“Um anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: “Levanta-te e vai para o Sul, pela estrada que desce de Jerusalém para Gaza; ela está deserta. “E levantando-se, ele foi . E eis que um homem etíope, eunuco e dinasta de Candace, rainha da Etiópia, ele que estava à frente de todo o seu tesouro e que tinha ido em peregrinação a Jerusalém, estava de regresso sentado no seu carro, a ler o profeta Isaías. O espírito disse a Filipe: “Vai e cola-te àquele carro.”
Filipe, acorrendo, ouviu o a ler o profeta Isaías e perguntou-lhe: “Será que compreendes o que lês?” Ele disse: “Como conseguiria eu, a não ser que alguém me mostre o caminho?” E ele convidou Filipe a subir e a sentar-se com ele. A passagem da Escritura que ele estava a ler era esta:
Como ovelha para a matança, fui levado;
E como cordeiro, diante de quem o tosquia, sem voz:
Assim ele não abre a sua boca.
Na humilhação se consumou o seu julgamento,
E quem narrará a sua geração?
Porque foi tirada da terra a sua vida.
Respondendo o eunuco a Filipe, disse-lhe: “Peço-te que me digas: o profeta diz isto a respeito de quem? De si mesmo ou de outro?” Abrindo Filipe a sua boca, começando da Escritura, anunciou-lhe a boa-nova: Jesus. Como iam a seguir pelo caminho, chegaram uma água qualquer; e o eunuco disse: “Eis água: o que me impede de ser batizado?”||*||
E mandou parar o carro e ambos desceram à água, Filipe e o eunuco, e Filipe batizou-o. Quando saíram da água, um espírito do Senhor arrebatou Filipe e o eunuco não o viu mais; seguiu, pois, o seu caminho com alegria.” (Act 8: 26-39)
Antes de passarmos à reflexão sobre a perícopa, tomemos a questão residual, a saber, porquê a acentuação da nacionalidade, o etíope?
Para tentar descobrir a verdadeira razão, convido o/a senhor/a Leitor/a a um passeio até à Etiópia pois é lá que iremos encontrar a resposta para a nossa questão. Prepare-se porque vai entrar numa diversidade cultural inesperada, tão diversificada quão rica, um presente eterno onde coexistem várias culturas. Uma belíssima aguarela. Comecemos pela situação geográfica.
A Etiópia situa-se no Corno D´África, isto é, o território mais a oriente do continente africano. A norte, faz fronteira com a Eritreia e o Djibouti; a sul, com o Quénia; a oeste, com o Sudão e o Sudão do Sul; a leste, com a Somália.
Dois lagos se destacam: a norte, o lago Tana, que alimenta o rio Nilo Azul; a sul, o Abaia; barragens, uma boa irrigação das terras e reservas para durante a seca completam o quadro.
Por outro lado, entre planaltos, planícies e vales, possui grande diversidade de climas, desertos, florestas tropicais e muitos rios o que, naturalmente, culmina em grande diversidade em termos de fauna e flora.
Quanto à actividade comercial, no séc. I a.C., porque detentora de uma rede de caminhos no interior das terras, e mercê da boa ligação marítima entre o Egipto e a Índia, temos, entre os produtos mais comercializados, o ouro, o incenso, o marfim, a seda e as especiarias.
Ora, como sabemos, o desenvolvimento económico favorece igualmente o desenvolvimento religioso. A fé não está fora do mundo, dito de outro modo, a fé é mundo. Os contactos entre populações, e respectivos contágios religiosos tais como ritos, símbolos, elementos de força e poderes mágicos, tatuagens, etc., acontecem naturalmente.
O etíope representava este mundo pluralista: uma vivência religiosa rica, uma fé abrangente e alargada, pluricultural, uma cultura baseada na escrita, um país onde coexistiam várias línguas, entre elas o hebraico e o grego, sobressaindo-se a língua gueze, idioma semita. Este eunuco, podemos dizê-lo, é o que se chama no teatro uma personagem tipo, representando a importância e tradição espirituais e religiosas de uma nação nos complexos caminhos da fé.
Só para aguçar o gosto, mais tarde, a igreja etíope possuirá o cânon bíblico mais alargado que se conhece, 81 livros. “Uma biblioteca bíblica que preservou textos dos quais o Ocidente tinha lembrança, mas dos quais perdera o rasto.” (SAGAZAN, B, p.29).
Possui igualmente a mais importante comunidade judaica africana e, face à sua multiplicidade religiosa, aceitou o Cristianismo que, “através da forte cultura que produziu, é um dos pilares estruturantes da sociedade.” (idem, ibidem). Podemos afirmar que até então, jamais tinha existido uma “civilização bíblica tão antiga, tão estética e tão viva.” (idem, ibidem)
Do séc. I ao séc. IV, “Duas cidades principais, o porto de Adoulis (hoje na Eritreia) e Axoum, deixaram vestígios de moedas em prata e ouro, com a esfinge dos reis axoumitas, com inscrições em grego e, mais raramente, em gueze.(…) Tirando vantagem de um novo caminho marítimo entre o Egipto e a Índia, que passa pelo Mar Vermelho desde o séc. I a. C., o reino de Axoum desfruta da sua posição ideal e torna-se o centro de uma intensa actividade comercial.” (PETROSSIAN, M., p.33).
Além destes aspectos de capital importância, e sempre em alta, (…) a Etiópia pode perfeitamente reivindicar o título de civilização da escrita, pois de tal forma as suas produções literárias, desde a mais alta Antiguidade, foram ricas, originais e variadas.” (LABADIE, D., p. 38). Foi a criadora do género literário histórias ou crónicas reais, o qual deixou um legado rico em narrativas de conquistas e relações de vassalagem, textos de importância histórico-política. Escritos em língua gueze.
No mesmo idioma, a sua literatura distingue-se ainda através de outros géneros literários, tais como a vida dos santos etíopes, poesia e tratados apologéticos que, no conjunto, fazem deste o principal idioma de expressão literária entre os sécs. IV e IX (idem, pp.40-41).
É importante salientar que, mercê do alto nível cultural religioso, o gueze impôs-se de tal forma que ” muitas obras gregas cristãs foram traduzidas para a língua gueze durante o período que se estende do séc.IV ao séc.IX. (idem, ibidem). Ora, como sabemos, quando se impõe a necessidade de uma tradução é porque, à partida, há leitores, há estudiosos, há investigadores, há cultura. Sequencialmente, um aspecto de capital relevância, inerente à História das Religiões, nos surpreende de imediato, a saber, ao traduzir textos de índole religiosa para a língua gueze significa, que, para os estudiosos etíopes, não havia, ou não se colocava, a velha questão de línguas sagradas e não sagradas, pormenor subtil de grande avanço civilizacional e de cariz judaica. Só para termos uma noção, ainda hoje, no séc. XXI, há grupos religiosos mais radicais que se debatem com esta questão, nomeadamente, o árabe para os Muçulmanos, o sânscrito para os Hindus, entre outros.
A Etiópia possui ainda de uma comunidade judaica muito importante, com características específicas, denominando-se os judeus etíopes a si mesmos como “Beta Israel”, o que significa “Casa de Israel”. Estes judeus etíopes possuem uma bíblia própria, a Bíblia Beta Israel, escrita em língua gueze e não em hebraico, como seria de esperar. Quanto ao Cristianismo etíope, este impõe-se como “uma das mais antigas civilizações cristãs do mundo.” (ADANKPO-LABADIE, O., idem, p. 56).
Assim, falar da Etiópia é entrar na civilização bíblica mais antiga. Possui o maior cânon conhecido, estamos a falar de uma bíblia com cerca de 81 livros, entre os quais os mais importantes são o livro de Henoch e Jubileus, o primeiro muito importante para o Cristianismo antigo, porém tão contestado entre os meios cristãos ocidentais, mais tarde.
Neste cenário, um povoado religioso se evidencia, e que sem receio podemos nomear como uma metrópole da fé, Laibella. Considerada uma segunda Jerusalém, e aonde são feitas peregrinações em memória de um rei santo, o qual deu o nome ao lugarejo, Laibella, rei que governou no começo do sec. XIII; é também o nome que foi dado às onze igrejas rupestres e às quais também são feitas peregrinações.
Porém, uma cidade se impõe como o coração espiritual da Etiópia até aos nossos dias, porque, segundo a tradição, “é lá que se conservou a arca da Aliança.” (PETROSSIAN, M., p.33). Falamos de Axoum, cuja história se subdivide em dois períodos distintos, a saber, o período pré-cristão e o cristão (idem, ibidem). O seu desenvolvimento económico era tal que, “No séc. III, o profeta Mani considera que Axoum é uma das quatro grandes potências do mundo, juntamente com a Pérsia sassanide*, o Império Romano e a China.” (idem, pp. 33-34).
Só por curiosidade e dando o nó nesta brevíssima sinopse, a capital, Addis Abeba, nome hebraico que significa Nova Flor, situada no interior e em zona de planalto, é, desde 1889, a sede da União Africana.
Assim, entre o passado distante, o tempo contemporâneo de Jesus e dos redatores dos evangelhos bem como o legado para a posteridade, ficamos com uma noção, ainda que mínima, da importância deste eunuco etíope. Ele representava uma cultura riquíssima, baseada na escrita, com uma vasta produção literária e consequentes traduções para a língua gueze. O eunuco era o representante de uma cultura que lhe valeu a manifestação de Filipe e do anjo que o faz deslocar ao lugar onde alguém se debatia com o impasse de uma revelação que era urgente que acontecesse. Dito de outro modo, o eunuco não vinha de uma tradição do ler por ler, ler com o objectivo mágico de um milagre ou de uma suposta protecção espiritual, mas um ler para compreender, que ensina e que liberta. Se compararmos com o que acontece hoje, há muita gente que pensa que ter uma Bíblia em casa é o suficiente para estar protegido das coisas malignas.
Herdeiro de uma tradição familiarizada com o decalque dos textos, a sua dissecação e consequente vivência de fé, o etíope aceitou de imediato a explicação reveladora.
(continua)
Margarida Azevedo
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