domingo, maio 03, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXVIII


A PROBLEMÁTICA DA MORTE NO EVANGELHO

(Continuação)


a) “Deixai os mortos enterrar os seus mortos.”

Com Jesus, o corpo não confere estatuto de vida. Por outras palavras, a vida carnal é um dos múltiplos modos de apresentação da morte. A informação biológica que denuncia a presença de um vivo – respirar/alimentar-se – não é a de um vivo espiritual, apenas a de qualquer forma de vida ainda que elementar. Ao vivo, não é fundamental ter corpo físico. Múltiplas formas de vida nos circundam, infinitas inteligências envoltas em seus mistérios, sem corpos densos como o nosso e no entanto bem mais lúcidas do que nós.
Podemos dizer que não nascemos vivos, mas com uma natural propensão para viver, incorporados em parâmetros de uma espiritualidade com a qual nem somos capazes de sonhar. Que somos face aos anjos e arcanjos? Até mesmo quando comparados com os nossos familiares e amigos que já partiram, que tantas e tantas vezes nos visitam e não somos capazes de perceber, ainda que tenuemente, a sua presença? Não seremos nós, porventura, os mortos? Não seremos nós os que, vivendo nos planos tão densos e tão grosseiros da matéria, ainda nem sonhamos sequer com coisas mínimas como são o mundo que nos espera, o tipo de companhias a que seremos entregues, o género de Entidades trabalhadoras do lar universal que nos acolherão? Efectivamente, nós é que somos os verdadeiros mortos.
Vejamos ainda: A nossa consciência é mínima, a capacidade de concentração rudimentar, o amor adormecido, a noção da nossa identidade nula, o passado esquecido, as capacidades mediúnicas cheias de erros, falhas e fraquezas, a inteligência elementar, os sentidos enganosos, os conhecimentos parcos.
Quem somos, afinal? O animal que luta em busca de uma morte feliz? O louco que procura a imortalidade, mau grado a realidade biológica? Não, o homem é o ser que luta por uma vida que ainda não tem, a plenitude, a consciência, a visão da realidade, o Bem.
Jesus representa essa plenitude. Muito embora seja para muitos um deus, ou mesmo Deus, o certo é que o estatuto de morte em nada se opõe à elevação espiritual de uma Entidade. Muito pelo contrário, consolida-a. Morrer faz parte da vida, quer dos bons, quer dos menos bons, associando-os segundo parâmetros morais e éticos. A morte de Jesus é o espelho da sua elevação, símbolo de Quem já não pertence a este mundo.
Em Jesus aprendemos que ao nascer já trazemos a marca da morte que nos transportará à vida eterna, pois somos arquivo vivo de um passado que, por mais oculto, o momento da passagem encarrega-se de friamente revelar.
Por isso, a morte de Jesus emerge de uma noção pagã de passagem ou mudança de estado, selando o nosso encontro, infelizmente há muito adiado, com a eternidade em luz. Ela procede ao reencontro com os que nos são mais queridos, dantes chamados deuses pelo fenoménico com que nos preenchiam a vida, pelo tremor que causavam, pelos postulados que nos legavam.
É dessa relação com o desconhecido, desde sempre perspectivada como uma comunicação com as forças ocultas da Natureza, que Jesus Cristo vai construir a sua moral. Transportando para o íntimo de cada um de nós as razões de semelhantes ocorrências, Ele ensina que só pelo Amor celestial conseguiremos aprender o que esses seres têm para nos ensinar, precisando para tal de nascer de novo.
Isto remete-nos para a reflexão de que talvez não tenhamos começado aqui, neste planeta, nem devamos acabar nele. A nossa vida é transcendental, donde as nossas acções não mais que uma triagem da nossa estrutura espiritual, com sérias repercussões sobre o nosso futuro, e consequentemente sobre a nossa morte. É inútil agarrarmo-nos à vida como lapa à rocha, é inútil enchermos os celeiros até abarrotarem. De um momento para o outro partimos, partimos mesmo, e a agonia que experimentamos no grande momento não é o receio da morte, mas o apego à vida terrena, aos bens que cá deixámos, a quem os deixámos.
Somos mortos, de facto, quando insensatamente não queremos esquecer que tudo cá fica, até o nosso corpo, até o que de mais amamos, até aqueles que amamos, mas também os nossos sonhos, os nossos anseios, as nossas lutas. Todavia, o Pai amantíssimo, através de Seu Filho, promete-nos o paraíso de bênçãos para os que crerem até ao fim, os que não vacilarem, os que não acreditarem mais nos homens que em seu Filho.
Para quê mortos chorarem mortos? Porque queríamos que eles vivessem mais tempo junto de nós? Porque morreram muito jovens? É certo que tudo isso nos faz sentir uma dor muito forte no peito, aquela dor de uma despedida muito especial, um adeus muito grande, aquela dor cuja profundidade só a alma entende, só o Espírito define. Mas Jesus veio para nos dizer que isso não faz sentido para os que tiverem fé. Se compreendermos que um punhado de anos nada são para definir a nossa existência, que nada faria sentido se terminássemos, assim, feitos em pó, certamente que, refeitos da nossa dor, emergirá uma luz cujo clarão nos conduzirá ao lar da paz e da fraternidade.
Heraclito de Éfeso dizia, “E como uma mesma coisa, existem em nós a vida e a morte, a vigília e o sono, a juventude e a velhice: pois estas coisas, quando mudam, são aquelas, e aquelas, quando mundam, são estas.” (frag. 205, p191). A vida e a morte confundem-se e distingui-las depende apenas do lado em que estamos, do ponto de observação em que nos colocamos. Os mortos, quando morrem, passam a vivos; os vivos, quando nascem, passam a mortos. E estes últimos somos nós.

(Continua)

Barbara Diller

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