sábado, janeiro 22, 2022

O PARADIGMA DE DOIS JUDEUS

Há problemas no lar, no emprego, na vida social, na congregação religiosa? Há conflitos de gerações, desavenças de toda a ordem em que o diálogo se torna impossível? Há momentos em que tudo parece desmoronar-se? Há nós cegos em que lhe apetece desaparecer? Há, é facto, porque no passado houve dívidas que se contraíram e os respectivos ajustes impõem-se. Mas, reflitamos, a vida de um ser humano resume-se ao estatuto de devedor/pagador? À perseguição de um passado doloroso e confuso, uma rede complexa e nebulosa de actos sem consciência? Diz-se habitualmente, nos meios espíritas, que não há maldade, há ignorância. Isto significa que se o/a maldoso/a soubesse o que está a fazer contra si mesmo aquando de um acto menos digno, certamente não o faria. Isso prova que o nível de consciência é bastante rudimentar, senão mesmo inexistente. Ora, se não há essa consciência então o castigo tem que ser proporcional à mesma. É facto que há um historial que pode justificar determinados comportamentos, tal como aquilo a que chamamos linha da vida. Mas isso tem a ver com a natureza e singularidade dos indivíduos, e por isso a Codificação diz que somos nós os construtores dos nossos destinos, do que propriamente com conflitos do passado. Este, porém, tem o impacto e a força que o carácter lhe investe. Não é demais lembrar que o sofrimento não está explicado. Nós apenas, e para tornar a vida suportável, adiantamos explicações, razões que nos parecem plausíveis, mas que, felizmente, não corresponderão totalmente à realidade dos factos. Podemos ser construtores dos nossos destinos, mas não é menos certo de que somos portadores de uma natureza que não construímos. A nossa responsabilidade é relativa, não apenas face ao Absoluto, mas também face às condições existenciais e até a nós mesmos. Nós mudamos segundo as circunstâncias, o tempo e o lugar. Somos por natureza imitadores, sofremos contágios de toda a ordem, identificamo-nos hoje com coisas impensáveis há uns tempos atrás. Isto é a nossa humanidade no seu melhor. No entanto, viver em ambiente cristão significa projectar-se para o futuro. Se os problemas se impõem veementemente, então é porque ainda não há uma vivência do perdão incondicional nem do amor sem fim. Vejamos: O que é que tem mais peso, o cumprimento imperdoável de um passado remoto inexplicável, ou o perdão incondicional pela força do amor divino, representado no coração humano? O que pesa mais na evolução espiritual, pagamento de débitos, mataram-me porque matei, ou amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo? O pagamento de débitos, numa perspectiva puramente cristã, acontece porque ainda não foi percebido, interiorizado e praticado o perdão das ofensas. Ainda não se é capaz de perceber os erros que nos são naturais, os comportamentos que, por hora, nos caracterizam. Dizem alguns que ainda não se evoluiu a ponto de praticar tal amor. Não é isso que encontramos no Decálogo nem nos Evangelhos. Nem Moisés, nem Jesus fazem referência a tempos ou momentos específicos para a prática da Lei. Tais máximas não são para os puros, esses já as ultrapassaram, estão noutro mundo. Elas vieram para combater a dependência de falsas noções de lei, falsas práticas de fé, falsos reinos de deus. Falsos porquê? Porque a humanidade tem que se ultrapassar, superar, crescer. Criar condições existenciais que lhe permitam viver neste planeta com felicidade, paz e amor. Pagar uma dívida é bastante pouco no processo evolutivo. Amar incondicionalmente, ser no templo e na prática organizativa da cidade, como pensava Jeremias, a mesma pessoa, não ter duas faces, e ter fé de que Deus está acima de todas as coisas, isso é bem mais complexo e difícil de praticar. Faz sentido castigar um filho com trinta anos por actos que cometeu quando tinha quatro ou cinco, sem consciência das implicações, sem escala de direitos e deveres nem de valores, apenas movido por naturais impulsos próprios do desenvolvimento da personalidade? Não era seu dever, pai ou mãe, corrigi-lo na altura própria? É que nós somos ainda muitas crianças no nosso processo de espiritualização. O avanço é lento, a aprendizagem morosa, e não passamos de pequenos seres de tenra idade à procura de um doce. O que aconteceu na infância já está ultrapassado. O senso comum da fé é tão intransigente com o de outra área qualquer. Há uma temeridade generalizada de que o culpado saia impune dos seus crimes, que se fique a rir. Há sempre tanta preocupação de que o outro não sofra na própria pele tudo o que fez. É pena. Se fosse investida semelhante preocupação em sentido contrário, teríamos o paraíso na terra. O instinto de vingança ainda se sobrepõe à imperiosa necessidade de compreender a natureza humana. É certo que a sociedade não poderia suportar a impunidade. Há pessoas que não podem viver em liberdade. Um pai dizia-me certa vez: “O lugar do meu filho é na prisão! “Mais tarde, um inspector da Polícia Judiciária dizia-me que ouvira isso muitas vezes, quando estava no activo. É difícil aceitá-lo, mas é verdade. Porém, isso não invalida que se façam esforços para analisar, estudar e compreender tais comportamentos. Sobre estas questões, a Doutrina refere que são oportunidades que são dadas a irmãos na tentativa de os testar, de os pôr à prova a fim de saber se são capazes de subir a níveis de maior complexidade civilizacional. Grande parte, no entanto, falha. Por outro lado, como enquadrar o perdão em um mundo que insiste em reescrever a História segundo a curta visão de políticos que se ocupam com o imediato, manobrando e manipulando temáticas como racismo, igualdade de género, colonialismo, só para citar algumas, com fim a tomar o poder? Falar do passado como um mal, seja ele em que dimensão for, não dá bom resultado. O passado é para se estudar, na sua diversidade, como lição da nossa identidade, a fim de servir de referência para o presente que se quer mais justo e feliz. O colonialismo foi uma das inevitáveis formas de progresso. Teve os seus altos e baixos. O Império Romano foi um deles. Além disso, qualquer reencarnacionista sabe perfeitamente que não reencarnamos sempre no mesmo país. As nossas vidas transcendem os limites geográficos. Não estamos confinados a um lugar específico. É fácil dizer que o mundo está um caos. É difícil afirmar que o mundo somos nós, com o sentido que transportamos, com as imagens mentais com que o representamos. Impõe-se a necessidade de uma vida estável. Num mundo do vale tudo, é urgente um referencial de fé adaptado, é certo, às novas necessidades e vivências, baseado na compreensão da relatividade da natureza humana. A grande questão emerge a toda a hora: O que é que tem mais peso na mudança? Pagar os débitos e continuar a bater na mesma tecla, ou, pelo contrário, investir a fé no cumprimento da Lei, no amor incondicional? A mensagem de Jesus, no cumprimento e seguimento dos anteriores profetas, não veio para os iluminados, os que já evoluíram a ponto de a conseguir praticar. Exactamente o contrário. Veio no seguimento de um universo de esperança de que tu, homem ou mulher, sejas como fores, és capaz de te identificar, de praticar e vivenciar esse amor universal. Não é ainda a perfeição; esse amor é um caminho para a própria perfeição. Não é para quem já atingiu a elevação, a grande iluminação, mas para quem pretende lá chegar. O amor de que fala Jesus, a Lei a que se referem os profetas é simplesmente para nós. Apenas para nós. É esta a mudança de paradigma de Moisés e de Jesus. De facto, o quão difícil é a liberdade de fé. Margarida Azevedo

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