A CAMINHO DE MARTE
Parece que o fim da
Terra está prestes. O mundo foi acumulando, século após século, o preceito tão belo
quão perigoso de que o Homem se impõe à Natureza. Porém, já não lhe bastando, pretende
impor-se ao universo. Entre os planetas mais viáveis o mais perto é Marte.
Então vamos para lá. Mas porquê?
O
ser humano foi construindo imóveis sobre veios de água, modificou os caudais
dos rios, ergueu cidades à porta de desertos, lançou para a atmosfera gases
poluentes das fábricas, plantou não respeitando a flora autocne, modificou a estrutura de animais a fim de obter mais
carne, quimicalizou a alimentação humana e animal desenvolvendo doenças
perigosas.
É
certo que também aprendeu a cultivar a terra, inventou instrumentos. Ergueu
monumentos sumptuosos. Perseguiu ideais de beleza, desenvolveu um imenso
aparato tecnológico que muito contribuiu para o seu bem-estar. Enfim, não fora
o endeusamento dos seus ímpetos criativos, tudo parecia relativamente bem.
Orou às divindades a fim de lhes pedir boas colheitas,
ofereceu-lhes holocaustos, também as primícias dos seus produtos agrícolas. Imaginou
que assim lhes agradaria. Talvez! A nossa natureza impede-nos de aparecer perante
um deus de mãos vazias.
Viveu o sincretismo da Natureza e divindades, deu
largas às suas representações interiores, desenvolveu um imaginário que
confundiu com realidade, uma linguagem que fala, supostamente, pelo próprio
divino. Assim, o narcisismo foi tomando a razão e a fé, alucinando-as. E se
tudo isto, como ingenuamente pensam alguns, é fruto de uma época, parcelas de
eras evolutivas, marcos de uma epopeia à descoberta do próprio mundo, o certo é
que esses comportamentos caracterizam o humano, pertencem-lhe, são intemporais.
Diversificaram-se as apresentações mas, em substância, nada se alterou. Somos
os homens das cavernas a viver em prédios; vivem-se idênticas lutas pela
sobrevivência.
Não
se apercebendo de que os deuses que adora são manifestações dos seus
desencontros interiores, casou o Céu com a Terra, inventou titãs, gerou discursos do tipo: “Deus quer…”, ou “A Deus desagrada
isto ou aquilo”, ou ainda “Deus está comigo sempre que ajo desta ou daquela forma”, o que se revelou, ao longo da
História, o expoente máximo da alucinação narcísica. Numa tentativa infrutífera
de fugir da sua própria natureza, combateu-se a si mesmo curvando-se perante os
seus medos, os gigantes indomáveis do fim do mundo.
A
antropomorfização de Deus tem sido a
Sua morte. Não sendo capaz de assimilar o Deus único, transpôs para Este a
totalidade dos seus fantasmas. E tão fero tem sido que, em abono da verdade,
qualquer ateu e crente convicto dirá: “Estaríamos
muito melhor sem ele, não faz cá falta.”
O Deus de misericórdia, de perdão, de compreensão para com
as nossas fraquezas é relativamente recente. Amadureceu no século XX, resultado
de uma série de direitos que foram sendo adquiridos tais como emancipação das
mulheres, direitos da criança, do idoso, expansão da escolaridade obrigatória, a
livre manifestação da fé, novas descobertas científicas, etc. Não foi a fé que
conduziu à noção de um Deus de misericórdia, mas a Democracia. Quanto a questões
existenciais, permanecem as mesmas: a Ética é a mesma e o que é a Vida, donde vimos, por que estamos aqui, para onde
vamos, por que existe algo em vez de nada, o que é o Bem, onde vamos buscar os
critérios avaliativos para os nossos actos? O avanço tecnológico foi tomando
corpo em detrimento das áreas do pensamento, a sobrevivência é mais importante
que a fé, o que não é novo.
O
Paganismo tomou o nome de Ecologia. O passeio pedestre ao campo não é mero
contacto com a Natureza, mas a purificação da poluição da cidade; encontro mais
de perto com Deus, o Deus livre, não aquele que está acorrentado no templo.
Hoje está na moda meditar no campo na tentativa de exorcizar corpo e alma das
forças maléficas, não mediante a construção de altares de pedra e fazer
holocaustos na tentativa de escapar da ira dos deuses, mas do ar condicionado do escritório que
provoca alergias, do chefe insaciável nas suas exigências, do(da) cônjuge que anda
amuado(a), dos filhos que não há quem os ature, do ordenado que não chega até
ao fim do mês…
Este
casamento de Deus com a Natureza é uma nuance
aparentemente sofisticada do casamento do Céu com a Terra, mas com uma
diferença: a pangeia, a observação
da abóboda celeste em noites de luar, as grandes discussões na ágora conduziram
à produção de valores. Hoje, assiste-se à sua destruição, a apatia. Perseguir o
Bem é piroso. Na Religião, a santidade e
a boa conduta para a conquistar não fazem sentido. Na Escola, estuda-se para
trabalhar, a troco seja lá do que for. O pensar por si mesmo tornou-se perigoso,
educar sinónimo de formatação mental. E no que diz respeito à fé, a engrenagem
mecanizada da mente ruma a um “ateísmo religioso” onde Deus é matéria de consumo
e os movimentos religiosos, principalmente os mais recentes, prometem a
felicidade a troco de nada e em nome desse tal deus dos narcisismos.
Há
que garantir que alguém vá construindo máquinas e mais máquinas porque
facilitam a vida. E são tantas que já transbordam do Planeta. Já se fala de o
Homem se impor ao próprio sistema solar, a começar por adaptar Marte às suas
necessidades de sobrevivência. Maravilha das maravilhas! Mas, perguntemos: O
que vai ser de Marte? Uma segunda Terra? Se assim for irá apodrecer com mais
brevidade, porque o que levou milhares de anos a estragar na Terra significará
uns escassos séculos em Marte, não porque a tecnologia está infinitamente mais
avançada, mas porque a natureza humana se mantém igual a si mesma: o Homem
egoísta, egocêntrico, destruidor; as religiões em total falência doutrinária e
ética.
Por
outro lado, não assistimos a programas científicos que ensinem que ser bom e
piedoso é a maior riqueza, que só se tem a ganhar em ajudar o próximo e que a
fé em Deus, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra é sinónimo de verdadeira
felicidade; que Deus é Quem nos guia e está sempre presente nos bons e nos maus
momentos. Nem tão pouco se ensina a laicidade. O laico também, e muito bem,
pertence à bondade, legitima o amor à Natureza, convoca o ser humano para o
comprometimento com a Ecologia (as religiões deviam fazer o mesmo. Não faz o
mínimo sentido que a Religião seja exclusivamente uma organização voltada para
a fé, a salvação, Deus. A Natureza e a História são, primordialmente, o seu terreno).
Por outras palavras, o que se é na Terra ser-se-á em Marte.
O ladrão, o vigarista, o assassino, o ambicioso, o avarento, o vaidoso, tal
como o ateu, o laico, o crente, o supersticioso. A deslocação para Marte não é
um processo catártico. Pergunta-se: O
que será de Marte? Tornar-se-á numa caricatura da Terra? Um mundo arquetípico à
semelhança do mundo das ideias de Platão? Será a projecção do ideal de paraíso?
Não é Deus que entra em falência perante o mundo tecnológico,
medindo forças com robôs. É o Homem que se entregou à máquina como engenho
salvífico na procura incessante de provar que pode viver muito além dos cem
anos, resultado da tecnologia aplicada à ânsia de imortalidade. Mas, que
esperar dessa longevidade? Que fazer com ela? Se não é possível sobreviver em
tão grandes índices de poluição, então duas coisas se impõem: ou continua a
viver limitado no tempo, entregue à sua compleição física, às suas resistências
naturais, ou então altera a sua estrutura molecular e sobrevive com órgãos
artificiais.
Parece
estar a chegar ao fim a antropologia tal como a conhecemos. A mecanização do
corpo humano parece um dado adquirido. Mas até que ponto o Homem suportará a
sua própria mecanização e a do que o rodeia? Em que se tornará ao criar
relações afectivas com robôs?
Estamos
a assistir à caducidade do que resta de nós mesmos. Estarão a falhar, ou sempre
falharam, na sua resposta, ou propostas de resposta, aos problemas existencias
do Homem o seu caminhar milenar pela vida? Que fizemos até hoje? O problema não
é ir para Marte, mas o que levou Marte a fazer parte do universo de esperança
para sobrevivência da Humanidade.
Estamos sem dúvida numa nova antropologia: o homem-máquina
cujo conceito de felicidade se tornou tecnológico. As imagens holográficas de
entes falecidos já não são ficção mas conteúdos programáticos de laboratórios.
Poder-se-á falar com o bisavô, fazer-lhe perguntas. Mas será este o caminho
para se provar a imortalidade? Estará a prova da vida além da morte na
projecção de um écran plástico, nos códigos sonoros e luminosos dos aparelhos?
Um dia, uma criança já nascida em Marte, perguntará aos pais
quem e como eram os humanos quando na Terra? Quem eram esses seres tão
civilizados? Perguntará embevecida quem eram para possuírem tamanha tecnologia?
Certamente pertenceriam a uma grande civilização. Orgulhosa, dirá que as suas
origens são terráqueas, pertença de uma estirpe muito inteligente. Isto faz
lembrar aqueles que vivem deslumbrados com os habitantes de Capela, a grande
civilização que construiu as pirâmides, que trouxe uma panóplia de técnicas de
toda a ordem. Chegaram e partiram. Hoje fazem parte dos anais da História, e
quem é que quer saber da constelação de Capela!?
A
criança continuará a falar com os pais: “O robô disse que os terráqueos falavam de um Deus? O que é isso?”
Podem levar muita coisa para Marte. Muito bom seria que não
levassem esse deus construído, tão deficitário dentro da alma. Porém, uma coisa
é certa: Deus criou o Universo, Multiverso, Pluriverso, o que lhe queiram
chamar. Quanto ao humano, a sua grande procura será sempre a da mudança da sua
natureza. Quando isso se concretizar, seja lá onde, quando e como for, terá
conquistado a noção objectiva da imortalidade. Aqui ou em qualquer parte do
universo.
Margarida
Azevedo
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