É TEMPO DE REFLECTIR !
A laicização do Estado talvez seja uma
das maiores conquistas das democracias ocidentais da velha Europa. Pluralizou o
tecido religioso-social, confrontou modos de perspectivar a Lei, refinou o
conceito de justiça, desenvolveu direitos e deveres.
A
Revolução Francesa lançou o grande boom
com a sua trilogia própria de Liberdade, Fraternidade, Igualdade, os pilares
laicos nos quais assenta uma cabeça um voto, independentemente de sexo, raça, etnia,
religião… Porque não foram as religiões a criá-lo, no universo complexo de
trilogias em que se envolvem, bem como na multidão de profetas que as
preencheram ao longo dos séculos, é uma outra questão; pensamos que nenhum profeta
estaria contra princípios como os supramencionados, todavia não será descabido
afirmar que a liberdade foi sempre algo assustador para o mundo religioso, e a
igualdade mais ainda. A separação entre bons e maus, merecedores e
imerecedores, levou à perdição da fé conduzindo-a pelos caminhos do medo e do
temor, e não da alegria libertadora de quem se sente portador da Graça. No
conjunto, infelizmente, a fraternidade
amesquinhou-se junto dos pobrezinhos, que se tornaram o detergente para a
limpeza das almas perturbadas.
Desta forma, podemos afirmar que o laico
impôs ao religioso uma nova reflexão sobre Deus, o Seu “novo” papel na História,
através da emergência de um igualmente novo sentido de mistério, a saber, os
sublimes mistérios da Ciência. Por outras palavras, o misterioso cai do
pedestal da religião e toma ares de laico também. Partilham-se conceitos, a
Ciência objectiva o que até então era do âmbito exclusivo do sagrado, a saber,
como é que o mundo foi criado e porquê?
Da primeira metade do séc. XIX, em
França, emerge o Positivismo com Augusto Comte (1798-1857), defensor do poder
do poder absoluto da razão, com a teoria dos três estados ou períodos da
história humana: Teológico – Deus está em tudo; Metafísico – relações com os
Espíritos, mercê da descrença num Deus todo-poderoso; Positivo – a procura de
respostas científicas). A lei de causa e efeito, a rejeição de todos os factos
que não forem comprovados, mergulhando a autenticidade do conhecimento em
definições como soalhos estáveis e firmes, devemo-la a este período. A crença
pisou novo terreno, aquele de que é dado ao Homem a possibilidade de conhecer
as leis que governam o Universo, amarrando a fé ao templo, a razão aos
laboratórios, ateliês, salões… Desafiando o invisível, na perseguição do
infinitamente pequeno, Pasteur (1822-1895) avança com a primeira vacina contra
a raiva e o método deconservação do leite e do vinho, a pasteurização, com
Darwin, e a sua teoria da evolução das espécies, desmorona-se o criacionismo
bíblico do Génesis, entra-se na discussão acesa entre Naturalistas e
Racionalistas, entre os que persistiam nos valores herdados e os modernistas
“emancipados”.
O campo religioso, para não ficar para
trás, teria de acompanhar este ambiente de teses e sínteses, de superações. Mas
como? A ideia de um idioma sagrado, o latim, perde o lugar no podium, impõe-se que todos saibam o que
dizem as Escrituras. A religião e a fé não mais se voltam a confundir. O
universo religioso reformulou-se, repensou-se, meditou sobre si mesmo, porque a
isso foi obrigado. A importância do social para o universo do religioso ganha expressão,
conduzindo-o ao alargar do campo teológico para novos temas, principalmente o
conceito de evolução, levando as elites religiosas a abrirem-se às elites intelectuais
positivistas, ainda que para as combaterem com veemência.
Porém, o Cristianismo saiu beneficiado:
a fé ganha espaço, afirma-se na sua singularidade; o religioso discute-se nas
suas bases teológicas; a ciência positivista relativiza-se pois os idealistas
são acérrimos defensores de que não é dado ao homem conhecer os mistérios do
universo, remetendo a discussão para o antigo pensamento helenista de que a
verdadeira natureza das coisas gosta de ocultar-se; que vivemos num mundo em
que tudo se nos esconde, outros afirmando o contrário, que tudo é mesmo assim; a
fé e a razão enfrentam-se; a importância dos sentidos, a pré-determinação, o
destino, etc,, constituem a moldura na qual se desencadeia a panóplia do debate
rico de ideias.
Porém, fosse qual fosse o âmbito da
discussão, o religioso estava e sempre esteve presente. Não era possível pensar
o humano sem o religioso, a fé, Deus, os profetas. A relatividade das suas
verdades conduziu a novas hermenêuticas. As revoluções culturais, resultantes
das sociais e políticas, ou vice-versa, (esta causalidade é uma longa questão;
talvez seja mais coerente afirmar que se implicam entre si e são simultâneas no
tempo, uma vez que há contágios, impossível escapar-lhes) jamais excluíram o
religioso.
Quanto ao positivismo, o seu universo
epistemológico monista reduziu o conhecimento científico, porque,
efectivamente, afirmar apenas aquilo de que conhecemos as causas é ver a ciência
ao contrário. Já Aristóteles afirmava que a Metafísica é a ciência das primeiras
causas e dos primeiros princípios. Ora, nesta perspectiva, o que em verdade
sabemos são causas causadas, meros resultados, tal como a água que jorra da
fonte, mas cujo princípio nos está vedado.
Com isto, a religião ganha terreno. Deus é a
fonte de todas as coisas, causa primeira, aquilo que só pela fé se pode atingir,
ou então por uma razão com novos contornos. Este o balão de oxigénio que,
contestado ou não, com provas ou sem elas, vai cair redondo no âmbito de
qualquer coisa como a fé raciocinada. Um escândalo!
A
razão e fé tiveram que se aliar. Quanto à primeira, ou compreende que não pode
ser de outro modo, ou apresenta provas que não provam nada, pois é bem mais
difícil provar uma causa primeira material, que uma causa primeira incausada,
porque fora da Matéria; é preferível aceitar a ignorância e os limites das
capacidades humanas do que aceitar como verosímil erros que mais tarde se vêm a
provar como grosseiros. É mais difícil provar que não há Deus, e explicar o
mundo, consequnetemente, sem uma vontade suprema, do que remeter a mesma
problemática para um Ser Supremo.
Ciência e Religião têm a obrigação de
calar disparates mútuos, imporem-se como caminhos paralelos, as duas pernas
que, equilibradas, nos permitem caminhar.
Hoje, tudo isto tem que voltar a ser
repensado. A lei de causa e efeito talvez não seja bem o que muitos pensam. Ela
não significa determinismo, castigo,vingança, penas mais ou menos longas.
Vivemos hoje na teoria das probabilidades, se não mais justa, pelo menos mais coerente.
O calor dilata os sólidos, é verdade, mas será sempre assim? É claro que não.
Pode acontecer uma situação em que tal não aconteça, logo, é provável que o
calor dilate os sólidos, apenas provável.
Um homicídio numa vida conduz a ser assassinado noutra, sempre? Não. É
provável que sim, mas pode não acontecer. Porquê? Respostas não faltam, falta o
espírito crítico e livre de sofismas.
Para além de afirmarmos,
peremptoriamente, que não sabemos, parece-nos, no entanto, que a problemática
exige, dada a sua especificidade, uma análise ética. É que, se todos os
homicidas vêm a ser assassinados, então o perdão deixa de fazer sentido, a
evolução não existe, e o arrependimento não tem razão de ser. Por outro lado,
se for escolha do próprio, permiti-lo significa retomar todo o processo, dentro
de personalidades psicóticas entregues a si mesmas, não capazes de atingir a
maturidade de se enfrentarem nos seus erros e, efectivamente, frágeis no seu
aprendizado salvífico de amar os inimigos.
O progresso nunca poderia estar no “eu
matei, vou ser morto”, uma autêntica pobreza espiritual, mas, em nosso ponto de
vista, no amar quem me matou, pois é disso que temos o maior exemplo, e é nele
que assentam, e muito bem, as bases do Cristianismo. E isso é que é extremamente
difícil. Muito difícil porque é o amor
extremo, tão extremo que não há palavras.
Margarida Azevedo
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