quarta-feira, abril 03, 2013

PÁSCOA EM ORAÇÃO


A quadra que atravessámos encerra o dogma mais importante do Cristianismo, a morte e ressurreição de Jesus. Independentemente das interpretações que os diversos grupos cristãos lhe conferem, o certo é que podemos dizer, sem ferir susceptibilidades igrejeiras, que a Paixão e Morte de Jesus dão à morte um carácter transitório, relativizando-a.

Se por meio do Paganismo celebramos os ritos de passagem, que acompanham as fases da vida como a Natureza as estações do ano, com Cristo somos introduzidos num novo sentido vivencial, mais abrangente, a saber, a morte é a grande passagem para um reino que não é deste mundo.

Este novo conceito de morte introduz o crente na relativização e efemeridade da vida. Viver é inaugurar uma dimensão escatológica, isto é, lutar por um fim de beatitude, um juízo final justo e uma ressurreição em graça. A vida deixa de ter valor em si mesma. O seu valor reside nesse projecto e na perseguição do mesmo.

Vida, o que é a vida? Viver em Cristo, procurar o Reino de Deus que, sem ele, não é possível atingir.

O que procuramos, nós cristãos, com a Páscoa? Que universo de esperança nos traz uma morte na cruz que marcou para sempre a humanidade?

Procuramos o juízo final, chamemos-lhe assim. Um juízo que seja o último de todos os nossos feitos, o derradeiro aval de todos os nossos actos. Precisamos de saber, de uma vez por todas, a que mundo iremos pertencer, qual a nossa escala de valores, que peso tem a nossa fé, que índole a nossa consciência. Temo-nos sempre em grande conta, mas temos também uma voz que, lá bem no fundo, diz que há qualquer coisa que não está bem.

Procuramos a parusia. O regresso em glória de Cristo, a segunda vinda, no fim dos tempos, isto é, quando for chegada a hora do términus desta falsa civilização. Como ensina o Evangelho, Jesus voltará para separar as ovelhas dos cabritos, os mansos serão recompensados e os maus seguirão em outras direcções, outros rumos em novas catarxis.

Procuramos o reino messiânico. Uma vivência de paz que só é possível num reino sem história. Queremos uma vida sem interesses, sem ambições, sem desavenças. Um lugar e um tempo completamente superados pelo ideais humanos e nos quais a nossa discursividade seja palavra gloriosa.

Com Cristo e por meio da Cruz aprendemos que o comportamento ético faz sentido, porque inserido num quadro espiritual que o projecta para novos e mais abrangentes horizontes de esperança.

Podemos observar tudo isto num contexto profético. Não são nem foram poucos os avisos que fomos recebendo, ao longo da História. Somos herdeiros de um historial imenso de propostas de saída da nossa situação de problematicidade, incoerências perdidas em existências gastas no falacioso característico das ambições. Jamais nos faltaram os profetas, somos vivência de “nãos” que se foram acumulando.

Mas também podemos encarar tudo isto numa perspectiva apocalíptica. Acreditamos num mundo renovado, uma nova civilização, um novo contexto da fé, um fim radical, definitivo, sem apelo nem agravo, de todas as estruturas que por ora fazem sentido. Temos fé num fim destas verdades, destas certezas, destes saberes, desta fé. Sabemos que iremos ter uma nova fé, uma nova religiosidade, uma nova espiritualidade, um novo querer, novos desejos. Temos fé na transformação do mundo e da História.

O que é transformar? É uma coisa passar a ser outra; adquirir uma configuração que nada tem a ver com a primeira. Nós somos essa massa humana que aguarda a nova configuração da fé, e de todas as outras coisas das quais não temos a menor noção.

A Páscoa é essa transformação. A Morte é Vida. Assim, a vida não tem apenas sentido mediante uma luta por melhores condições materiais; ela passa à condição de meio para atingir fins que transcendem essas condições, torna-se caminho para um reino que não é deste mundo.

Com os evangelhos sinópticos, o Reino de Deus que Jesus pregou é um espaço que está fora de nós, mas ao nosso alcance mediante o modo como vivemos a fé, a qual depende do modo como estamos no mundo. No evangelho copta e gnóstico de Tomé, o reino de Deus está dentro de nós, no mundo.

Podemos dizer que a espiritualidade encerra estes dois aspectos: procuramos qualquer coisa que está fora, mas cujo caminho está dentro de nós. Dito de outro modo, vivemos uma dicotomia espiritual, o interior e o exterior, o que está dentro e o que está fora, nesta luta constante pela superação dos nossos erros, limites, as nossas finitudes.

Um dos aspectos centrais da Páscoa, e que percorre toda a vida pública de Jesus, centra-se no problema da identidade. Quem é realmente Jesus? (Mt 26: 63; 27:11 Mc 14: 61; 15:2; Lc 22: 67, 70; 23: 3; Jo 18: 33, 37). Infelizmente, esta questão está longe de ser respondida. A Páscoa pode imortalizá-lo, mas o sentido profundo da questão permanece em aberto. Jesus, o Cristo, o Filho do Deus vivo, tudo isto são demasiados conceitos que a nossa vivência espiritual ainda não descortina.

Porém, tal não é problema para os pagãos, que continuam a desempenhar um papel preponderante na identificação de Jesus. Cabe a um centurião romano, aos pés da cruz, a afirmação “Verdadeiramente este era filho de Deus “( Mt 26:54. Também em Mc 15: 39; Lc 23: 47)

A Páscoa convida-nos à reinterpretação, a uma flexão dos nossos pensamentos sobre esta presença dentro e fora de nós.

O Reino de Deus eterniza a nossa necessidade de modificação interior. Há sempre um resíduo de insatisfação, os nossos actos apoucam-se, por mais céleres que sejam; o nosso horizonte hermenêutico está dependente e é fruto do aqui e agora. A vida dita as linhas interpretativas, mas a fé é sempre insaciável na sua ânsia sobre-humana desse Reino.

A Páscoa faz-nos procurar as nossas virtudes. A santidade é a mais rica. Para atingi-la, há que viver escatologicamente a fé. Cada dia é o último, cada dia é uma derradeira oportunidade que jamais se repetirá. Caminhamos irremediavelmente para um fim deste sentido que possuímos, ainda tão desconexo, mas também para o fim da nossa situação de problema, das labutas e das dores que todos os dias nos acompanham.

Margarida Azevedo

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