quarta-feira, março 25, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXIV


A MORTE NOS CONTOS DE FADAS (Continuação)

a) desobediência

Se com Adão e Eva temos a experiência da morte associada ao desejo de vida, isto é, experiência mais sofrimento mais conhecimento (condenação a trabalho árduo e parir em dor), nos contos temos morte como impulso e protecção para vida. Em ambos, ela é fonte e origem de todo o percurso afectivo, maturidade e consequente edificação do estado adulto.
Tal como em Adão e Eva, nos contos a morte fica progressivamente para trás à medida que o sujeito aprende a viver, vencendo os escolhos, e aproxima-se dela à medida que se desenvolve. É a regra do pião que com capa não anda e sem ela não pode andar. Isto é, o desenvolvimento apressa ou aproxima a morte. No Hinduísmo, Budismo e Espiritismo, e entre as restantes correntes reencarnacionistas, quando o homem atingir o clímax do seu desenvolvimento moral (quando tiver bebido da Árvore da Ciência e da Moral em paralelo), já não reencarna.
A Desobediência é um ponto de partida para a conquista desses saberes e respectiva imortalidade. Por isso, a morte não é um processo de coacção, quer no mito de Adão e Eva quer nos contos. Não há temores, não há espaço para regressão, pois todo o processo, uma vez inaugurado, não poderá parar.
A morte não assusta porque advém da desobediência, acto que acontece porque não há medo, não há constrangimento.
Em “Branca-de-Neve”, a menina habituou-se aos trabalhos domésticos em casa dos anões aprendendo a desempenhar tarefas que, certamente, no palácio não aprenderia. No entanto, por desobedecer aos anões, caiu em artimanhas provocadas pela madrasta, todas elas culminando em grande sofrimento. No último disfarce da madrasta, ao comer a maçã cai desfalecida no chão, ficando a dormir “por muito tempo o sono da morte” (GRIMM, o.c., 22).
No conto “Barba Azul” a desobediência segue um caminho ligeiramente diferente. Barba Azul diz à mulher que precisa de sair por uns dias, em negócios. Como tal, dá-lhe permissão de fazer o que quiser na sua ausência, para o que lhe dá um molho de chaves, juntamente com a chave mestra, a fim de que a esposa possa servir-se de todas as suas coisas. No entanto, diz-lhe que não pode entrar no quartinho pequenino ao fundo do corredor.
Quando o marido regressa, observa que a sua vontade não foi respeitada e que a esposa havia entrado no referido quarto, descobrindo os seus segredos macabros. Assim, quando esta está quase a morrer às mãos do marido cruel que, “(...) segurando-a pelos cabelos com uma mão e, com a outra, levantando a faca, fez menção de lhe cortar a cabeça (...)”(Perrault, 1994, p. 49), eis que dois cavaleiros, seus irmãos, entram repentinamente após terem batido energicamente à porta. Desembainharam a espada e lançaram-se contra Barba Azul (cfr., ibidem).
Como iremos ver no item “Porque contamos contos?”, os irmãos da esposa de Barba Azul desempenham um papel idêntico ao de Sheherazade: anulam o monstro do mal, ainda que por caminhos diametralmente opostos.
Assim, a desobediência não acontece por indisciplina, mas movida pela curiosidade sobre uma proibição cujo sentido não faz sentido, não tem explicação. A tortura e/ou a morte é preferível ao inexplicado.


1. A mãe morta

Se dissermos a uma criança de três ou quatro anos que a mãe morreu, ela não entende. É isto que habitualmente se diz, ou pelo menos é assim que nós o pensamos. A noção de morte (coisa que os adultos temem, mas não representam) é qualquer coisa que só mais tarde a criança vai representar.
No entanto, os contos referem-na da forma mais cruel: a morte da mãe. Quer em Branca-de-Neve quer em A Cinderela, ambas não chegam a conhecer a mãe, vivem com madrastas, mulheres cruéis, sem escrúpulos, vis, expondo as meninas a destinos que o não são menos.
Porém, este aspecto é de capital importância para a personalidade da criança. Repare-se: o senso comum ensina que a criança, não tendo conhecido mais ninguém senão a madrasta, é natural que se dedique a ela, em jeito de agradecimento por tê-la criado, feito dela um homem ou uma mulher, independentemente dos maus tratos que lhe imputou. Ora, nos contos de fadas isso não acontece. Aí, a criança não agradece à madrasta o facto de tê-la criado. Ela é má e tem que pagar por isso. Não há concessões, não há perdões, não há pena, não há espaço para arrependimentos. Aliás, nos contos a madrasta má, que chega a ser uma feiticeira, como no conto cabo verdiano A Feiticeira e a Pombinha, a madrasta jamais se arrepende da sua rispidez e maus tratos para com a enteada. Neste conto africano, a mãe da menina morre e esta fica entregue à ama, que é uma feiticeira. Mais tarde, após conquistar o coração da criança, fazendo-se passar por muito boazinha, casa com o pai, a pedido desta, no intuito de ficar com a sua fortuna. Para melhor o conseguir transforma a criança em pomba, espetando-lhe um alfinete na cabeça enquanto a acariciava ao colo.
Quando o pai volta, à tarde, encontra a madrasta lavada em lágrimas, pois a sua menina havia saído de casa pela manhã e ainda não voltara, segundo o falso lamento da feiticeira. O feitiço só foi quebrado quando um servo dedicado, ao afagar a linda pombinha, sente um objecto rijo no pescoço. Ao retirá-lo a pomba transforma-se na menina. Quanto à madrasta, fugiu para outra ilha.
A mãe é sempre insubstituível, quer a criança a tenha conhecido quer não. Mesmo no faz-de-conta a madrasta nunca faz-de-conta que é mãe, no pensamento da criança. Isto significa que a criança é portadora de uma noção de mãe inata e perfeitamente sólida. Isto significa ainda que, do ponto de vista afectivo, a criança não confunde quem é quem. Ela tem a sua casa afectiva perfeitamente arrumada.
Até porque o faz-de-conta não é representável em termos de afecto para com alguém. A criança não diz “Eu vou morar na tua casa porque faz-de-conta que tu és o meu pai”; mas diz “ Vamos brincar. Faz de conta que tu és o meu pai”. A criança pode mudar de família, se esta não lhe agrada como aconteceu há alguns anos nos Estados Unidos, mas não faz-de-conta que uma família é a outra.
Outro aspecto do faz-de-conta tem a ver com os objectos. Isto é um prato, mas na realidade é uma toalha de papel. A criança tem a noção de que uma coisa não é a outra. O prato está ausente, mas a folha de papel está presente. O mais parecido na sua imaginação é o que vai desempenhar o papel do outro, mas nunca será ele.
Esta noção de alteridade não é aplicável à madrasta. A mãe não está presente, mas a madrasta não faz-de-conta que é mãe. Há um vácuo afectivo que não é passível de ser reparado. Isto significa que cada pessoa ocupa um espaço perfeitamente delineado no corpus afectivo da criança.
A morte não corta com essa arrumação, e os contos ensinam-na como viver com isso.
(Continua)

Barbara Diller

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