VOLTANDO AO GÉNERO
Cansado de ser humano, desgostoso com a sua espécie e/ou com
a sua geração, quem o desejar tem o direito de rejeitar a idade, ou de se
identificar com o animal da sua eleição. Assim, se um dia alguém chegar ao seu
posto de trabalho e disser aos colegas, contente e feliz da vida: “ A partir de hoje sou uma centopeia!”, não
se admire nem julgue que está perante um distúrbio mental, um desajuste nervoso,
ou um impulso neurótico. Não é esquizofrenia, nem bipolaridade, nem qualquer outra
coisa com nome pomposo. Não, não. Está perante uma nova apresentação de um
qualquer género masculino ou feminino, muito feliz porque já tem liberdade,
finalmente, de se apresentar como verdadeiramente é. Muito curioso, de facto.
O contrário também se verifica. Um homem pode, a dada
altura, dizer que é uma menina de cinco ou seis anos e comportar-se como tal.
Pedir para ser adoptada, querer um papá ou uma mamã porque está sozinha no
mundo. E não falta quem a adopte. Há sempre alguém que, por saudosismo ou por
outra coisa qualquer, esteja ansioso de pôr lacinhos no cabelo de alguém muito
pequenino, ainda que com bigode,vestidinhos airozinhos, ou calções com pistolas
à cintura para brincar aos cowboys, e levar a passear ao parque e comprar um
gelado à criancinha que até já pode ter maminhas. Pois é, a menina que vai pela
mão pode ser um homem de quarenta anos ou um idoso de oitenta e tal, ou então
uma jovem de vinte. Isso não quer dizer nada porque estão todos muito felizes.
“Como definir ou
distinguir o patológico da sanidade mental?” Por outras palavras: O que é
estar bom da cabeça? Se esta questão foi sempre difícil, agora é
intransponível, porque se o factor socialização foi uma das determinantes para
a inteligibilidade da complexa definição, agora é o social que se por ventura
não aceitar tal comportamento está em situação de exclusão, logo, doente.
Se o mal está em quem o vê, diz-se com algum
acerto, a distinção existencial entre o patológico e o saudável está em quem a
vê, naturalmente. Andar vestido de burro passeando-se pelas ruas é tão natural
como andar de fato ou de t-shirt e
calças de ganga. Quem fôr contra isto, evidentemente, não se diz que é fascista
porque a palavra caiu em desuso e seria muito forte, diz-se antes que é
xenófobo, ou então que sofre de um desajuste sociológico de propensão
separatista e desintegracionista, do tipo psicótico, defensor do passado, logo
um perigo para a sociedade, um maluco qualquer. Numa palavra, estupidificante.
Dizem por aí os entendidos nesta matéria, que se uma
pessoa cumpre os objectivos laborais, se faz o que lhe é pedido, se cumpre as
regas do trabalho, então é porque está bem, isto é, está bom da cabeça, muito
embora se diga uma aranha ou um crocodilo, isso não interessa para nada. Se,
contrariamente, não se identifica com nenhum animal, se se afirma como homem ou
mulher, sexo feminino ou masculino, no sentido tradicional dos termos, arcaico,
portanto, mas não cumpre os requisitos laborais, então ter-se-á que investigar
o facto pois é-se bem capaz de estar em presença de uma pessoa que não regula bem.
Por outras palavras, a preguiça ou a incompetência passaram para o estatuto de
género, animal homem/mulher indefinidos que subverte(m) as leis e as boas
práticas do trabalho. .
Este expoente máximo de democracia, este podium de
valoração do humano, este problema característico do Primeiro Mundo, pode
muito bem chegar à tabela salarial. Assim, o cavalo é pago a fardos de palha, o
caracol a folhas de alface, o canário a alpista.
Dirão os espiritualistas convictos, no alto da sua
sapiência, que tudo isso pode ser muito natural pois os seres humanos estão
ainda muito ligados ás suas origens ancestrais do reino animal. Assim sendo,
ter-se-á muita dificuldade em distinguir a burrice do burro, isto é, aquilo que
faz com que o burro seja burro, questão de raízes aristotélicas, mas deturpada,
animal sóbrio e inteligente, que pasta pelos campos, do colega de trabalho que com
ele se identifica e firma o nariz, perdão, o focinho ou o bico, no monitor.
Qual dos dois é mais burro, ou o que é que há do burro no indivíduo que está um
dia inteiro ao computador, num banco, por exemplo, e que o identifica com o que
se passeia pelos campos? Imagine-se um frente ao outro.
E com isto se vão passando os dias e as noites, num mundo
de contrastes cada vez maiores, de escravatura no pico mais alto de sempre,
segundo antropólogos alemães, de miséria a crescer, de riqueza desmesurada e
doentia de uns quantos, esses sim, humanos que envergonham a própria espécie.
Assim se vai vivendo, criando falsos conceitos de tolerância, falsos direitos,
e assim se vai fazendo das mentiras verdades e das verdades mentiras.
É a falta de objectivos sãos e altruístas, o desgaste de
quem não espera mais nada da vida, o rebentar do balão da exploração humana,
mas é, lamentavelmente, e acima de tudo, o grande falhanço das religiões, que
não souberam impôr-se como forças ao serviço da humanidade mas dos seus
interesses económicos e das políticas interesseiras.
São os dirigentes religiosos, fanáticos e intolerantes,
que sempre espalharam violência e agressividade, alucinados e a falarem em nome
de deus, esse deus miudinho e incongruente, des-humano, um deus que não
interessa a ninguém.
Quem assume esta loucura? Quem fabrica a intolerância ao
crescimento do humano como o maior dos valores? Quem responderá pelos crimes de
fé? Quem assume a responsabilidade das loucuras religiosas? Ergueram-se sociedades
cada vez mais complexas e elaboradas. Desenvolveu-se a Tecnologia, a Ciência
trouxe novas respostas, mas o ser humano continua nas cavernas, territorial
e animalesco, de falsa fé continuamente
à procura de milagres.
Onde
está a fé libertadora? Se a fé não olhar para a Natureza como a sua mãe, fonte
de adoração/oração, caminho sem fim, obra-prima do Criador, ela estará perdida.
Podemos ler os textos reveladores desse Criador Supremo, podemos esmerar-nos em
exegese, teologia, saber línguas, decompor, agrupar, reagrupar, interpretar,
ler e reler, mas se o amor pela Vida não for prioritário, é tudo como o sino
que tine.
É
chegado o momento de perguntar: O que é que o homem fez de si mesmo? Onde está
o seu universo de esperança e de glória? O que é que verdadeiramente quer? São
passageiras, é um facto, mas as religiões têm que se impor, aqui e agora, como
canais de ligação entre o homem e os seus desejos de felicidade. Se as
religiões não mudarem de rumo, quanto às suas práticas de fé, numa resposta
contígua à Ciência, geradas pelo mesmo ser, o Homem, deixarão de crescer perdem
o comboio do desenvolvimento e caiem no ram-ram do ritual estéril.
O
Homem não é um animal qualquer, é um ser humano, centelha divina, um ser
deslumbrante. Que Deus tenha piedade dele e o ampare nas suas fragilidades de
fé.
Margarida
Azevedo
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