A NOSSA TERRA E O SILÊNCIO DAS RELIGIÕES
Se as organizações religiosas prolongarem por muito mais tempo o discurso sobre o outro mundo em desvaloração deste; se continuarem a confundir os fiéis de que caminho para Deus é sinónimo de caminho para o outro mundo; se teimarem em minimizar a vida, porque curta, fugaz e ilusória, a um episódio existencial de menor importância e apenas trampolim para uma realidade paralela invisível; se continuarem a transmitir aos fiéis que o mundo está mau, numa observação de fora para dentro, isto é, “nós não temos nada a ver com isso porque somos os bons”; se continuarem a ser focos de influência político-partidária ao invés de caminhos para Deus, na procura da santidade e do bem-fazer desinteressado; se continuarem a ser máquinas ao serviço do sofrimento, manipulando a sensibilidade dos mais vulneráveis; se continuarem a estar acima da lei com práticas como pedofilia, homicídio, terrorismo, xenofobia, racismo, discriminação de género, machismo, feminismo, etc., e todos os exageros em nome da boa moral e bons costumes; se continuarem a ser empresas altamente lucrativas, então conduzirão a população do planeta à rejeição total da sua condição de terrestre/humana, retirando-lhes o que resta de bom senso num mundo onde se atingiu o vale tudo. É certo que todos somos espíritos, ou melhor, almas, isto é, espíritos num corpo de carne osso. Também não é menos verdade que um dia vamos passar para um mundo que, por hora, desconhecemos. E nesta sequência de verdades todos sabemos que este planeta é a nossa casa, pelo menos por enquanto, casa que foi feita por Deus, onde temos tudo o que é preciso para viver. Ora por isso mesmo pisamos solo sagrado, que o ar que respiramos insuflado nas narinas do barro de que somos feitos, ou melhor, na lama pois somos feitos de barro e água, têm que ser o alvo preferencial dos nossos momentos de oração. Ninguém ama ninguém se não amar a terra. A terra é o maior referencial identitário de um povo. Podemos correr mundo, podemos até nunca mais lá voltar, mas ela persegue-nos, para o bom e para o menos bom. Porém, ela perpetua-se numa presença sem fim. Mas os humanos estão contra a terra, esquecendo-se de que ela é fonte de alimento. Os fogos florestais, os desperdícios alimentares, o plástico por todos os lados, a utilização excessiva do avião, a energia fóssil, entre uma infinidade de outros factores estão a levar à situação de calamidade. O crente que rejeita o planeta porque almeja um mundo de delícias no além, vive no seu egocentrismo doentio. Para esse, o fim da vida no planeta é o encerrar de um ciclo evolutivo para dar origem a outro mais puro e subtil, mais desmaterializado, uma espécie de refinação espiritual. Mas o fim da vida no planeta não é comparável com uma refinaria, nem os seres humanos estão num processo de destilagem e consequente decantação. Assim, por oposição ao fanatismo estéril das religiões, são os que se dizem ateus, aqueles para quem o planeta é o maior valor, que se ocupam verdadeiramente com ele, juntamente com um bando de crentes livres para quem este planeta é espaço sagrado. De dia para dia a paisagem de verde se torna negra, há cada vez mais detritos nos mares e nos rios. Os alertas dos cientistas não são levados a peito e os valores monetários sobrepõem-se à vida. Com a desertificação e a consequente alteração da paisagem, a terra deixou de ser um espaço cósmico. Ora, a terra é tão cosmos como qualquer outra parte do universo, com a sua identidade própria. Merece, porque é a nossa casa, todo o nosso respeito e amor. A tecnologia, que tanto nos ajuda, não pode ser uma força contra a natureza, no sentido de se impor abstraindo-se da terra. A tecnologia não pode ser um desterro, implementando-se através de agentes poluentes, criando dependências, interferindo na relação inter-subjectiva; um telemóvel não pode sobrepor-se a uma boa e alegre cavaqueira entre famílias e amigos. O oculto, o invisível, o que se esconde, enfim, sempre fascinou o ser humano. Desde sempre se atribuiu ao desconhecido a fonte de tudo quanto existe, as causas profundas da linha de vida, os fundamentos seminais da existência humana. O desterro tem sido todo um processo que progressivamente tem vindo a afirmar-se fazendo parte integrante de todas as áreas do conhecimento. Na filosofia, começámos a ser desterrados com os Gregos na medida em que este mundo é algo que aparece, facto que gravita em torno de dois grandes princípios, a imutabilidade e a mudança, isto é, o ser de Parménides e o ser de Heraclito; na teologia, com os Hebreus, temos o Ser Absoluto a Quem devemos a feitura e a existência de tudo, origem e fundamento da Lei das leis; na tecnologia, temos “finalmente” os meios para alcançar o infinitamente grande, o para lá, o espaço sem fim. E pergunta-se: E depois? E a fé? Os robôs convertem-se na nova imagética de adoração, poderosos e perfeitos, bons ouvintes, precisos, bondosos, compreensivos? Que lugar para a lama que nos fez e que continuamos a ser? Olhar para o céu estrelado em noite de luar, ou muito azul em dias limpos é permitir a transcendência sem sair do lugar, é estar munido de categorias como amor e fé, desejo, prazer, fusão com o incomensurável. Ao infinitizar o olhar, o humano toma identidades, torna-se um diplomata entre Espíritos, os Espíritos dos profetas que gravitam em torno deste planeta onde o Belo é o factor predominante, e onde tantos outros se acercam dele a fim de pedir uma oração. Porém, olhar para o céu também é sentir-se olhado por ele. O pontinho pequenino em que se encontra é tão importante como todas as outras coisas que o céu possui. Tudo tem a mesma origem. Assim, é tempo de compreender a terra, descer às profundezas da natureza humana. A fé não é uma nave espacial do inconsciente humano. É urgente assentar os pés em chão firme, pois que, muito falar do espanto e das ideias como arquétipos, do Deus Supremo e do outro mundo e de tecnologia imparável levar-nos-á a corrermos o risco de perdermos este mundo onde vivemos; o espanto não será pela pluralidade de coisas ao nosso redor, mas pela observação de terra queimada, da desolação das florestas em cinzas; Deus, empobrecido, de Criador e Pai amantíssimo, passará a ser odiado porque permitiu que tudo isso acontecesse; a tecnologia imporá outros deuses, o Paganismo, qual culto da Natureza, cairá pela frieza de uma infalibilidade que nos supera, que nos põe a um canto, que nos torna dispensáveis. Uma autêntica loucura onde a tecnologia é o carrasco. Todos querem um mundo feliz? Então comecem já hoje. Combatam o egoísmo, a vaidade tola, deixem de ser corruptos, virem as costas à maior desgraça que é a inveja. É ingénuo dizê-lo, impossível de o praticar?! Depende do ponto de vista, do lugar em que se coloca. Quando aparece uma doença incurável, quando surge a dor da perda de um filho, quando a vida tomba e cai em desgraça não muda tudo e de forma repentina? Pense. Que universo de esperança oferecem as religiões para este mundo? Que lutas pela melhoria das condições de vida? Oferecem caridade? Mas a caridade não é alimentar a pobreza, mantê-la onde está e fazer do necessitado um ser inferior, eternamente dependente e à espera de uma gratificação no céu através de um copo de leite de um benfeitor? Não será uma forma de alimentar a corrupção daqueles que continuam a, doentiamente, querer tudo só para eles? Precisamos do religioso mas como forma de amar o mundo, de fazer dele um lugar confortável onde todos têm lugar, de que todos fazem parte, onde todos são igualmente necessários. Isso é o que justamente se pode chamar ocupação com os desígnios de Deus. Não precisamos de organizações religiosas que alimentem o exclusivismo, a loucura da ambição desenfreada, da insaciedade, da indiferença pela miséria de que são, quantas vezes, os mais directos responsáveis. Não podemos querer um religioso que camufle o desprezo e o ódio pela humanidade sob o pretexto de mexer com desígnios de Deus. As organizações religiosas não podem continuar a absolutizar o seu natural relativismo doutrinário, desenvolvendo discursos etnocêntricos e abstraindo os crentes da terra sob o pretexto de os esperar um mundo de prazer sem fim, não mais que o prolongamento de causas e comportamentos desprezíveis, de problemas sexuais mal resolvidos, do rebaixamento da mulher como ser inferior e feito para servir o homem. O ecumenismo tem uma palavra a dizer em defesa da paz. Porque o diálogo nunca está esgotado, a bendizer ele ainda mal começou, deve promover um encontro universal em defesa da Terra; defender a real laicização dos estados face ao religioso; sensibilizar e criar o hábito de participar numa oração universal; confrontar a humanidade com a sua mesma fragilidade, a sua impotência a fim de perceber que, pelos dos seus próprios meios, não é capaz de superar a sua situação de problematicidade, que Deus é uma presença constante nas nossas vidas amparando e auxiliando. Sem os princípios de uma verdadeira fraternidade, a humanidade corre o risco de desaparecer mais depressa do que se pensa, não apenas fisicamente, mas como uma irmandade dos filhos de Deus. Porém, indiferentes a tudo, os insensatos, de sorriso nos lábios, certos de que vão todos para o mundo dos felizes, indiferentes ao que destruíram e devastaram neste em nome de uma suposta pureza não mais que xenofobia vil, dormem sobre o assunto: missão cumprida, combateram o impuro, aquele que apenas orava de forma diferente. A ser verdade que somos no lado de lá o que somos do lado de cá, então esta humanidade, com tudo o que a caracteriza, só irá fazer noutro lado o que fez aqui. E tudo se repetirá. Então, pela via das dúvidas, é melhor começar aqui e agora a modificar-se, a arrepiar caminho e arregaçar as mangas pelo planeta que é a nossa casa. Amar a Deus é amar a Sua magnífica obra, a nossa Terra. Margarida Azevedo
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