quinta-feira, junho 19, 2025

SEM MEDO NÃO HÁ RELIGIÃO II

 


 

“A oração é forte quando nos transforma, e não apenas quando Deus faz aquilo que nós queremos.”

Dimas de Almeida

 

O medo é perito em gerar a confusão entre conceitos. Por exemplo, há quem tenha como sinónimos crer e temer, isto é, o crente convicto é um temente de Deus. Vejamos.

Temer a Deus significa minimização do mundo. O temente acredita que Deus está feliz sempre que ele desvaloriza o mundo em detrimento de um amor exclusivista e radical para com Ele; mundo e Deus são dois opostos, uma binaridade do tipo, o mundo é um lugar onde coexiste uma panóplia de desgraças, a que todos estamos eternamente condenados, o que, por extensão, amar o mundo significa amar o que não presta, isto é, caminho desviante de Deus.

Os espíritas mais radicais não se cansam de afirmar que vivemos num mundo de provas e de expiações, o segundo grau mais baixo da escala evolutiva, antes, só o de mundos primitivos, o que significa que a felicidade nos está completamente vedada na Terra. O mesmo é dizer que há uma pré-programação das nossas acções, de tal forma que a nossa vida está numa luta constante para conseguir agir em conformidade com a vontade de Deus. Desta forma, viver consiste numa luta inglória contra essa pré-programação, a fim de entrar num mundo de bem-aventuranças. A procura de fazer, supostamente, tudo o que Deus gosta deixa de ser um acto gratuito e livre, mas um conjunto de práticas para evitar o umbral, ou o inferno, noutros grupos cristãos. Entregar-se ao além, viver em prol dos bons Espíritos, desvincular-se progressivamente da Terra, desvalorizar tudo o que nela acontece, porque é obra do karma, uma espécie de pré-história existencial a que inevitavelmente ninguém escapa, ou porque é uma consequência lógica do mundo desvairado em que vivemos, é uma virtude e sábia decisão, porque, naturalmente, é a procura do lugar sagrado, morada de Deus lá muito longe.

 Essa acção, geralmente destruidora do natural desejo de liberdade, porque resultante de uma ideologia que vê o mundo como um perigoso espaço cheio de negatividades, porém, muito atractivas para muitos, transporta a fé para o domínio do misterioso, para uns, ou para o sabe-tudo dos espíritas radicais. E tombamos redondos no habitual: estamos em linha recta para acreditar que há gente privilegiada, que consegue desvendar episódios do passado remoto, dominar o futuro, gente a quem nada se opõe a bem do futuro brilhante da alma no além. Essa gente muito superior, são os santos, para uns, os médiuns de alto nível, para outros, tendo em comum a capacidade exclusiva da comunicação com Entidades superiores, chegando alguns a pensar que há quem tenha contacto directo com Deus, procedendo a grandes revelações. No Espiritismo, temos Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, só para citar os mais conhecidos, que comunicavam com Entidades a que só eles tinham acesso, radicalmente com mais ninguém, o que vai contra os princípios básicos da Doutrina. Os Mentores dos grupos de trabalho são unânimes em dizer que se plasmam em variados pontos do Globo, com apresentações e discursos diferentes, mas que, em substância, apelam ao mesmo: a paz, o entendimento, o amor, a partilha, a oração.

Este ponto, de capital importância para a assimilação da tolerância religiosa e espiritual, conduz-nos, justamente, para o facto de que não há privilegiados, que o Ocidente não comunica com Entidades tão superiores às quais o Oriente não tem acesso, e vice-versa. É claro, para quem só conhece a mediunidade ocidental, vive a fascinação dos seus médiuns predilectos, as Entidades muito iluminadas que só estes recebem. Isso é uma das barreiras à abertura ao diferente na sua espiritualidade.

 Este desprezo pelo mundo, como palco das maiores negatividades, conduz, em linha recta, a preconceitos, divisão dos seres humanos em superiores e inferiores; coisas como as limpezas étnicas e religiosas, bem como as boas práticas libertadoras de todos os males: temos o anti-semitismo, os infiéis, ou então, outro exemplo mais recente, os cristãos como gente satânica. Tudo isto é uma amálgama de conceitos numa salada mal confecionada, em que o medo toma o nome de fé libertadora super-poderosa. Na verdade, o temente diaboliza a vida terrena, porque o mundo é, para ele, o chão dos demónios, do negativo no seu sentido mais abrangente.

Crer em Deus, pelo contrário, significa insatisfação permanente, mas consigo próprio. Porque nada teme, porque tem a certeza de que Deus a tudo preside, porque sabe que nada acontece sem que Ele o permita, o crente nunca tem a sua fé como definitivamente construída, nem como o móbil de acções acabadas. O crente é um insatisfeito, um ávido, ele está sempre à procura de algo mais. Sente-se muito longe de Deus, o seu agir é sempre incorrecto, falta-lhe sempre muita coisa; a paz que transporta é muito deficitária, porque há uma inesgotável insaciedade. Por isso, a oração é a sua arma, os constantes exames de consciência são uma necessidade permanente, o amor pela vida uma máxima, o outro é o seu grande companheiro, a acção prática na vida uma constante. O crente é livre na fé e na acção, porque a vida terrena é para ele caminho divino; sabe que pisa solo sagrado, porque tudo é obra de Deus misericordioso.

Vejamos ainda outro binómio cujos conceitos é importante distinguir: invisível e Deus. Ora o conceito de invisível e Deus não são sinónimos, até porque Deus nem tampouco é um “conceito”. O invisível, qual fonte inesgotável com resposta para tudo, raiz das grandes teorias, de forças exorcizantes contra todos os males, até das forças políticas que têm o condão de sozinhas porem o país na linha; enfim, o invisível, com as suas varinhas mágicas, não é Deus, mas uma realidade, tão ou mais real do que a nossa vida material, a que os seres de carne e osso dão uma importância desmedida, por vezes superando o próprio Deus. Esse invisível, que não é totalmente invisível para toda a gente (há médiuns videntes, porém, sempre com uma vidência limitada a uma determinada dimensão) é uma criação de Deus. É o plano terreno, ansioso por grandes líderes, grandes na medida em que são autênticos enviados, possuídos por forças e conhecimentos sobre-humanos, que faz do invisível um mundo à parte. No entanto, tudo o que é do plano invisível não é mais obra de Deus do que tudo o que é do plano terreno. A casa de Deus é a imensidade de tudo o que existe, e os conhecimentos no plano invisível têm as suas limitações, como têm os nossos conhecimentos no nosso mundo. Além disso, nós também somos invisíveis para outros planos existenciais.

Deus é Misericórdia pura, Amor incondicional, silêncio no recôndito da alma. Deus é uma acção invertebrada, um olhar que não vê, uma presença na ausência, uma transcendência na imanência das Suas criaturas.

Vivemos no conflito de interpretações dos nossos conceitos. Há uma gramática que precisa de ser revista, um verbo do tempo que nos ofereça interpretações que tenham uma resposta que vá em linha recta aos problemas actuais.

Todos os grupos religiosos são expansionistas, todos querem ter mais e mais devotos. No entanto, o que é que eles expandem? Conflitos e mais conflitos, todos filhos do medo.

Contudo, a geografia do religioso está a mudar. Está-se a traçar outro mapa, e com ele uma nova era da fé. Mas qual? Tendo em conta que o religioso é o centro de grandes tensões sociais e psicológicas, que Deus é que a nossa fé procura e simultaneamente expande? Que pesquisa ao interior de nós mesmos deixamos que a fé elabore?

Socialmente, cimentou-se o medo dos loucos à solta, de uma massa de gente perigosa e imputável. É o medo de ser atacado em todas as frentes. A internet espalha o medo do médico, porque está nas mãos da indústria farmacêutica, dos medicamentos, porque são tóxicos, das vacinas, porque são feitas a martelo, dos aparelhos de diagnóstico, porque são cancerígenos, dos alimentos, porque não estão em condições, da água, porque está contaminada. Discernir, verificar, informar, escolher está fora de questão. Nada presta. E os líderes religiosos tiram bom partido da situação: apresentam a religião como, não o último, mas como o único recurso.

Precisa-se de um cânon que defina o que é religioso do que não o é. Algo que diga que a religião é uma organização sem medo dos infernos, dos castigos de Deus como um Ser frio e calculista; que ensina a servir, cá neste mundo, e que a oração é uma linguagem com poder; que todo o discurso que nos esmague não é religioso; que a religião é tanto mais eficaz nos seus objectivos quanto mais espiritual, isto é: não há milagres, mas a força desmedida do bem-fazer; que o génio é um Espírito que muito evoluiu para muito servir, mas longe, quantas vezes, da pureza espiritual que muitos lhe atribuem, na confusão entre a genialidade e a santidade.

Na fusão do religioso com o espiritual chegaremos a um fim: a alma humana já não carece de fé, de cor ideológica, porque a sua vivência caminha lado a lado com a dádiva de Deus: viver é partilhar.

Fiquemos com a oração de um Mentor:

Senhor, eu fiz hoje o melhor que pude pelo bem da humanidade.

Sei que muita coisa ficou por fazer porque ainda sou muito deficitário/a, mas dei o meu melhor.

 Eu nada temi, porque sei que Tu estás comigo. Tu és aquela voz que está sempre presente na minha alma ainda tão pobre,

 a mão protectora e firme, uma presença incondicional em qualquer das horas do dia.

Senhor, eu quero ser merecedor/a da força que me dás para trabalhar,

da vontade de querer vencer e ultrapassar todos os obstáculos.

Torna-me, por isso, num/a trabalhador/a incansável, Teu servo/a

e que, no que estiver ao meu alcance, eu a todos preste o meu auxílio.

Que amanhã eu continue a minha caminhada, cá neste mundo ou noutro, se tu achares que chegou a minha hora de partir.

Sei que, vá para onde for, a Tua divina presença irá acompanhar-me.

Obrigado/a, Senhor. 

 

Se conseguirmos, de alma lavada, chegar ao fim do dia, elevar o pensamento a Deus, e dizer qualquer coisa como isto, temos aí a felicidade deste mundo.

 

            Margarida Azevedo

 

 

 

terça-feira, junho 10, 2025

SEM O MEDO NÃO HÁ RELIGIÃO


 

O medo tem sido o que melhor caracteriza o ser humano. Será a religião uma forma de o combater, ou, pelo contrário, um poderoso meio de o manter?

 

A Espiritualidade ensina que o medo é a coisa mais nociva, perigosa e destruidora que há. Orar porque se ama a Deus não é o mesmo que orar porque se O teme. Apelar à divina misericórdia de Deus, na sequência de uma falta cometida, nada tem a ver com o pedido de perdão no sentido de não sofrer um castigo terrível.

No nosso quotidiano, o medo trava, deixa que o incompetente se imponha pela força. Como agora se diz, dirige aquele que tem espírito de resiliência e de ambição, aquele que é mais combativo; manda aquele que não olha a meios para atingir os fins, que sabe gerir e ultrapassar os conflitos de que ele próprio, quantas vezes, é o autor. Podemos sintetizar definindo o poderoso como aquele que sabe gerar e desenvolver o medo, segundo um discurso bem montado, aliciador, incutindo nos ouvintes a necessidade de um protector sábio e astuto. Esses ouvintes são os fracos, os que têm medo de pensar e agir por si mesmos, os felizes que se renderam à evidência de que precisam, efectivamente, de um protector porque sem ele não são nada. Foi isto que aprenderam e assimilaram até ao tutano do osso.

Os políticos são mestres da dependência, das promessas falsas, da construção de sentidos novos para as palavras, baseando-se em doutrinas salvadoras, quais mestres na liderança da fraqueza alheia, que tão bem alimentam e manipulam. Entre abutres, patos-bravos, rafeiros e papagaios de janela, temos uma panóplia de espertos, gente de baixo nível, sem carácter, que incute no outro o medo de pensar. Por outro lado, o político que faz da Política a arte de governar, com o objectivo de criar e desenvolver boas condições de vida para os cidadãos, servindo-os, está, geralmente, silenciado.

            No campo da religião a situação complica-se ainda mais. Entre os líderes dos múltiplos grupos, há uma relativa tolerância, baseada numa espécie de política de não agressão. Como diz o povo: “Lá em cima, dão-se todos bem”, é mais ou menos isso. Porém, quando começamos a descer, chegando ao devoto, ao crente comum, enfim, vive-se uma paz artificial, a desconfiança sedimenta-se, o medo comanda, porque lhes foi transmitido que a sua é a única que representa com rigor a vontade de Deus.

            Mestras do medo, as religiões, cinicamente, apoiam-se nos princípios, máximas e preceitos da ancestralidade, como se fossem vozes de Deus, apresentando os seus seguidores de outras épocas como iluminados. O dito e o praticado há milénios é, para elas, uma escritura e acção sagradas, logo irrepreensíveis, acríticos, absolutos. Na prática, não só da ritualística em grupo, mas também em casa, isto é, todo um conjunto de preceitos que são exigidos, numa espécie de ritos domésticos que antecedem os cultos colectivos nos templos, a situação é deveras alarmante.

            Esta suposta identidade, que é imposta como sapiente e salvífica, filha de um conceito de verdade cuja autenticidade é devida apenas ao factor tempo, toma o cariz de pertença ao Ser Supremo, exclusiva e privilegiada. Assim, não há a noção de desconformidade entre o que está escrito e o que é praticado, tendo em conta a conjuntura social, económica e política. Levando o texto ao pé da letra, oral ou escrito, conferindo-lhe a natural aridez mercê da ausência de espírito crítico, estabelecem uma relação passado-presente, não numa linha de contiguidade e crescimento da fé, bem como num trabalho de memória, mas, pelo contrário, numa dependência tal objectivando o regresso total ao passado. Tudo parece fazer parte de um mesmo todo, assumindo um equilíbrio tão falso quão perigoso, donde a acção, por mais aberrante que seja, é sempre um acto virtuoso, porque em conformidade com os parâmetros da suposta vivência ancestral. Exemplo dessas práticas não é só a estranheza do outro, porque não faz parte do grupo, vendo-o como um ser inferior, temos o apelo à violência, ao homicídio e à violação, à desvaloração do papel da mulher em todos os sectores da vida. Ficamos por aqui? Não, não é apenas isso. Temos a profanação dos cemitérios, com práticas como: colocação de preparados, ou seja, iguarias feitas com determinados fins, que depositam sobre as campas, com fotografias de pessoas, outras são depositadas à porta dos cemitérios; temos, ainda nos cemitérios, evocação dos mortos, fazendo-lhes pedidos de toda a ordem, além dos pactos de sangue com Entidades, ficando à mercê do que as menos escrupulosas lhes disserem para fazer. Quanto ao sangue, este vem de animais de grande porte, mais raro, de bovinos (geralmente vitelos), mais comum, de médio porte, como bodes e carneiros, e  de aves, tais como galináceos, que são abatidos de forma ritual, com o qual tomaram um banho em casa, fazendo com o restante os rituais nos templos e/ou utilizam nas rezas nos cemitérios.  Tudo em nome da ancestralidade, porque se dantes se fazia assim, porque não se há-de fazer agora? Quem não o fizer, arrisca-se a ser perseguido pelas lideranças e olhado de revés pela assembleia, ou até pelas forças supremas da ancestralidade, que andam por aí à solta, abrindo a possibilidade de desencadear uma autêntica guerra entre os próprios Espíritos, imagine-se.

            Questões como progresso religioso e espiritual, emancipação e liberdade de fé, crítica textual, enfim, não se colocam. É o passado longínquo que fala mais alto, numa crença psicológica de que a ancestralidade tem poderes que o presente não tem. O antigo, o imemorial impõe-se pelo medo de perturbar a ordem pré-estabelecida, ou desencadear a ira dos deuses, a paz dos Espíritos, ou, pior ainda, expor-se a ser excluído das graças de Deus.

            Pergunta-se: Que tipo de pessoas se dão a estas práticas? Todas. Não só os seguidores deste tipo de religiões pagãs, mas também das religiões do Livro, os tão pomposamente chamados monoteístas. E aqui é bom lembrar os cristãos que, alguns, nos seus ímpetos de uma fé liberal, vítimas da confusão entre tolerância e liberdade religiosas, laicidade e perda de identidade, enveredam por estes caminhos sendo, e perdoem-me a expressão, grandes clientes destas práticas. É que, para aqueles que defendem o sofrimento como a única força salvífica e santificadora, um dos grandes erros do Cristianismo, é bom lembrar, os dirigentes destas práticas aliciam com a salvação, não só dos problemas que afligem no momento, como prometem a libertação de possíveis desencontros com a ancestralidade identitária. E, é claro, não é difícil.  Quando a dor aperta, porque a criança está cancerosa, aquele filho lindo e com uma vida pela frente, mas a desmoronar-se, ninguém olha a meios para atingir os fins. Por isso, nestas práticas, não temos só a populaça, a arraia miúda, os tais ignorantes (quão bom seria que muitos dos sábios tivessem um pedacinho da fé que têm os simples). Tirem-se as ilusões. Ele é ricos e pobres, ele é pastores evangélicos, pregadores das diversas cores religiosas. Vão lá todos, quando a hora é de grande dificuldade, quando a dor aperta e a esperança dá ares de esmorecer. Todos querem reconciliar-se com o passado, os deuses, os Espíritos, chamem-lhes lá o que quiserem. É sempre o medo que move, e o instinto de sobrevivência numa força desmedida, porque o sofrimento fez transbordar o cálice, a mostrar que, efectivamente, o sofrimento é o estado mais perigoso do ser humano, pois leva-o a cometer os actos mais ignóbeis, colossais, desastrosos, faz do desmedido lei: é a grande força do medo do desconhecido no seu melhor, da perda de quem se ama, da miséria espreitante. Hoje, dizer que pertence unicamente a uma religião é como defender o celibato, mas manter uma relação amorosa na clandestinidade.

            Com que objectivos é que isto acontece? Em primeiríssimo lugar objectiva-se a saúde, principalmente problemas oncológicos, depois vem a dependência de drogas e álcool e jogo (mais raro); seguem-se os problemas de dinheiro e os sentimentais; temos os ímpetos de vingança de ofensas, com o objectivo de destruir o adversário, principalmente nos meios laborais; seguem-se as questões em torno de heranças. Enfim, a lista nunca mais acabaria, e a ordem dos elementos, a partir da saúde, torna-se arbitrária.

Por consequência, duplamente criadora de vítimas, quer nos que a seguem cegamente, quer nos que são por ela atacados, geradora de iluminados, de favorecidos, de prestadores de grandes serviços à humanidade, a religião alimenta o medo do outro, impondo-se pela agressividade e violência numa ideologia fechada e de fachada. Estamos no domínio dos superes: super-poder, super-identidade, super-verdade, super-homens, super-doutrina, super-passado; é o desmedido, é o superior, tão superior que pode destruir tudo à sua passagem, porque está a agir em nome de Deus.

Não fazendo a apologia da modificação interior do ser humano, porque isso implicaria, de certa forma, uma fusão com o diferente, na medida em que não é tão diferente assim, vão-se alimentando superstições, o conceito de que a natureza é cheia de subterfúgios e poderes ocultos, de tal forma que só alguns os conseguem decifrar, isto é, o mundo não está ao alcance de todos.

E aqui, inevitavelmente, emerge uma questão desconfortável: Deus para quê? Ou então: Porque é que crer em Deus não nos torna melhores? Em que medida a fé em Deus não nos basta para enfrentar os problemas do dia-a-dia? Por que se procura outras forças sabendo, à partida, que é Deus quem age, quem manda, quem autoriza ou não? O que é que em nós limita Deus? Ou então, porque é que a fé parece uma linha recta para a uma perigosa ilusão de superioridade?

Estes comportamentos vão-se impondo por meio de atitudes, máximas, seja qual for a sua cor religiosa, tendo em comum os códigos morais severos, desenvolvendo a intransigência movida por instintos justiceiros. A História mostra-nos que os crentes fervorosos matam sem piedade no calor impetuoso de que estão na posse de uma transcendência. Psicologicamente, e no fundo, matam para lavar os seus próprios pecados no medo das penas eternas, dando ao homicídio o aspecto de que não é homicídio, mas um processo de limpeza, um favor que se faz a Deus. Exorcizando a culpa e ficando na impunidade, a consciência não pesa, porque foi cumprido um dever supremo. É a religião no seu lado escandaloso e absurdo, a maior tragédia humana, na sua faceta terrível de caminho, não para Deus, mas para os infernos, não se confundam as coisas.

Efectivamente, a nossa humanidade não vive apenas um trágico existencial, vive a tragédia dos supostos caminhos que traça para Deus, que não são para Deus, mas para os fantasmas de uma fé que em tudo é esquizofrenia, na medida em que faz do Ser Supremo um ser inferior a nós. O humano ainda não percebeu que Deus não é representável de forma alguma, que é todo misericórdia; ainda não acredita que está a viver uma fé não livre na medida em que, de mãos dadas com o medo, acrescenta dor à dor que realmente existe. A maior tragédia de uma religião consiste em valorar o trágico ao ponto de o considerar uma força salvífica, laureá-lo com o primeiro lugar na história. O papel do religioso, na sua componente de espaço de fé em Deus é, acima de todas as coisas, falar de Deus como Pai amantíssimo.

 Quando a religião faz o discurso de uma presença invisível como uma sombra avassaladora, pronta para a acusação, com o veredicto do castigo, eterno ou não, mas um castigo sempre implacável, essa força que sopra de todos os lados com ouvidos e olhos gigantes a que ninguém escapa, justificando assim o discurso do medo como alavanca da fé, o resultado é a implementação de um linguajar exclusivista do qual surge a noção de escolhido tipo: Sou um privilegiado por pertencer a esta religião.” Esta é a pior deturpação da fé, do religioso, enquanto força libertadora que deveria ser, uma aberração para a mediunidade; um perigo para a sociedade, a xenofobia exposta nos altares. Nós não somos privilegiados por sermos verdes ou amarelos. Nós somo-lo na medida em que nos esforçarmos por viver uma vida de paz, de entrega ao próximo como um irmão em Deus, porque o caminho para Deus também está na Terra.

(cont.)

 

Margarida Azevedo