quinta-feira, outubro 05, 2017

CAUSA PRIMÁRIA OU CAUSA PRIMEIRA




“Qu´est-ce que Dieu?

“Dieu est l´intelligence suprême, cause première de toutes choses.”

Le Livre des Esprits (1) 

       Em qualquer doutrina, o modo como se lêem as primeiras palavras, ou o primeiro versículo é decisivo para a interpretação e, consequentemente, para a vivência da doutrina em estudo.

            Por exemplo, para fazer uma tradução da Bíblia Cristã (NT), terá que munir-se, previamente, dos seguintes materiais: um bom dicionário de grego, um bom dicionário de grego bíblico,  obras de bons comentadores dos livros bíblicos, cada um de per si, obras sobre as temáticas e técnicas  literárias contemporâneas dos textos que vai traduzir, isto é, uma história da literatura clássica, uma história de Roma, muito concretamente do Império Romano, uma história do povo hebraico e do Judaísmo, obras generalistas fazendo uma abordagem sistemática sobre s diáspora judaica e a consequente influência da filosofia grega no pensamento judaico, por exemplo, a importância da retórica para as pregações, a importação de conceitos, isto tudo sem falar de sólidos conhecimentos gramaticais, teológicos e exegéticos. Sem isto, pode-se saber muito bem linguas clássicas, nunca se será um tradutor. Pode-se não ser crente, nem tem por que se ser, mas bem apetrechado de materiais e com objectivos sérios far-se-á, certamente, uma boa tradução.

            O Espiritismo não foge à regra. Se se tiver em atenção que o Espiritismo parte de uma das religiões do Livro, o Cristianismo (as outras são o Judaímo e o Islamismo), facilmente se constata que a linguagem é o mais importante para o bom entendimento da doutrina e dos seus seguidores. Muitos são os que afirmam que as palavras não são importantes, que a nossa linguagem é pobre para definir coisas que não são deste mundo. Ora os textos estão no mundo e são para o mundo. Se não se sabe lê-los, porque o que está escrito aponta para outras realidades, então estamos no bom caminho para a alucinação colectiva. Estamos dependentes de interpretações, leituras que se vão desenvolvendo à medida que os conhecimentos se tornam mais sólidos e as pesquisas científicas mais alargadas. Daí vivermos envolvidos em conceitos e mais conceitos que nos dão muito jeito.

            E é o que se passa assim que se começa a ler o Livro dos Espíritos.  Independentemente das opiniões que circulam nos meios espíritas sobre se Deus é causa primária ou primeira, parece-nos, em nosso entender, que a questão é desconexa, porque não se trata de uma questão linguística mas teológica. Por exemplo, numa corrida ninguém confunde que o primeiro a chegar à meta é o melhor e que antes dele não há nenhum; consequentemente, o que que fica em último é primário face ao primeiro, ainda que tenha muito boas capacidades físicas. 

            Sem querermos entrar em polémicas, que para nós não as há, quer neste quer nos demais temas referentes à Doutrina, basta ler atentamente a resposta à pergunta supramencionada.  A palavra é première e não primaire. Tal como em português primeira e primária são palavras diferentes. Se fossem equivalentes não haveria necessidade de duas palavras, bastaria uma só. Vejamos o que nos dizem os dicionários:

                Premier, ière, adj. Primeiro, o mais antigo de uma ordem cronológica, de uma classe, etc.// Primeiro, o principal, o mais importante.// Primeiro, primário, primitivo.// Le premier venu, o primeiro que chegar ou aparecer.// Fig. La cause première, a causa primária, Deus.// (…) Tout le premier, o primeiro, antes de todos os mais.” (p. 1160). ( A)

                Primaire, adj. Primário, de primeiro grau (a subir). (…) S. m. Deprec. Aquele que tem um horizonte intelectual limitado.” (Idem, p.1167). (A)

                Premier, adj. primeiro, principal; melhor; primário, primitivo; “ (B)

                Primaire, adj. Primário, primitivo. “ (B)

 

            Se tomarmos em consideração que, em Aristóteles, a Filosofia Primeira ou Metafísica é a ciência que estuda as primeiras causas e os primeiros princípios (não os primários), se se perceber que, teologicamente, Deus é a causa de todas as coisas, sem quaisquer qualificativos, se tomarmos em consideração que, para o Judaìsmo, não se pronuncia o nome de Deus YHVH, o Tetragrama, cuja leitura se perdeu, sendo substituído pela palavra Adonai, e ao qual está intimamente ligada a noção de existência e libertação (da escravidão do Egipto), dizer que Deus é uma causa primária é não alcançar, minimamente, a abrangência da temática em questão.

            Ainda que o dicionário de língua diga primária, não o dirá jamais o de teologia. Além disso, o dicionário de língua afirma, peremptoriamente, que primário é o de primeiro grau a subir, ou seja, não é o primeiro de grau superior. Por outras palavras, temos o primeiro de grau superior, o que ganhou a corrida, e temos o primeiro ou primário, aquele que é o mais elementar e que está no lugar derradeiro. Daí instalar-se a confusão. Assim sendo, vejamos o que diz um dicionário de teologia sobre o que é Deus:

                Deus. Puro espírito, eterno, imutável, perfeito e todo-poderoso, fonte de todos os seres e de todas as coisas.(…) Deus não é mundano. O universo material é-lhe estranho, mas ele é a sua causa. O universo do tempo e do espaço não lhe dizem respeito, mas ele é o seu criador. De facto, é quando colocamos a nós próprios as questões fundamentais (porquê algo em vez de nada?, porquê a duraçao da vida?, porquê o fim da vida?) que aparece a eventualidade da existência de Deus. Como fundamento, como explicação, como mistério, ou melhor, como veste do mistério, como palavra cobrindo o mistério, como ser justificando o mistério. (…) se Deus existe, é a  fonte, o meio e o fim. Está na terra mais pela vida dos crentes do que pela palavra que dele se possa dizer. (…)” (C)

                O Deus verdadeiro. Naturalmente, Deus é verdadeiro, infinito, omnipresente, todo-poderoso,  eterno, e por isso mesmo os panteístas identificaram-no com o todo do Universo e os politeítas multiplicaram-lhe os rostos. Mas, para a maioria, ele é, também e antes de mais, alguém dotado  de pessoalidade,que se exprime fora e dentro do homem muito para além das simples manifestações exteriores do mundo, que cria com cada um de nós uma relação toda ela de intimidade e de convicção (…)”  (C)

            Ao ler atentamente esta explicação, jamais uma definição, porque definir significa delimitar, indicar o verdadeiro sentido, a significação precisa de, retratar (alguém ou a si mesmo) pelos caracteres distintos (…) (D), e Deus não é passível de tal, verificamos que a Deus não são atribuídos qualificativos do tipo bom, primeiro, primário, mas sim atributos. Por exemplo, dizer que Deus é verdadeiro não é uma oposição ao vocábulo mentiroso, mas sim que não contém impureza, mescla, mistura. Na resposta à pergunta n.º 3 do Livro dos Espíritos:

                “Pourrait-on dire que Dieu c´est l´infini?

                Définition incomplète. Pauvreté de la langue des hommes qui est insuffissante pour définir les choses qui sont au-dessus de leur intelligence.” (2)

 

não é dito que Deus não se define, mas que a linguagem dos homens é pobre para o definir. Isto deixa entender que, se a linguagm fosse rica esta defini-lo-ia. Ora Deus definido não é Deus porque simplesmente não se trata de pobreza ou riqueza da linguagem. A questão ou o acento tónico não está nas palavras, mas na própria natureza de Deus que, ela sim, escapa a toda a linguagem. Deus é um não-dito, não é aprisionável em vocábulos, conceitos, formulações/fórmulas linguísticas. Caso contrário, seria abordável pela ciência.

Em suma, o que é Deus? A respostta encontra-se no versículo mais lido de toda a Bíblia Hebraica, e que tem múltiplas traduções: “Eu sou o que sou.”, Ex 3:14.

 

         Margarida Azevedo

 

Tradução

(1)     1. O que é Deus?

Deus é a inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas.”

(2)     “3.Poder-se-á dizer que Deus é o infinito?

Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens que é insuficiente paa definir as coisas que estão acima da sua inteligência.”  (Trad. Margarida Azevedo)

Bibliografia

                Obra espírita

KARDEC, A., Le Livre des Esprits, Les editions Philman, Saint-Armand-Montrond, 2002, pp.1.

                Obra não espírita consultada

ARMSTRONG, Karen, Uma História de Deus, Temas e Debates, Lisboa, 1999, No Princípio, pp.25-62.

 

                Dicionários citados

A.       AZEVEDO, Domingos de, Grande Dicionário Francês/Português, Editora de Livros, Lda., Lisboa, 1992, 4.º vol.

B.      CARVALHO, Olívio de, Dicionário de Francês-Português, Porto editora, Lda., Porto, 1980.

C.      COMTE, Fernando, Dicionário Temático Larousse, civilização Cristã, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2000.

D.      FRANCO, F.M.de M, VILLAR, M. de S., ALMEIDA, J.A.A., CASTELEIRO, J.M., Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia – Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa, 1003, tomo III.

 

Dicionários consultados

ROBERT, Paul, Le Petit Robert, Dictionnaire de la Langue Française, 107, avenue Parmentier, 75011, Paris, 1990.

Dictionnaire actuel de la langue française, Flammarion, Paris, 1991.

PEREIRA, Isidro, S.J., Dicionário Grego-Português e Português-Grego, Livraria A.I., Braga, 1998.

 

Bíblia citada

Bíblia Sagrada, trad., ALMEIDA, J.F., Sociedade Bíblica, Lisboa, 1979.

Bíblias consultadas

Bíblia de Jerusalém, Paulus, São Paulo, 2002.

Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, Edição Brasileira, 1967.

Bíblia Sagrada, Verbo, Lisboa, 1976.

La Bible, Traduction oecuménique TOB, Bibli´o - Société Biblique Française, Les Éditions du Cerf, Paris, 2010.

 

Sites:

Wikipédia – Metafísica (Aristóteles)

Portaldaphilosophia.blogspot.com.

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