O TRIGO E O JOIO
As associações Espíritas de Portugal
têm tido desde sempre as suas portas abertas aos palestrantes brasileiros o que
tem contribuído para o estabelecimento de laços fraternais entre os espíritas
dos dois países. Infelizmente, ter-se como natural da Pátria do Evangelho*, como se isso fosse possível, pois não passa
de uma afirmação xenófoba, como é
natural, não pode constituir garantia
de sapiência doutrinária.
Ora, se têm vindo até nós irmãos
que nos trazem excelentes trabalhos, outros melhor fora que não se tivessem
dado ao trabalho de cruzarem o Atlântico. Vem isto a propósito de uma
conferência sobre Saúde Mental e Evangelho. A aludida conferência, que encheu a sala, não mencionou uma palavra sobre
uma coisa, ou sobre a outra. Foi totalmente omissa.
O orador, de vasta obra literária
publicada, utilizava o nome de Chico Xavier porque, sabendo que no Espiritismo
quem se intitule amigo carnal do referido médium tem cartão de entrada livre em
tudo o que é Centro Espírita, não se poupou a exemplos biográficos, a
referências ao seu trabalho como médium, a pormenores do convívio com ele numa
tentativa de incutir no auditório que estava perfeitamente à altura da
confiança do referido mentor.
A saúde mental ficou pelo caminho, as
citações do Evangelho também, e o que o orador pensa a propósito de tudo isso,
em que se baseou e quais os objectivos da conferência ainda dormem no tinteiro
da impressora. Nem palavra.
Mas não se pense que o público
desarmou. Bem pelo contrário. Estava embevecido. O discurso expelia luz a cada
palavra, a cada sílaba, a cada olhar mais ou menos intenso. O discurso
implicou, envolveu, tornou cúmplice cada ouvinte, fazendo-o sentir-se espelhado
em cada palavra, envolvendo-o na perigosa suposta evidência da explanação, e
assim silenciando cada cérebro de per si.
Podemos dizer que todos se sentiram privilegiados por terem a felicidade de
estar ligados a uma doutrina que os presenteia com tão nobres quão sublimes lições
de luz.
Numa espécie de transe
discursivo, galvanizando o auditório e transpondo-o a sensações de alegria e de
felicidade que diríamos extáticas, ninguém pestanejava, numa perturbação entregue
a um misto de desconforto e libertação. Primeiro por todos concluírem que estavam
cá muito em baixo, eram muito inferiores ao orador, que tinham muito que caminhar
para chegar ao seu nível, segundo porque as palavras ouvidas eram libertadoras
dos grilhões das trevas, que o discurso se tornou um passe qual bálsamo do tipo
água-benta purificadora.
Piorando um pouco mais,
alimentou-se a ideia, muito comum porque pré-estabelecida, de que o tão grande
médium tinha ao seu redor e ao seu serviço Entidades de grande gabarito, que o
inspiram na escrita e na oralidade. Ouvi-lo e lê-lo é estar em contacto com as
referidas Entidades, receber os seus gloriosos ensinamentos.
Daí, porque sobejamente conhecido
pelo perspicaz orador, não lhe foi difícil perscrutar as mentes, dizer o que
estas queriam ouvir, tornando-se-lhe fácil a tarefa enganosa. Ele soube, numa
dose quanto baste, tornar perturbador o discurso, manipular as consciências
ávidas de alva pureza, utilizar os mais ocos sentidos das palavras,
mascarando-as e travestindo-as de conceptualizações científicas. Do livro cujo título
tem o mesmo nome da conferência, e que terá sido ditado por uma das Entidades
que se comunicam com o orador, também se pouco falou, até porque o livro estava
á venda e quem quiser saber mais… é só comprar!
É lamentável que o público espírita
seja tão intolerante quando não o deve ser, e tão submisso aos aparatos da
retórica falaciosa de pessoas sem escrúpulos, que espalham a sua ignorância
como verdades absolutas.
É certo que todos estamos a caminho
de qualquer coisa que denominamos Bem, mas nem todos estão no caminho. O
Espiritismo tem vindo a revelar-se uma doutrina fácil para os charlatães desde
que enveredou pelo caminho da ignorância. Falam de ciência, mas onde estão os
profissionais das mais diversas áreas, dos diferentes colégios de
especialidades? Não os vemos a trabalhar nos Centros. Porquê? “Porque não são espíritas”, respondem
alguns. Mas então, há átomos espíritas e não espíritas, células, animais,
plantas; há matemática espírita, notas musicais espíritas? Desconhecíamos.
E quanto às literaturas e línguas, à
história e à filosofia. Há verbos e gramáticas espíritas?
Só
é história a história do espiritismo, e a filosofia também?
Por isso a Doutrina está
completamente isolada face às demais, socialmente marginalizada, confundida com
bruxaria, artes adivinatórias, remetida para o sótão onde predominam as teias
de aranha. Entregue ao preconceito de que quem está no Espiritismo está no bom
caminho, não precisa da opinião de mais ninguém, vive o devaneio do
orgulhosamente só, presa nas mãos de uns quantos que vêm nela o meio de se
evidenciarem, numa ânsia doentia de protagonismo estéril e inconsequente, gente
sem escrúpulos que não olha a meios para atingir os fins.
Isolada, a Doutrina tornou-se palco
de teorias sem nexo, onde tudo é possível ser dito, excluindo o indispensável
espírito crítico, salutar quão libertador, uma vez que os entendidos nas
matérias são os excluídos, alvos preferenciais das bocas maldizentes das trevas
inescrupulosas.
Oração e Evangelho é do que se
precisa. Libertar-se de retóricas, das seduções discursivas. É hora de a
Doutrina se envolver de verdades vividas por cada um de nós, pois todos
possuímos a nossa verdade sentida na carne, na luta de cada dia, no crescimento
difícil e árduo, por vezes ou sempre, neste caminhar para um cimo que não
definimos, mas que queremos com todas as forças.
Mas também é hora de nos envolvermos com ela
com veemência e determinação, e dizermos aos discursos fúteis das trevas “Não vos queremos cá, apartai-vos de nós”.
Precisa-se da troca urgente de
testemunhos, da partilha de experiências, do convívio são e honesto; precisa-se
da luta pela verdade acima de todas as coisas. Não é por falar de amor que mais
se ama. É no terreno que se dão provas do amor.
Vigiar e orar, passar tudo pela
razão. Porém, se estes adoecerem, estamos perdidos.
Não é por muito vigiar, nem por
muito orar, nem por muito usar a razão que está o garante da verdade e do amor.
É na sapiência de com estes se afinizam que está o segredo.
Fica apenas esta sugestão:
procurar, antes de tudo, o Reino de Deus, tudo o mais…
Margarida Azevedo
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· * Entendemos
por Pátria do Evangelho o coração do homem/mulher renovado e
livre, entregue ao bem-fazer, com o objectivo de atingir o Reino de Deus. Foi desse
Reino que Jesus veio dar testemunho.
Reduzir tal expressão a uma
dimensão geográfica, ou a outra qualquer é aprisiona-la, retirando-lhe a
universalidade.
1 Comments:
É fácil conhecer o verdadeiro espirita; Mateus-Cap.10;1 E, chamando a si os seus doze discípulos, deu-lhes autoridade sobre os espíritos imundos, para expulsarem, e para curarem toda sorte de doenças e enfermidades.
2 Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão;
3 Felipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu;
4 Simão Cananeu, e Judas Iscariotes, aquele que o traiu.
5 A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo: Não ireis aos gentios, nem entrareis em cidade de samaritanos;
6 mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel;
7 e indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus.
8 Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai.
9 Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre, em vossos cintos;
10 nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de alparcas, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento.
Mesmo assim houve um Judas.
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