O ANIMAL QUE FALA DE DEUS
Sendo verdade que o nosso cérebro tem uns meros dois minutos na História da Criação, se tomarmos como referência o espaço de vinte e quatro horas, como pensa Hubert Reeves (1), parece-nos plausível que a linguagem, como manifestação conjunta de sensibilidade, alguma racionalidade e campo lexical, tem que ser forçosamente bastante rudimentar.
Esta perspectiva remete-nos inexoravelmente para a necessidade de repensar o nosso processo evolutivo, não só como factor de desenvolvimento intelectivo, mas também como consequente dilatação dos horizontes lexicais.
O que somos? Um animal que fala, que vive as suas percepções, bastante condicionadas pelo inconsciente, que é não mais que o vasto armazém de que os genes nos dão “alguma” informação? Por outras palavras, seremos apenas um símio que fala? Um chimpanzé adaptado a condições sociais que ele mesmo criou, que vive cada vez mais uma vida distante da Natureza?
Por outro lado, a defesa dos animais tem tomado proporções cada vez mais incisivas, objectivas e, principalmente, mais culpabilizantes dos comportamentos nocivos do “chimpanzé falante” para com os seus congéneres. Não poderemos dizer que isso é uma forma de relevar o lado recôndito das nossas origens, que não queremos ver depreciadas, remetidas para o nada de direitos, ausência de valores? Olhar para os animais é reflectirmo-nos, repensarmo-nos na nossa animalidade, é o que parece; mas também a incongruência da nossa “humanidade”: negligência e abandono dos filhos e dos idosos, distância dos laços de grupo, perda da noção de comunidade.
Para muitos, e cada vez mais, esse olhar significa essencialmente uma reflexão antecipada do que virá a ser, neste mundo caracterizado pela transformação, aquele que por hora partilha connosco este planeta apresentando-se com pêlo espesso ou plumagem exuberante, e que um dia o virá a partilhar na condição de um ser radioso. E como nada evolui ao mesmo ritmo, seria muito bom, excelente, que esse ser radioso já fosse o “chimpanzé falante”!
Mas este não é o problema fundamental, parece-nos. O que se nos revela como verdadeiramente digno de menção é o facto de tudo isto parecer que tememos ser os únicos a viver a experiência da racionalidade. Primeiro, porque até agora ela tem-se revelado um presente envenenado, isto é, desconhecemos o que fazer com ela. Aquilo a que chamamos racionalidade tem sido uma forma de alienação dos nossos mesmos direitos enquanto ser animal, racional, espiritual (e o que será tudo isto?). A razão tem-nos conduzido a falácias, tanto assim que até o mundo invisível que dizemos estar ao nosso redor nos engana nos seus discursos, aparentemente racionais.
Parece que esta temeridade de estarmos sozinhos na razão tem sido o móbil para a construção de todo um vasto mundo fantasioso, um mar de códigos, mitos dos quais não conseguimos sair. Este “chimpanzé falante” tem utilizado a sua linguagem ao serviço da construção de um mundo paralelo à Natureza, artificial, descorado, porém atractivo, mas que não passa disso.
Os seres racionais a que chamamos Espíritos são por nós investidos dessa artificialidade linguística de tal forma que o que dizem pode ser outra coisa, só que a nossa razão ainda não é capaz de descodificar. Por outras palavras, não sabemos realmente o que são nem quem são. Afirmar que são os seres racionais que viveram na Terra é muito pouco. É apenas uma forma de não calar a sua existência, de os sentir perto e tão longe. Falam como nós, partilham connosco a experiência da linguagem, são os nossos congéneres em matéria discursiva, porém em dimensões que nos escapam. Do inferior ao superior vivemos a ignorância característica da nossa própria animalidade. Animalidade que em nós é desconcertante, pois já é espírito aflito no seu corpo, ténue apresentação do indizível.
Assim, urge perguntar: O que estará para além da razão? Porque têm falado contra ela as religiões? O fenómeno religioso apresenta-se como um caminho para uma nova discursividade para a qual a razão tem sido encarada como o inimigo principal. Hoje pretende-se o equilíbrio entre ambas. Mas isso não anula a fragilidade da razão. Não é porque ela está a tomar lugar no altar da adoração que se torna mais clara e convincente. A razão não pode ser adorada como um deus. A razão falha como aquele que a produz, assim como a fé que falha como aquele que acredita. Parece que estamos encurralados.
É a vertente animal a querer dar-se ares de grandezas na luta pela rejeição do símio que ainda é, e sê-lo-á por muito mais tempo. Procuramos o sentido dos sentidos, a palavra das palavras, a alteridade que a cada passo se faz sentir, altaneira.
Fé e razão, eis o grande binómio responsável por grandes momentos de contradição e lutas emancipadoras. Elas mais não são que o despotismo entre mitos e as formas diferentes de os encarar.
Desta forma, que fazer se um ser muito especial nos aparecesse de um momento para o outro? Um ser com outro sentido discursivo, outra fé, outro objectivo para o conhecer, descobrir? Um ser que nos desvendasse mistérios, tirasse o véu que cobre esta animalidade tão nossa? Que fazer se um ser nos quisesse, por momentos, retirar toda a simialidade que ainda nos caracteriza? Um ser que nos descobrisse (= tirasse a cobertura) perante nós mesmos, o mundo, o universo?
Não deturparíamos o seu discurso? Em que medida poderíamos afirmar que atingíamos o sentido que está para além do nosso?
Se lhe chamarmos Jesus, verificamos que estamos longe de compreender o alcance das suas afirmações. Ele não pretendeu impor-nos Deus, não nos legou qualquer explicação, palavra que O dissesse. Deus não se diz, vivencia-se, caminha-se para Ele. Foi isso que Jesus nos veio ensinar. Ele falou do Reino de Deus, não de Deus. A nossa animalidade está aquém de um discurso da sublimidade. Os exemplos que deu ao longo da sua vida pública, através das parábolas, foram todos eles referentes ao mundo em que vivemos, à nossa realidade, aos nossos modos de vida. Não podia ser de outro modo.
Porém, nem por isso deixaram de ser desconcertantes. Ensinar a um animal bípede os caminhos do Reino de Deus é senti-lo numa encruzilhada, perceber que atingiu um ponto de viragem, um grande momento.
Que símio é este que, na sua animalidade, já consegue pensar que há um Reino que é de Deus, movido por um ser que parece vir de um mundo longínquo, para o qual toda e qualquer discursividade não faz sentido, mas que está empenhado em novos actos e novas perspectivas?
Pensar no Reino de Deus é deslumbrante, tendo em consideração que vem de um símio. Como o fará quando deixar de o ser? Mais três gramas de cérebro é o que nos distancia do chimpanzé. É bom não esquecer.
Margarida Azevedo
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(1) HUBERT, Reeves, A Hora do Deslumbramento, Terá o Universo um Sentido?, Lisboa, Gradiva, 1986, pp. 52-53.
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