O PÃO DE ISABEL
Descendo a escadaria do palácio, envergando os seus trajes
nobres, carregava o pão no regaço rumo às vielas, travessas e becos perdidos na
imúndice da pobreza extrema.
Libertadora da fome silenciada, a rainha caminhava
distribuindo, santa e bela, o alimento divino e puro. Os pobres tornam-se,
assim, elemento fundamental de uma oração alicerçada na experiência dura de
quem não tem voz; oração qual rota da seda, até ao ritual da produção e
confecção do pão rumo a um fim aliviante, feito de alma.
Com isso, Isabel se purificava também, crescia na sua
espiritualidade já elevada, na vivência de um evangelho todo prática, todo
esperança, todo oração. Não ia pregar, ia exemplificar, dar testemunho de uma
fé que, sem obras, é cega. Não era caridade, mas amor profundo, porque abordar
Deus não é palavrear nem rebaixar quem recebe. Naquele pão estava Deus no silêncio
das palavras.
A
nossa tradição judaico-cristã gira em torno da simbólica do pão, estendendo-se
às funções: alimento do corpo e do
espírito; provação e fé; desespero e providência.
Elemento
agrário, trabalhado e confeccionado pelas mãos humanas, do chão se eleva ao
divino; da terra às mós dos moinhos de água. Era confeccionado com água e sal,
com ou sem fermento; o pão é a fusão da Natureza, do homem e de Deus.
O
povo hebraico, quando levado para o deserto, conduzido por Moisés, foi
alimentado por um maná enviado por Deus, o Pão da Vida. “Eis que vos farei chover pão do céu; sairá o povo e colherá a porção
de cada dia, a fim de que eu o ponha à prova para ver se anda ou não na minha
lei.” (Ex 16: 4).
Esta
afirmação do pão de cada dia reveste-se de uma carga teológica profunda,
transportando-nos para a fé de que quem está com Deus nada lhe faltará, terá
sempre o necesssário para cada dia. Por outras palavras, o pão não se acomula,
não se guarda como um tesouro, ou como o dinheiro no banco para a aquisição de
bens. O pão de cada dia é uma presença incondicional e constante, que sacia em
qualquer momento aquele que crê firmemente.
Em
Mateus 4:1-4, a figura do diabo tenta Jesus, depois do jejum, ordenando-lhe que
converta as pedras em pão. Ora, nem só de pão vive o homem, isto é, o pão que é
a palavra de Deus não é uma transformação de pedras, resultado de uma tentação.
Durante quarenta dias de jejum, Jesus alimentou-se da
Palavra de Deus. O jejum, tão esquecido pelas igrejas cristãs, devia ser
retomado como peça fundamental da fé. Ele recolhe o Espírito sobre si mesmo;
promove a reflexão, purifica. Vivemos num mundo onde somos levados a ter uma
consciência sobre os que morrem de fome, paradoxalmente querem que esqueçamos
os que morrem na opulência, que são mais que os outros, basta debruçarmo-nos
sobre as doenças do mundo industrializado.
No
Pai Nosso Jesus ensina-nos a pedir o pão de cada dia. Na Última Ceia Jesus
parte o pão e reparte-o pelos presentes. Não se trata de um repasto farto. É
uma Ceia simbólica. Quantos de nós, sabendo que iríamos ser entregues às
autoridades, torturados e mortos, procederíamos de forma idêntica? Aquele Pão é
uma despedida que não é definitiva, ela transcende
o corpo físico e asssume-se como vivência toda espiritual. Antecipa o regresso
de Jesus em ressurreição, símbolo de vida eterna. O Pão da última Ceia é também
o regresso de Jesus às suas raízes campestres: nascceu e foi visitado por
pastores e reis magos; vai ser morto e recorda os agricultores, a terra, o
renascer.
Amar
a Deus na simbólica do deserto e da morte na cruz é difícil. Amar é sempre
difícil. Há um dentro e um fora de nós;
entram em conflito sentimentos que se interpenetram. No amor não há fugas. O
pão mastiga-se, engole-se, sacia. Mata o que nos mataria, a fome. O Pão da
Última Ceia cultua a Fome de encontro definitivo com o Divino, o Amor eterno.
Vivemos
o drama da procura do Amor, desde o deserto à cruz; vivemos a emergência da fé
nos momentos cruciais, aqueles mais íngremes, mais encrespados. Somos actores
de uma dramaturgia não institucionalizada porque o Amor é ligação directa à
Cruz, aos excluídos, ao perdão e aceitação da obra dramática que é a vida.
Ninguem melhor que uma rainha para representar o papel dessa carga simbólica.
Ninguém melhor que Isabel representou esse drama.
A
rainha Santa Isabel repartia o pão pelos que viviam no deserto de nada
possuírem, na cruz de não serem ninguém. Porém, ao receberem aquele pão, os
pobres fazem história e a rainha imortaliza-se como tão cantava Camões: “Aqueles que por obras valerosas se vão da
lei da morte libertando”.
De
Moisés a Jesus, dos pobres a Isabel, rainha Santa, todos são filhos de um mesmo
Pai, alimentados da mesma substância porque, em Cristo: “Já não há senhor nem escravo….”
Aquele
pão trazia consigo a solidão de uma magestade que, incompreendida, tinha nos
pobres os seus maiores aliados.
O
pão é uma metáfora. Na nossa fé, tão poética, o pão é Deus, é Vida, é Amor,
além de alimento, consolo e memória.
Margarida
Azevedo
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