A Máscara Tapa o Corpo, Mas Revela a Alma
Os filósofos gregos da Antiguidade diziam que a
verdadeira natureza das coisas gosta de ocultar-se. Só que o oculto, para ser
oculto, tem que revelar alguma coisa, caso contrário não seria possível dar notícia dele. Ora, nesse jogo entre oculto e revelação temos o Homem que é
quem, por natureza, mais gosta de o fazer.
Se tomarmos como exemplo a linguagem, temos o símbolo, as
formas de estilo, a poesia, as epopeias que vão contando a história uma
inter-acção entre humanos e deuses; mas se nos virarmos para a História, então
temos as lutas, guerras, revoluções movidas por forças interiores
inexplicáveis. Porém, se tomarmos os sonhos como referência, então é aí que
tudo começa.
O onírico é um dos traços mais fortes do edifício
psicológico e espiritual, construindo o sentido da vida em camadas que se vão
sobrepondo com o fim de trazer felicidade. Ou seja, mais que conseguir
concretizar um sonho é dizer que se sonhou e com quê.
E aqui entra a máscara como esse oculto que se esconde e
se revela. Tapar o corpo e o rosto, trajá-lo de uma indumentária fora do comum,
estranha, movimentar o corpo em dança, tudo isso são indícios reveladores de
uma vivência que se não aprendeu em sociedade,
mimetismo de uma realidade, tão real como a social, mas a que só dessa
forma se tem acesso.
Dizer que é uma força do psiquismo, embora seja algo
verdade, não o é de todo. A força que assim se revela impõe-se à própria
pessoa, muito embora a use enquanto
corpo metafórico. Por exemplo, “este
corpo mascarado é o meu corpo que é tão meu na medida em que é doutrem, disto
que se manifesta.” A máscara também é, como se vê, uma cilada: “Onde estou eu e onde está aquela coisa que
se manifesta?” A máscara é uma linguagem que manifesta duas realidades, a
do corpo e a de outra coisa.
Usar a máscara para se esconder totalmente é
completamente impossível porque a escolha não é arbitrária. Mascarar-se de um
boneco estranho, desfilar pelas ruas ao som de tambores é revelador de uma
espiritualidade incisiva e forte, presença de algo que quer ou está a dizer
alguma coisa.
Estar socializado, contrariamente ao que muitos pensam,
não estar des-mascarado. Muito pelo contrário. Trata-se de sobrepor uma máscara
a outra, a do social que se impõe com toda a força, e a escolhida pelo
socializado como forma de integração. A escolhida por ele, no entanto, revela-o
sempre, o que significa que é impossível viver completamente oculto da
sociedade e esta, enquanto tal, tem que estar receptivàs particularidades.
Mas escolher a máscara não é fácil, tal como não é fácil
escolher o modo de a usar nem o momento. Para isso, inteligentemente, foram
criados momentos mais especiais do que outros. O Carnaval e o o Halloween, com toda a sua riqueza, são
desses momentos, talvez os mais reveladores de todos. Eles visam exorcizar o
medo do oculto, do terrífico, do invisível, do incomensurável, do ilícito;
pretendem impôr-se pelo desmedido, o sem fim de um tempo muito longínquo, ma
fundura sem princípio e sem fim. Eles são o atemporal, amoral, a exclusão do
juízo de valor.
O religioso carece desta máscara para existir. Um
ritual, qualquer que ele seja, é sempre um exorcismo; a organização religiosa apenas
e tão somente uma forma peculiar de o interpretar. Daí a importância da máscara,
que faz remontar ao tempo do profeta ou do deus, num mimetismo que visa transportar
o crente a esse tempo, a esse exemplo de espiritualidade e de vivência que se
materializa no plano terreal.
No religioso, a máscara pode ser o paramento, um modo de
o crente se apresentar no recinto do ritual, templo ou garagem, por exemplo, a
importância é a mesma, como pode ser a própria liturgia, o vastíssimo campo
simbólico, a alegoria, a metáfora, o mito; a música, os gritos ou os cânticos,
as danças ou a imobilidade; os alimentos, as comunhões, etc. È o campo da
mimética como meio de transporte a outras vivências, muito antigas, tão antigas
que transcendem o próprio mundo cujo acesso só é possível mascarado.
Em suma, a máscara é reveladora de um “eu” qualquer,
agigantado, maximizado, que afirma e simultaneamente nega uma realidade que se
manifesta na convergência de um corpo enquanto mecanismo vivo, anímico e
finito, mas que, pela acção da mesma se torna infinito. A máscara maximiza o
corpo escondendo-o, ao cobri-lo, mas revela a natureza da alma que a enverga. A
máscara somos nós no mais íntimo de nós mesmos, porque ela é o que é
autenticamente. Usando o corpo e simultaneamente negando-o, é a alma que
enverga a máscara.
Margarida
Azevedo
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