quarta-feira, maio 03, 2006

DESAFIOS


Porque demasiado preocupados com o seu pequeno mundo, muitos espíritas envolvem-se em questões metafísicas totalmente fora das preocupações da tão complicada vida do dia-a-dia. Esquecendo-se de que desde sempre a problemática religiosa e espiritual está intimamente ligada à vida material, procurando dar resposta a questões tão prementes como são a pobreza, o sofrimento, a dor, a doença, a morte, etc., remetem a justificação de todos os males para a teoria das reencarnações, tornando-a num conjunto de preceitos gastos e insípidos, que em vez de libertar aprisionam ainda mais o já tão agonizante mundo em que vivemos.
Ora, convém salientar que o conceito de reencarnação e o de castigo não são sinónimos. Não podemos confundir uma teoria da oportunidade com uma teoria de penas. Por exemplo, se uma pessoa parte um objecto que não é seu, não se vai querer que lhe partam um objecto a si. Não se trata de uma vingança sem recurso, um ciclo fechado do tipo”Toma lá que é para aprenderes”, inventando razões, fazendo juízos de valor geralmente obsessivos, de gente sedenta de vingança mas sem coragem para o admitir. Até porque se a maioria dos espíritas cresse que reencarnar é realmente pagar na mesma moeda, certamente não se encontraria nos centros espíritas comportamentos indignos de quem pertence, ou diz pertencer, a uma tal doutrina. Até parece que há mais que um tipo de reencarnação equivalente a dois pesos e duas medidas.
A teoria da reencarnação é justa e, como tal, pedagógica; para muitos é uma teoria da vingança “Fizeste, pagas”.
A reencarnação é limpeza do espírito, depuração, aposta incondicional na vida. Com ela aprendemos e participamos nas diversas épocas históricas, somos protagonistas mais ou menos activos no desenrolar dos acontecimentos, numa dialéctica que se traduz na máxima””Nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei”. Simplificando esta fórmula, reencarnar é educar.
Assim, que resposta dá o Espiritismo aos desafios que se colocam nos dias de hoje? Que respostas tem a Doutrina para o actual quadro de dor e sofrimento que prolifera por toda a parte? Esta é que é a questão: Como resolver problemas aqui e agora, e não projectar a solução num para lá indefinido, desconhecido, arquivado, e sabe-se lá que mais, quando a própria Doutrina ensina que nascemos esquecidos para nosso próprio bem. E porquê? Não será que a solução está aqui?
Não é a pensar no outro mundo que resolvemos os nossos problemas, mas dentro deste, amando-o, respeitando-o e querendo fazer dele uma pátria onde seja possível viver o melhor e o mais feliz possível. Enquanto se encarar este mundo como a pátria do sofrimento entregue a provas e expiações quase ad eternum, é isso e só isso que ele será, sofrimento. Estamos a viver o momento mais perigoso da Humanidade. O homem tornou-se um ser falso, imparavelmente ambicioso, cresce a escravatura, proliferam as epidemias de toda a ordem, ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres e em número crescente, discursos belos, defensores de uma classe que se governa a si mesma, direitos que perdem, desvaloração do trabalho e de quem o produz, a ameaça do nuclear… e se parte de tudo isto já existia em tempos que já lá vão, se muito não é mais que o resultado ou a colheita de uma existência conturbada, o peso superlativo de tudo isto a que agora se assiste e a descomunal loucura a que foi votada a vida, reflecte bem a relutância do homem em crescer, fazendo perigar a afirmação da felicidade.
Ora, o conceito de reencarnação é estruturante desta migração que, mais importante que se centrar no espaço e no tempo, se afirma como um caminho para a felicidade. Herdámos a máxima de que a felicidade não é deste mundo, que amar a Terra é perder-se numa infinidade de seduções que fazem sucumbir o Espírito. No entanto, queremo-la como um bem precioso, nela temos os nossos filhos, nela amamos e criamos laços afectivos que nos acompanham até sabe-se onde. Não será isto porventura um contra senso? Será que a felicidade exige o sacrifício de termos que desprezar o mundo em que vivemos porque amá-lo é perder-se? Pela reencarnação tornamo-nos velhos neste mundo, vendo-o como a nossa casa. Quando dizemos que temos vontade de fugir daqui, que estamos saturados, este mundo revela-se como uma preciosa fonte de identidades, nossas, rostos que fomos ganhando ao longo de vidas. Por outras palavras, queremos sair deste mundo neste mundo pois é ele o senhor do nosso sentido. Não me interessa saber se já vivi noutros, nem os quero conhecer. Além disso, o meu sentido do mundo é um prolongamento deste, o outro é uma imagem deste, que eu invento, que eu imagino, que desejo. Um apêndice, talvez. Mas este é sempre a minha referência.
É chegada a altura em que urge repensar a reencarnação, como tantas outras coisas que afirmamos e temos como concluídas. De facto, não é para a infelicidade que renascemos, nem para repetir indefinidamente o já vivido porque não aprendido. A reencarnação não é o resultado de um chumbo, mas a criação de novas perspectivas num mundo rico e inesgotável de experiências, numa dinâmica cujo móbil é uma curiosidade perene.
Reencarnamos, mas de um menos para um mais; para aumentar o nosso campo valorativo, desenvolvermos e complexificarmos a sociedade dentro de uma diversidade que se pretende progressivamente maior; para acreditarmos em nós mesmos e nos tornarmos mais úteis. Faltando isto, há que repensar o conceito de reencarnação, a sua funcionalidade face ao nosso modus vivendi.
Amanhã podemos já cá não estar, mas para onde formos é esta a bagagem que levamos.

Barbara Diller

1 Comments:

At 7:50 da manhã, Blogger PT said...

Se partirmos do princípio de que os "auto-governantes" reencarnam, não admira que os tempos actuais incluam momentos de autêntica agonia e repulsa.
Convém não esquecer que também os despojados da sociedade reencarnam!
Assim, à semelhança do que acontece ao despertar-se na manhã seguinte, também ao reencarnar-se na experiência seguinte podemos acarinhar a ideia de não voltar a deixar passar em silêncio - pela segunda ou terceira vez - o excesso de egoísmo e desprezo de alguns "altos responsáveis".
E são as consequências de tudo isso que estamos hoje a observar.
Será mais ou menos assim?
PT

 

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