mulheres imunes a esta questão, também não há espectadores. Contracenamos, todos. Por mais desunidos que nos sintamos, representamos o nosso papel.  Aquilo a que chamamos diferenças culturais e de fé são leituras que polarizam e coloram a nossa vida, porém só fazem sentido se se perceber que é na pluralidade e na tolerância incondicionais que se constrói o fresco que colora os céus. Por isso, não é o que a Escritura diz que é complexo, mas como percebê-la na intemporalidade, isto é, em todos os momentos da História do Homem.

            Conferindo ao leitor uma liberdade total na sua apreciação, as Escrituras são a voz de uma pedagogia social, numa constante releitura, com o fito de mais e  melhor se integrarem nas grandes questões existenciais dos homens e das mulheres.

            Efectivamente, para ler as Escrituras não precisamos da fé. Os ateus são, talvez, os seus mais assíduos leitores, os mais críticos, os mais problematizantes. Despidos das ideologias religiosas, cépticos quanto às mesmas e criticando-as incisivamente, têm uma extraordinária capacidade de distanciamento dos textos, o que muito os favorece enquanto leitores; e aos textos também, uma vez que os encaram como realmente são: livros de História: a Pré-História e a História de um povo, Israel, no caso da Bíblia Hebraica; o percurso doutrinário de um profeta judeu com uma mensagem estranha, um Evangelho, no caso da Bíblia Cristã.

            Todavia, há, também, o lado positivo do crente. Se, lamentavelmente, é verdade que se pode tirar do texto o que se quer, o que é mau para quem lê e para o texto, e estamos em presença de um mau leitor, pode-se, igualmente, transpô-lo para a vivência do momento, particular e individual, procurando nele a resposta avisada e fiável para um problema. Assim, os textos não são intemporais mercê do punho perspicaz de um redactor mágico e aventureiro, mas em virtude de uma resposta concreta, atemporal de um sábio que, perspicazmente, nos ensina que somos os mesmos, muito embora noutros tempos, com outras experiências. É que as Escrituras têm que ser utilitárias, transversais a todas as épocas, caso contrário tornar-se-iam meros textos opacos.

            Quanto à fé, esta não deve estar dirigida para o texto, mas para Deus. Isto é, o texto é caminho para Deus mediante a vivência presente do Homem. É à História que devemos perguntar por Deus; é aqui e agora que devemos perceber a Sua revelação. Não há mais Deus no passado do que hoje; há Deus todo, em todas as épocas.

            As Escrituras protagonizam de forma objectiva os nossos mais recônditos pensamentos, tal como os comportamentos, quer sociais quer individuais, em qualquer espaço e em qualquer tempo.

            Quando alguns criticam a Bíblia Hebraica e a Bíblia Cristã, alegando que Deus nunca poderia ser um Ser perfeito e de suma bondade, porque permitte comportamentos por vezes tão ignóbeis, isso significa não perceber que as Escrituras são também a descrição de um processo de crescimento mediante qualquer coisa a que chamamos livre-arbítrio, que não somos autómatos, conferindo-nos a responsabilidade dos nossos feitos. Este Deus da Aliança é um Ser que prima pela liberdade. Essa Aliança é um contrato exitencial, mostrando-nos que a vida se nos apresenta com inúmeras provas, a primeira e a maior de todas é a da fé de que Abrâao foi o exemplo maior.

            Quem sabe, se mais cedo do que pensamos, a fé encontrará nas Escrituras a liberdade essencial que mudará definitivamente o rumo da História, rumo à paz universal.

 

            Margarida Azevedo

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