segunda-feira, fevereiro 25, 2013

O SENSO COMUM COMEÇA A DAR OS SEUS FRUTOS II

(Continuação)
Porém, não se confundam as hermenêuticas com uma desvaloração dos profetas de todos os tempos, que continuam actuais. Elas são leituras que acrescentam preciosos sentidos ao texto, representativas de vivências que se objectivam nessas opiniões. Não se perca a noção de que:
Religião e igreja são coisas diferentes;
As religiões são uma coisa, os profetas outra;

Não criar uma religião não é sinónimo de não ter religião;

Jesus e Cristo são coisas distintas;

Evangelho é uma palavra com uma multiplicidade de sentidos;

Verdade histórica não é verdade de fé;

Uma doutrina não significa doutrinas.
Religião (do lat. religare). A grosso modo, define um grupo de crentes unidos pelos mesmos princípios, ritos e liturgias; movimento identificativo de um macro conjunto de seres unidos em torno de uma mesma crença.

Igreja (do gr. ecclesia). Consiste numa congregação dentro da religião: igrejas, seitas (sem qualquer sentido pejorativo), movimentos, doutrinas, grupos familiares, etc., com uma estrutura particularizada.

Exemplo de religiões: Judaísmo, Cristianismo, Islamismo (monoteístas, também chamadas religiões do Livro); Hinduísmo (“politeísta”, também chamada religião da Natureza), Budismo (religião “sem Deus”, também chamada corrente filosófica); etc. Exemplo de igrejas (dentro do Cristianismo): Ortodoxa; Católica; Pentecostal; etc.

Exemplo de movimentos ou grupos (dentro do Cristianismo): Rosacrucianismo; Espiritismo; Testemunhas de Jeová; etc.

O Judaísmo tem inúmeros grupos, talvez um dos mais importantes, ou pelo menos mais conhecido seja o Hassidismo, tal como o Islamismo nos surge com dois grupos relativamente numerosos e importantes, o Sufismo e o Babismo ou Fé Bahá´i, fundado a partir dos ensinamentos reformistas do profeta Bahá´u´Lláh (este movimento grandioso, porém, já passou ao estatuto de religião).

O Hinduísmo, a religião mais antiga do mundo, apresenta-se com uma infinidade de divindades cujo fim é atingir Deus, a Divindade Suprema.

Salientamos ainda que hoje a designação de mono e politeísta está a ser posta em causa pelos estudiosos, mantendo-se a de religiões do Livro e da Natureza; o Budismo como religião sem Deus está a ser repensado. Lembramos que este é portador de um percurso histórico relativamente idêntico ao do Cristianismo. Buddha também não criou religião nenhuma, era hindu, no entanto a partir dele emerge um movimento dentro do Hinduísmo que, mercê da reforma por ele preconizada é hoje o Budismo, com todas as suas subdivisões.

Destes exemplos podemos inferir que os profetas vieram trazer ao mundo uma perspectiva pedagógica ou uma metodologia para atingir Deus, na tentativa de traçar horizontes de esperança. Não abandonaram as suas religiões, pois é impensável um profeta sem religião (a rejeição de Deus ou Materialismo ateu é recente. Mesmo os chamados materialistas da Antiguidade grega, Leucipo e Demócrito, eram crentes).

Isto significa que devemos às nossas interpretações a criação desses movimentos de fé, cujas teses muito embora pareçam estranhas para alguns, foram/são movimentos importantes quando surgiram/surgem e aos quais devemos, por isso, a herança espiritual dos nossos dias.

De um modo geral, os profetas viveram tão pré-ocupados com as suas missões que não perderam tempo em criar novos movimentos, nem parece que tivessem tal facto como missão. O seu principal objectivo foi reformar e reformular velhas questões, traçar hipóteses de conduta e de interpretação usando a sua inspiração e sapiência com a autoridade que só Deus lhes poderia conferir.

Quanto a Jesus, a situação é mais complexa. Não temos o pretensiosismo de em duas linhas fazer uma abordagem a este profeta, apenas dizemos que, colando-se-lhe o Cristo, o Messias redentor, ele representa o homem no seu aspecto mais elevado. Não só é um caminho, como é o Caminho, a Verdade e a Vida. Nenhum profeta o havia dito até ele.

Jesus é uma realidade histórica, um homem carnal como qualquer outro. Teve uma vida pública de pregação muito curta, fez milagres (discutível, para alguns) idênticos aos do Paganismo da sua época, porém “Desde o princípio do mundo nunca se ouviu que alguém abrisse os olhos a um cego de nascença.”,Jo 9:32; sentava-se a todas as mesas, o que escandalizou os seus contemporâneos e correligionários, tinha mulheres apostolas. Sofreu e padeceu por nós, conferindo ao sofrimento um lugar peculiar. Veio trazer um universo de esperança a todos os deserdados, falou a pobres e a ricos. Não excluiu ninguém.

Jesus não criou a religião cristã, mas isso não significa que não tenha tido a sua. Ele foi um judeu exemplar, que frequentava o Templo, que lia e comentava as Escrituras. José e Maria, os seus pais, assim como os apóstolos e alguns dos primeiros cristãos eram judeus. A circuncisão foi feita, numa perspectiva judia, até muito tarde.

Quanto ao Cristo, que não sabemos o que é, devemos-lhe a expressão mais elevada do amor a Deus que, indiscutivelmente, passa pelo outro como o próximo, independentemente do credo religioso. Isto significa que o Cristianismo das origens era um movimento eminentemente plural, que ensinou que amar o próximo faz parte das directrizes espirituais do ser humano. O amor só o é verdadeiramente quando livre de todos e quaisquer interesses, até mesmo dos imperativos religiosos. Por outras palavras, amar deixa de ser um factor religioso, passando ao estatuto de elemento constitutivo da natureza do próprio homem. Desta forma fica reservada à religião a pluralidade de caminhos para Deus, todos igualmente válidos, todos movidos pelo mesmo amor.

Porém, os Mandamentos de Jesus dizem que se deve amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Isto significa que Cristo confere ao amor uma dualidade inseparável: religiosamente amamos a Deus; socialmente amamos o próximo. Um não pode acontecer sem a presença incondicional do outro.

Este amor atinge o seu auge com a inauguração do conceito de pessoa, atribuído ao Cristianismo, na sua leitura vivencial deste vasto processo doutrinal que foi a pregação de Jesus.

Mercê da confusão instaurada, Jesus, o crucificado de há dois mil anos, continua a sê-lo nos tempos que correm: igualmente na praça pública, igualmente por razões de ordem social e política face à opinião desastrosa de dois ou três que se apresentam, tal como diz o e-mail, quais “estrelas que ministram palestras”, que não as há só no Espiritismo.

Mas isso não pode conduzir a uma rejeição do próprio Jesus, e menos ainda do Cristo, de que é a mais elevada expressão. A rejeição, a existir, deve ser a da falsidade dos homens, e com ela a da sua ignorância em matéria de fé.

O que é o evangelho de Jesus? A boa-nova do Reino de Deus, a força impulsiva de que o amor triunfará e que é no amor que encontramos Deus, dentro e fora de nós. Numa época de desejo de vingança perante a potência invasora, de uma religiosidade apegada ao tradicionalismo fanático, surge um judeu que vem reformular a tradição, pô-la em causa, face a uma classe sacerdotal todo-poderosa.

Um espírita não pode continuar a afirmar coisas como: Jesus não teve religião; os evangelhos foram escritos por apóstolos; os evangelhos estão desfasados e são dispensáveis, exclua-se Jesus Cristo dos Centros espíritas. Perguntamos: o que é que fica? Mediunismo? Ensina-se o amor, mas que amor? Com que referência? A moral, mas que moral? A moral é tão falível quanto o próprio homem e muda com o tempo e as eras. A ética, pelo contrário, é a mesma desde que o mundo é mundo. Ser bom é de todos os tempos; como sê-lo depende de factores sociais, psicológicos, religiosos. O modus operandi é condenável ou aceitável segundo as regras do tempo; o móbil permanece.

(continua)

Margarida Azevedo

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Bibliografia

KIELCE, Anton, O Sufismo, Publicações europa-América, Mem-Martins, 1984.

NISENBAUM, Haïm, Qu´est-ce que le hassidisme?. Éditions du Seuil, Paris, 1997.

VÁRIOS, Religiões, História, Textos, Tradições, Paulinas, Prior Velho, 2006.

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