A VERDADE
“Eu
para isto nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo
aquele que é da verdade escuta a minha voz.” Disse-lhe Pilatos: “O que é a
verdade?”
Jo
18: 37-38 *
E se as organizações religiosas abdicassem do conceito
de verdade? Entrar-se-ia numa nova era. Os devaneios seriam resfriados, a fé
seria mais livre, a oração uma agradável conversa com o Divino.
A verdade, no mundo terreal, é a minha verdade, e a minha
verdade é o conjunto das condições existenciais, cronologicamente sequenciais e
encadeadas entre si. A verdade é a minha
experiência e o respectivo aprendizado dela decorrente, que é partilhável, é verdade,
mas sempre dependente da selecção inconsciente do material que é partilhado.
Por outro lado, a manipulação dos conceitos, a
deturpação do sentido, a pregação para
convencer e não para crer, por parte das organizações religiosas, têm conduzido
os crentes a uma fé baseada no medo de Deus, por um lado, e à acomodação, por
outro. A verdade funciona, assim, como uma pilha recarregável num discurso
fantasioso, impondo-se contra o mal eterno e o pecado devastador.
Só
que nós não somos crentes porque possuímos a verdade, mas porque temos fé, fé
em algo que não conseguimos descrever, mas que dá um sentido muito especial à
vida. O invisível é terrivelmente atraente e poderoso.
A disparidade de sensibilidades, a pluralidade cultural,
a vivência individual, e muito acima de tudo isso, o sofrimento, traçam
mutações na forma de encarar a vida de tal forma que nos confrontam com a
fraqueza e limites do discurso, não raro a sua inviabilidade. Por outras
palavras, a suposta verdade tem sido um chorrilho de disparates.
Acreditar é um processo complexo da alma humana que se
baseia essencialmente não apenas numa cultura, mas no modo de estar na mesma.
Esse modo de estar manifesta-se, sobretudo, num resíduo de insatisfação em que
são procuradas formas paralelas de viver a fé. São disso exemplo as actividades
espirituais referentes às famílias que co-existem em estreita contiguidade às
práticas colectivas do grupo macro. Quem não conhece as práticas domésticas,
baseadas nos cultos aos mortos da família? Quem não conhece as rezas
transmitidas de mãe para filha, nas orações femininas, nomeadamente as
relacionadas com as primeiras menstruas, a gravidez, o parto, perpetuadas ao
longo de séculos? Quem não conhece as orações transmitidas de pai para filho,
como por exemplo, as relativas ao gado?
A verdade é um jardim filosófico e teológico, colorido
pela diversidade de razão e de fés, mas que nenhuma a define em concreto.
Vivemos a impossibilidade de uma fé delimitadora que a circunscreva numa
dicibilidade absoluta. A verdade é “a minha verdade no acontecer da minha vida”.
Os grupos religiosos mais não fazem que tentar encontrar uma noção aceitável,
porém nem sempre praticável pelo grupo.
O autor de João, na linha gnóstica e sapiencial, não põe
na boca de Jesus uma definição, mas apresenta-a como o seu objectivo profético.
Isto significa que a verdade é uma realidade transcendente. Ela não está em
nós, mas vem a nós mediante testemunho. Jesus não disse a Pilatos que sabia o
que era a verdade, mas tão somente que vinha dar testemunho dela. Neste ponto,
podemo-nos perguntar como é que se dá testemunho de uma coisa que não se
conhece. Ora o texto não diz que Jesus não sabe. Ele apenas é omisso quanto à
definição.
Tal
como os temas virtude, belo, bem, justiça, enfim, e tendo em conta que se está
a ler o autor de João, o único que confere à genealogia de Jesus uma
transcendência, a verdade é uma das apresentações do Logos que, ao fazer-se
carne, entra no humano, isto é, na multiplicidade discursiva, subdividindo-se
numa panóplia de sentidos.
Ora
o Logos, por natureza, não se define; é a
Palavra criadora de palavras, tal como a árvore que dá infinitos frutos. Perceber
essa multiplicidade é tornar-se livre. Já em Paulo, Gálatas 5:1, o tema da
liberdade é fundamental: “Para a liberdade nos libertou Cristo. Ficai, pois, firmes, e não vos
metais de novo debaixo de um jugo de servidão!”** É essa liberdade o
fundamento da pregação de Jesus, liberdade essa que só pode vir por um ser totalmente livre, Deus.
Se observarmos atentamente o trabalho profético do antigo
Israel, não temos definições, mas caminhos traçados pelos profetas, baseados na
natureza humana e bastante críticos da mesma (p.ex., ver Jeremias), com o
objectivo de atingir uma integridade, e não uma fragmentação dos comportamentos
humanos. Isto significa libertação da condição humana aprisionante a valores
que não sejam os conformes com a Lei de Deus. A fé de Israel é uma fé
libertadora multi direccional: liberdade
do cativeiro no Egipto, liberdade de esperança, liberdade para crer na
Promessa, liberdade de culto, liberdade face ao Império Romano, liberdade da
própria natureza humana de onde a santidade, enfim, não é a pureza alcançada,
mas a compreensão e a luta pela liberdade como expoente máximo da fé. (ver Gálatas
na íntegra).
Profeta
é aquele que vem traçar caminhos de modificação interior e social, em estreita
inter-acção e reciprocidade. Isso só acontece quando há um propósito que é
chegar a Deus, não no outro mundo, imaginário, mas neste, fazendo dele o tal
outro mundo, o da verdade. Aí, a vida é caminho, e neste sentido temos Marcos,
que nos apresenta Jesus como aquele que está no caminho. Há uma geografia
teológica em Marcos, a qual joga com as questões vivenciais, pedagogicamente,
incentivando a uma libertação do preconceito, do fingimento, da mesquinhez (ver
também Mt 26: 6-13; Mc 14: 3-9; Lc 7: 36-50; Jo 12: 1-18).
Os salmos facultam-nos bons exemplos (p.ex.,
Sl 15: 2-3; Sl 119: 160). Conduzindo a fé à reflexão sobre a conduta humana,
enaltecem a alma com fim ao merecimento da Promessa feita por Deus,
enfrentando-se a si mesma cruamente: a Terra Prometida tem que ser merecida.
Mas, o que significa merecer? Não é prémio de heroicidade ou de martírio,
mas uma resultante de fé inabalável, livre de todos os qualificativos. Isto é,
a fé reveste-se de um carácter universalista, está ao alcance de todos. Por
isso, os salmos são orações, hinos, lamentos, cânticos, certezas, textos
identitários de uma fé que se procura si mesma, que apelam à coragem e à
perseverança. Sendo a terra a base estruturante da fé, matéria constituinte
do nosso corpo (carne), raiz identitária,
fonte de alimento, então é justificativo mais que suficiente para que Jesus
tivessse vindo dar testemunho de um reino onde tudo isso assume a plenitude do
sentido. O mesmo é dizer, o plano terreal é merecedor da presença de Deus
através do Logos.
Se definir significa delimitar, traçar contornos, então é
precisamente isso que é e, simultaneamente, não é pretendido. Vir ao mundo é entrar
no limitado, mas, ao dar-lhe testemunho da verdade, é elevá-lo ao ilimitado. Cada
conceito transporta um sentido de imanência e de transcendência, tal como a fé
é portadora desta duplicidade, em Deus e na Humanidade (p. ex., no Espiritismo,
a fé é humana e divina). Assim, podemos não ter uma definição de verdade, mas
sabemos que estamos no caminho, sabemos quando estamos a falar verdade; sabemos
que pelas boas acções damos testemunho da verdade; sabemos que, quando amarmos
o próximo como a nós mesmos, damos testemunho da comunhão com Deus na prática
do Mandamento. É tudo a mesma coisa: crescer no amor é caminhar para Deus,
porque a verdade é amor e o amor é verdade. São co-existentes, membros de um
mesmo corpo.
Com Jesus, a verdade é testemunhada. Não a temos dentro de nós. Ela vem a nós.
Aceitamo-la ou não. Sabe-se que a verdade far-nos-á livres. Que liberdade? O
texto é omisso. Tendo em conta o ambiente gnosticista do texto, será uma
liberdade perfeita, o que deixa no ar a ideia de um suporte oculto fundante do
testemunho de Jesus: a verdade não tem fim.
Tanto assim que ela não é um fim em si mesma. Ela ruma à
libertação. É a verdade que nos fará livres, não é outra coisa. Parece que se
está num único momento: conhecer a verdade e ser livre.
Mas, porque não terá Jesus respondido a Pilatos? É
impossível colocarmo-nos no pensamento de Jesus, mas talvez possamos adiantar
que não respondeu “porque eu nada tenho a ver com os vossos conceitos,
os vossos problemas linguísticos, as vossas vãs e estéreis ideologias, os
vossos problemas políticos; o meu discurso é de outra natureza, porque eu venho
de outro lugar, porque as minhas palavras traçam sentidos para vós
desconhecidos; porque o eu sou outra coisa.”
Todos estarão receptivos à verdade? Não. Só os
que são da verdade. O que é que isso significa? Jesus não diz. Será uma decisão
humana? Talvez. Teologicamente, o que o texto deixa transparecer é a existência
de um “eu” que transporta uma pertença e um entendimento que, ouvindo o
testemunho, o identifica. Estamos perante um juízo existencialista, pois que,
ao ser criado, o ser traz consigo “qualquer coisa” que só na existencialidade
toma consciência. Será a fé um paradigma dessa “qualquer coisa”?
Podemos
dizer, assim, que temos uma liberdade prévia que é posta em nós e nos leva a
querer pertencer, à verdade para que, ao
ouvirmos o testemunho da mesma, tenhamos adesão. Não aceitá-la é difícil de
perceber; a negação envolve-se na nossa natureza complexa e recôndita dos
nossos nãos que testemunham a existência de uma fundura inexplicável, muito
mais que os dos sins
Quando
Pilatos pergunta o que é a verdade, para
o autor de João a problemática é outra: não já a influência da retórica helenista na componente teológica,
mas política. O modo como a pergunta é feita deixa no ar um duvidar de que
Jesus soubesse a resposta. Afinal, o que poderia aquele homem, que não era nem
político, nem religiosamente um ordenado, um leigo, saber dessas coisas? No entanto,
Pilatos tremeu neste processo: Que decidir? Com que bases? Que consequências? Jesus
não lhe facilitou a vida, porque não era de interesses políticos que se ocupava;
não obtendo resposta de Jesus, retirou-se, facto que consta também nos
sinópticos.
Este virar de costas, político e jurídico, virá a ser um
dos pontos de charneira do vasto quão complexo processo de Jesus: não havendo
definição de verdade, saiu, como se já não houvesse nada a fazer. Foi esta a
sentença: a palavra colapsou no silêncio e no vazio, e a decisão decorrente foi
catastrófica. Sem definição, o que resta? A condenação.
A
morte de Jesus foi a ingressão do trágico, pertença dos grandes temas da
filosofia, na panorâmica teológica. A tragédia também existe no religioso.
Em suma, há ou não definição? Não, não há. E temos que
viver com isso. O que há é a construção
da definição à medida que o ser humano se depura, num presente contínuo.
Tudo o que dissermos sobre o que é a verdade será sempre insuficiente, porque
estaremos sempre a tentar limitar o ilimitado. Haverá coisas indefinidas por
natureza? Não sabemos. Se o soubéssemos já estaríamos a definir. Vivemos no
impasse, o que torna a vida muito atraente.
O Espiritismo, aparentemente, resolveu o
problema ao dizer que a nossa linguagem é pobre para definir coisas tão
grandiosas. Bem, não é uma questão de pobreza ou riqueza de linguagem, mas de
sentidos com que a dotamos;
Viver é dizer, e dizer é fazer aparecer. Uma verdade é
incontestável: há uma Terra Prometida. Onde? Num lugar qualquer, e com toda a
certeza num coração muito grande que faz da vida a grande luta pela verdade que
nos fará livres
Margarida Azevedo
*Bíblia, O Quatro Evangelhos e os Salmos, Conferência Episcopal Portuguesa,
Fundação Secretariado Nacional, da Educação Cristã, Lisboa, 2019.
Ler a perícopa na íntegra : vv 28-40.
Para melhor a compreender, consultar a perícopa anterior, vv 13-27; ler a perícopa seguinte, 19:
1-16.
** Trad. Prof. Doutor Pastor Dimas de
Almeida, 2018-19 (?).
Consultar
outras traduções, nomeadamente:
Bíblia
Sagrada,
trad. Pe António Ferreira de Figueiredo, aprovada em 1842 pela Rainha D. Maria
II, Lisboa, 1924.
Bíblia
Sagrada,
trad. João Ferreira de Almeida, Sociedades Bíblicas Unidas, Loisboa, 1968 Bíblia
Sagrada, Rev.Padres Capuchinhos, Verbo, Lisboa, 1976.
Bíblia
de Jerusalém,
Paulus, são Paulo, 2002.
Tradução
do Novo Mundo das Escrituras Sagrdas, Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados,
SP, 2006.
La
Bible,
trad. oecuménique, TOB, Biblio – Société Biblique Française,/Les Éditions du
Cerf, Paris, 2010.
Bíblia, Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, vol.
I, trad. Frederico Lourenço, Quetzal, Lisboa,
2016.
Bíblia, Os
Quatro Evangelhos e os Salmos, Conferência Episcopal Portuguesa,
Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã, Lisboa, 2019.
Bibliografia
consultada
HAYOUN, M.-R., O Judaísmo,Teorema, Lisboa, 2004.
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