CAUSA PRIMÁRIA OU CAUSA PRIMEIRA
“Qu´est-ce que Dieu?
“Dieu est l´intelligence suprême, cause première de
toutes choses.”
Le Livre des
Esprits (1)
Em qualquer doutrina, o modo como se
lêem as primeiras palavras, ou o primeiro versículo é decisivo para a
interpretação e, consequentemente, para a vivência da doutrina em estudo.
Por exemplo, para fazer uma tradução da Bíblia Cristã
(NT), terá que munir-se, previamente, dos seguintes materiais: um bom
dicionário de grego, um bom dicionário de grego bíblico, obras de bons comentadores dos livros
bíblicos, cada um de per si, obras sobre as temáticas e técnicas literárias contemporâneas dos textos que vai
traduzir, isto é, uma história da literatura clássica, uma história de Roma,
muito concretamente do Império Romano, uma história do povo hebraico e do
Judaísmo, obras generalistas fazendo uma abordagem sistemática sobre s diáspora
judaica e a consequente influência da filosofia grega no pensamento judaico, por
exemplo, a importância da retórica para as pregações, a importação de conceitos,
isto tudo sem falar de sólidos conhecimentos gramaticais, teológicos e
exegéticos. Sem isto, pode-se saber muito bem linguas clássicas, nunca se será
um tradutor. Pode-se não ser crente, nem tem por que se ser, mas bem
apetrechado de materiais e com objectivos sérios far-se-á, certamente, uma boa
tradução.
O Espiritismo não foge à regra. Se se tiver em atenção
que o Espiritismo parte de uma das religiões do Livro, o Cristianismo (as
outras são o Judaímo e o Islamismo), facilmente se constata que a linguagem é o
mais importante para o bom entendimento da doutrina e dos seus seguidores.
Muitos são os que afirmam que as palavras não são importantes, que a nossa
linguagem é pobre para definir coisas que não são deste mundo. Ora os textos
estão no mundo e são para o mundo. Se não se sabe lê-los, porque o que está
escrito aponta para outras realidades, então estamos no bom caminho para a
alucinação colectiva. Estamos dependentes de interpretações, leituras que se
vão desenvolvendo à medida que os conhecimentos se tornam mais sólidos e as
pesquisas científicas mais alargadas. Daí vivermos envolvidos em conceitos e
mais conceitos que nos dão muito jeito.
E é o que se passa assim que se começa a ler o Livro dos
Espíritos. Independentemente das opiniões
que circulam nos meios espíritas sobre se Deus é causa primária ou primeira,
parece-nos, em nosso entender, que a questão é desconexa, porque não se trata
de uma questão linguística mas teológica. Por exemplo, numa corrida ninguém
confunde que o primeiro a chegar à meta é o melhor e que antes dele não há
nenhum; consequentemente, o que que fica em último é primário face ao primeiro,
ainda que tenha muito boas capacidades físicas.
Sem querermos entrar em polémicas, que para nós não as
há, quer neste quer nos demais temas referentes à Doutrina, basta ler
atentamente a resposta à pergunta supramencionada. A palavra é première e não primaire.
Tal como em português primeira e primária são palavras diferentes. Se fossem
equivalentes não haveria necessidade de duas palavras, bastaria uma só. Vejamos
o que nos dizem os dicionários:
“Premier, ière, adj.
Primeiro, o mais antigo de uma ordem cronológica, de uma classe, etc.//
Primeiro, o principal, o mais importante.// Primeiro, primário, primitivo.// Le
premier venu, o primeiro que chegar ou aparecer.// Fig. La cause première, a
causa primária, Deus.// (…) Tout le premier, o primeiro, antes de todos os
mais.” (p. 1160). ( A)
“Primaire, adj. Primário,
de primeiro grau (a subir). (…) S. m. Deprec. Aquele que tem um horizonte
intelectual limitado.” (Idem, p.1167). (A)
“Premier, adj. primeiro, principal; melhor; primário, primitivo; “
(B)
“Primaire, adj. Primário, primitivo. “ (B)
Se tomarmos em consideração que, em Aristóteles, a Filosofia
Primeira ou Metafísica é a ciência que estuda as primeiras causas e os
primeiros princípios (não os primários), se se perceber que, teologicamente,
Deus é a causa de todas as coisas, sem quaisquer qualificativos, se tomarmos em
consideração que, para o Judaìsmo, não se pronuncia o nome de Deus YHVH, o
Tetragrama, cuja leitura se perdeu, sendo substituído pela palavra Adonai, e ao
qual está intimamente ligada a noção de existência e libertação (da escravidão
do Egipto), dizer que Deus é uma causa primária é não alcançar, minimamente, a abrangência
da temática em questão.
Ainda que o dicionário de língua diga primária, não o dirá jamais o de
teologia. Além disso, o dicionário de língua afirma, peremptoriamente, que
primário é o de primeiro grau a subir, ou seja, não é o primeiro de grau
superior. Por outras palavras, temos o primeiro de grau superior, o que ganhou
a corrida, e temos o primeiro ou primário, aquele que é o mais elementar e que
está no lugar derradeiro. Daí instalar-se a confusão. Assim sendo, vejamos o
que diz um dicionário de teologia sobre o que é Deus:
“Deus. Puro espírito, eterno, imutável, perfeito
e todo-poderoso, fonte de todos os seres e de todas as coisas.(…) Deus não é
mundano. O universo material é-lhe estranho, mas ele é a sua causa. O universo
do tempo e do espaço não lhe dizem respeito, mas ele é o seu criador. De facto,
é quando colocamos a nós próprios as questões fundamentais (porquê algo em vez
de nada?, porquê a duraçao da vida?, porquê o fim da vida?) que aparece a
eventualidade da existência de Deus. Como fundamento, como explicação, como
mistério, ou melhor, como veste do mistério, como palavra cobrindo o mistério,
como ser justificando o mistério. (…) se Deus existe, é a fonte, o meio e o fim. Está na terra mais
pela vida dos crentes do que pela palavra que dele se possa dizer. (…)” (C)
“O Deus verdadeiro. Naturalmente, Deus é verdadeiro, infinito,
omnipresente, todo-poderoso, eterno, e
por isso mesmo os panteístas identificaram-no com o todo do Universo e os
politeítas multiplicaram-lhe os rostos. Mas, para a maioria, ele é, também e
antes de mais, alguém dotado de
pessoalidade,que se exprime fora e dentro do homem muito para além das simples
manifestações exteriores do mundo, que cria com cada um de nós uma relação toda
ela de intimidade e de convicção (…)” (C)
Ao ler atentamente esta explicação, jamais uma definição,
porque definir significa delimitar,
indicar o verdadeiro sentido, a significação precisa de, retratar (alguém ou a
si mesmo) pelos caracteres distintos (…) (D), e Deus não é passível de tal, verificamos que a Deus não são atribuídos
qualificativos do tipo bom, primeiro, primário, mas sim atributos. Por exemplo,
dizer que Deus é verdadeiro não é uma oposição ao vocábulo mentiroso, mas sim
que não contém impureza, mescla, mistura. Na resposta à pergunta n.º 3 do Livro
dos Espíritos:
“Pourrait-on
dire que Dieu c´est l´infini?
Définition incomplète. Pauvreté
de la langue des hommes qui est insuffissante pour définir les choses qui sont
au-dessus de leur intelligence.” (2)
não
é dito que Deus não se define, mas que a linguagem dos homens é pobre para o
definir. Isto deixa entender que, se a linguagm fosse rica esta defini-lo-ia.
Ora Deus definido não é Deus porque simplesmente não se trata de pobreza ou
riqueza da linguagem. A questão ou o acento tónico não está nas palavras, mas
na própria natureza de Deus que, ela sim, escapa a toda a linguagem. Deus é um
não-dito, não é aprisionável em vocábulos, conceitos, formulações/fórmulas
linguísticas. Caso contrário, seria abordável pela ciência.
Em suma, o que é Deus? A respostta encontra-se
no versículo mais lido de toda a Bíblia Hebraica, e que tem múltiplas
traduções: “Eu sou o que sou.”, Ex
3:14.
Margarida Azevedo
Tradução
(1)
“1. O que é
Deus?
Deus é a
inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas.”
(2)
“3.Poder-se-á
dizer que Deus é o infinito?
Definição
incompleta. Pobreza da linguagem dos homens que é insuficiente paa definir as
coisas que estão acima da sua inteligência.” (Trad. Margarida Azevedo)
Bibliografia
Obra espírita
KARDEC,
A., Le Livre des Esprits, Les editions
Philman, Saint-Armand-Montrond, 2002, pp.1.
Obra não espírita consultada
ARMSTRONG,
Karen, Uma História de Deus, Temas e
Debates, Lisboa, 1999, No Princípio,
pp.25-62.
Dicionários citados
A. AZEVEDO,
Domingos de, Grande Dicionário Francês/Português,
Editora de Livros, Lda., Lisboa, 1992, 4.º vol.
B. CARVALHO, Olívio
de, Dicionário de Francês-Português, Porto
editora, Lda., Porto, 1980.
C. COMTE, Fernando,
Dicionário Temático Larousse, civilização
Cristã, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2000.
D. FRANCO, F.M.de
M, VILLAR, M. de S., ALMEIDA, J.A.A., CASTELEIRO, J.M., Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss
de Lexicografia – Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa, 1003, tomo III.
Dicionários consultados
ROBERT, Paul, Le Petit Robert, Dictionnaire de la Langue
Française, 107, avenue Parmentier, 75011, Paris, 1990.
Dictionnaire
actuel de la langue française, Flammarion, Paris, 1991.
PEREIRA, Isidro,
S.J., Dicionário Grego-Português e Português-Grego,
Livraria A.I., Braga, 1998.
Bíblia
citada
Bíblia
Sagrada,
trad., ALMEIDA, J.F., Sociedade Bíblica, Lisboa, 1979.
Bíblias
consultadas
Bíblia
de Jerusalém, Paulus,
São Paulo, 2002.
Tradução
do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, Edição Brasileira, 1967.
Bíblia
Sagrada, Verbo,
Lisboa, 1976.
La
Bible, Traduction
oecuménique TOB, Bibli´o - Société Biblique Française, Les Éditions du Cerf,
Paris, 2010.
Sites:
Wikipédia –
Metafísica (Aristóteles)
Portaldaphilosophia.blogspot.com.
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