domingo, janeiro 11, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXI



BREVE APONTAMENTO SOBRE A MORTE NO POPULAR PORTUGUÊS

(Continuação)

Daqui se infere que a morte tem o seu quê de beleza e atracção. Ela é uma jovem muito bela e de bom coração, figura contrária à representação que habitualmente dela fazemos. Podemos dizer que a morte não assusta, mas atrai.
Ela é uma mulher. Não fugindo à regra, a morte é feminina, tal como no Antigo Testamento é Eva a portadora da morte, é ela a sedutora.
Mais que ser bela, a morte é a beleza que se deseja possuir. Ela apaixona, seduz, altera formas de estar, de ser, de pensar, e altera os nossos costumes, como afirma B. Bettelheim (cfr. 1998, p.116). Através da beleza da jovem, o príncipe apaixona-se e, ao desejá-la, inicia outra etapa na sua vida: liberta-se dos seus maus comportamentos, da sua indiferença para com a vida fora do palácio e dos meios faustosos, e mais, traz a morte definitivamente para junto de si, casando com ela. Simbolizando o conflito consigo e com os outros, o Príncipe ensina que a felicidade só se atinge quando virmos em cada um uma expressão da morte, um segredo que só esta pode revelar; ele ensina ainda que é viver com a morte sempre presente é uma forma de coerência porque ela é a companhia mais certa, a maior das certezas, talvez a única certeza do ser humano. A morte é uma companheira fidelíssima: não mente, não cria falsas expectativas, não foge às suas responsabilidades.
Para o espiritualismo, dentro e fora das religiões, bem como para o Espiritismo, a morte chega sempre no momento exacto, dito de outro modo, chega quando Deus quer. A própria morte não pode fugir; ela sabe da importância da sua missão.
Estamos em presença de uma reflexão que se repete com um forte ímpeto no pensamento religioso, onde o casamento é uma relação toda espiritual, unicamente conseguida em plenitude no mundo do para lá. Quem não conhece, ainda que ao de leve, o propósito conventual de que o verdadeiro casamento só é com Deus, Jesus Cristo ou Santa Maria? Lembremos o exemplo de Teresa D´àvila (REYNAUD, E., 1997), entre muitos outros, que dedicou toda a sua vida de freira à luta incessante para ser uma eleita de Jesus com o objectivo de casar Ele, facto a que a referida autora chama de divino prazer?
Esclareça-se que a morte inaugura um sentido de desejo e de prazer, responsável pelos tão conhecidos êxtases dos religiosos em momentos de recolhimento e meditação profundos. É o prazer em deslumbre total, a treva supra luminosa muito defendida na Idade Média pelos Pais da Igreja.
Ora, o mosteiro das religiões tem exactamente a mesma função que o palácio dos contos de fadas. Eles representam ouro, jóias, alegria, festa, casamento, luz, cor, felicidade para sempre, tempo infinito... Os jovens príncipes vivem no palácio para sempre onde estão super protegidos, felizes, tranquilos, vivendo os deslumbres do prazer para sempre.
Quem são o príncipe ou a princesa senão os deuses da felicidade? Porém, para lá do mosteiro ou do palácio uma vida cheia de interrogações se impõe. Ela imputa o tremor da ignorância àqueles que ainda não viveram de modo a atingi-la, conferindo sentido ao extirpar, pela repressão própria de quem não tem na morte um objectivo, todos aqueles que não pretendem casar para sempre, isto é, no infinito.
Mas um outro aspecto é digno de relevância, a saber, a formula para salvar o príncipe da morte não tem nada a ver com magia ou curandeirismo, mas tão somente com o contrário da vaidade: a humildade e o amor. Não há magia, não há poderes ocultos, não há forças secretas que sejam capazes de se sobrepor à vontade de bem, à modificação intrínseca de quem quer efectivamente ser feliz por toda a eternidade. E aqui o pensamento popular alentejano sobrepõe-se, com toda a sua riqueza, às modernas doutrinas ou crenças espiritualistas de salvação, porque repletas de recursos ao mágico, enquanto manifestação utilitária e não enquanto expoente de trabalho assíduo e surto de mecanismo de espiritualidade, como bebemos através do exemplo dos Reis Magos no Evangelho de Jesus. No Alentejo, “quem quer bolota, trepa”, sem trabalho nada se consegue.
Nesta história popular, a morte foi uma perseguição aos maus pendores do príncipe, desencadeou uma luta na qual os seus poderes terrenos, tais como ser filho do rei e possuir tesouros, de nada lhe serviam. Ela actuou de forma redundante na sua formação pessoal, trazendo-lhe a felicidade.
Depreende-se ainda que a morte continua a persegui-lo, não já a fim de o castigar, mas como mero fim da vida, tal como acontece a qualquer mortal, nomeadamente aos meninos pobres. O príncipe aprendeu que não é imortal, apesar da sua riqueza. Que absolutamente nada lhe garante a imortalidade, e que a Morte é um estado afectivo, o qual, uma vez atendido, se traduz por Felicidade.
Está assim dado o mote para o capítulo que se segue, subordinado ao tema A morte nos contos de fadas, o qual começa com uma referência ao mito de Adão e Eva.
Barbara Diller

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