domingo, março 21, 2021

SOMOS ENTIDADES COM IDENTIDADE

O que é a identidade? Temos tendência a responder que é o que em nós permanece apesar do tempo e do espaço. De facto, dizer que alguma coisa permanece em nós dá-nos conforto, tranquiliza e estabiliza psicologicamente. No entanto, ao defender a estabilidade, para os crentes, acresce-se a noção de que há algo do foro existencial que me construiu, isto é, independentemente do que fizer ou não fizer, há um suporte ontológico que não é da minha lavra, que foi construído por um Ser superior e que é Ele que me identifica. Ora a identidade jamais poderá ser uma construção exterior ao sujeito, nem obra de um Ser ou de Deus como um engenheiro de seres que ficam feitos e acabados para os quais a vida será um falso acréscimo de qualidades e uma falsa aprendizagem do conhecimento de si mesmos. É mais assertivo afirmar que os mecanismos de utilização na definição da identidade foram postos nesses seres, nós, restando sempre a questão de que quais as garantias de que os mesmos não estão mecanizados?! O previamente feito não escapa à insegurança da possibilidade do mecanizável. Para Martin Legros *, a identidade” é o que garante a uma pessoa, individual ou colectiva, a sua continuidade através dos tempos.” (p.50) De facto, sem perguntarmos o que é a identidade, temos a sensação, e não passamos disso, seres com sensações, de que há algo que permanece. M. Legros diz mais adiante que “ o meu sexo ou o meu género, a minha língua, a minha nacionalidade ou a minha crença religiosa, definem-me, e no entanto eu posso renunciar a elas sem perder a minha identidade.” (idem) É verdade, relativamente. Podemos renunciar à nossa nacionalidade, língua e crença religiosa, mas essa renúncia será sempre parcial. É um registo que ficou, que contribuiu para a formação do caracter, que alicerçou a própria escolha e consequente renúncia ou não, mas estará sempre lá. E isto é que se torna muito complicado, a saber, porque é que eu rejeito e continuo portador/a do rejeitado. Como é que o que não quero me acompanha nas minhas decisões, muito especialmente ao nível do inconsciente, individual ou colectivo? Simplesmente porque a rejeição nunca é total, ela implicaria um esquecimento definitivo, o que é impossível. Por isso é que podemos rejeitar o que por hora nos define e continuarmos a ser os mesmos. Não é porque rejeitamos, é que o rejeitado continua lá. Por outras palavras, estamos mergulhados no que não queremos, esse um dos aspectos que nos distingue dos animais, a tragédia de rejeitar o que não se quer em prol de algo que se desconhece. Há uma esperança ou uma ilusão, uma atracção pelo invisível, que pode ser metafísico ou não. Não se sabe. A renúncia completa, numa vivência totalmente outra, é impossível. Carregamos o não com toda a sua força, pois que o sim depende dele. Um indivíduo do país X que afirme que não é, a partir de hoje desse país e que é do país Y é o mesmo que dizer, “a partir de hoje já não vou ter esta cara, esta altura, este corpo, enfim.” A nossa rejeição, ou melhor, a nossa vontade, por que fundo é disso que se trata, da vontade, já o defendia Jean-Paul Sartre (ibid., p.51), por mais imperiosa que seja, não consegue impor-se às nossas condições existenciais, a começar pelas que são impostas pela natureza, pelo biológico, pelo registo de usos e costumes que nos foram implementados. Porém, e analisando a questão, verificamos que o efeito metamorfose é o que melhor nos caracteriza. Os nossos comportamentos, o nosso estado de espírito, os nossos projectos, ambições e valores adaptam-se irremediavelmente ao tempo e ao espaço. Afirmamos a grande verdade, sem nos darmos conta da sua profundidade existencial, que temos que nos adaptar ao que está à nossa volta. Ora nessa adaptação há algo que prevalece. O quê? A nossa identidade caracteriza-se pela dificuldade que temos em viver em tempo real – em que tempo estou? que tempo me define? - em olhar o espaço como uma projecção de nós mesmos – como é o meio que me circunda?, o que é que eu vejo? –. As religiões criaram o céu, a pior das esperanças. Se o mundo é como eu o vejo e não como ele é, então é porque sou portador de outro tempo e de outro espaço, o céu infinito. Com isto se implementaram e desenvolveram mecanismos de auto-defesa de um mundo distorcido e vicioso. A humanidade aprendeu, pela mão do religioso, a defender-se de todos os seres viventes, postos no mundo para sua satisfação pessoal, aprendia-se nos bancos da catequese. Hoje, a identidade humana procura o repouso da natureza como sua parceira existencial. Memória, vontade, metamorfose, recordações, rejeição são mecanismos identitários mas que não explicam o suporte em que assentam. Falar de crise de identidade tornou-se um cliché. As nossas rejeições podem ser, e certamente serão, o desajuste, a descontinuidade, remetidos a crise de identidade que mais não é que o estado natural do humano: a procura constante de si mesmo. O contrário também se verifica. Tendo a noção funcional e eficaz da sua verdadeira identidade, que faríamos com ela? Seríamos capazes de a suportar? Novos conflitos surgiriam, talvez mais íngremes. A rejeição é um apurar da linguagem: eu não quero dizer que sou de X, mas de Y. Vivemos uma destruição constante para sermos um mais. E isso não é negativo, tudo vai depender do que se destrói e do que se entende por mais. Vivemos num laboratório. Somos experiência de nós mesmos nesta dialética constante entre o eu e o outro em permanente contágio. Ora a rejeição passa naturalmente pela escolha de quem se pretende imitar. Rejeitar é dizer ”já não são estes os meus modelos”. E aqui a pergunta “onde está a minha identidade?”, remete para “quem quero imitar?”, isto é “a eterna procura daqueles que colaboram na construção daquilo que eu quero ser” Estamos a tocar na alteridade como um valor máximo. Margarida Azevedo Bibliografia *Philosophie magazine, Liberté, Égalité, Identités, Comment reconnaître nos différences?, Chantilly Cedex, France, Mars, 2021, n.º147, LEGROS, Martin, , C´est (pas) ton destin!, pp. 50-51. Artigo consultado: Ibid, DESCOMBRES, Vincent, Toi, toi, mon moi, pp. 53-55.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home