ANTES E DEPOIS (qualquer semelhança é mera coincidência)
Sem descambar em saudosismos ridículos, pois com tal não me identifico, achei no entanto que devia partilhar algumas das minhas cogitações sobre o que era o Espiritismo há mais de trinta anos e o que é hoje. A diferença é de tal modo abissal que tenho a sensação que se trata mesmo de outra doutrina.
Para quem nasceu espírita, e estudou dentro de parâmetros cujas directrizes estavam orientadas para a modificação interior do ser humano, tudo lhe parece dramaticamente ausente de fundamentos, não só pela apatia dos ouvintes nas sessões, como pela técnica elaboração do discurso por parte de quem pretende transmitir alguma coisa.
Os trabalhadores da velha guarda, tantas vezes em condições bastante hostis, divulgavam o Evangelho em salinhas humildes, dando as sessões a um público sedento de esclarecimento e sob o olhar atento da polícia. Já quase todos morreram. Se tivessem desencarnado, ainda seriam lembrados, provavelmente. Mas não. Morreram mesmo. Ignorados, desprezados, vencidos. Desactualizados e antiquados, na míope observação de alguns, pois não se escondiam na carapaça da Doutrina, como hoje, onde cada um diz o que lhe vem à cabeça sob o nome de Espiritismo.
Para eles, todos eram bem-vindos: gente de todas as raças, etnias, culturas; ricos e pobres, gente de todas as idades. Às vezes lá aparecia um ou outro que nem português falava, mas que percebia os trabalhos, lá isso percebia.
Naqueles tempos também não era costume a prática inquisitorial da expulsão. Davam preferência à oração através da qual era solicitada a protecção de Deus, de Jesus e dos bons Espíritos. Pediam-lhes a limpeza do ambiente através de mentes higienizadas, lembro-me de ouvir tantas vezes. Era a Fraternidade celebrada em cada sessão, num esclarecimento simples, numa prece cheia de amor. Foi assim há séculos. Ninguém os recorda, ninguém ora por eles. É lamentável.
O Centro onde comecei situava-se discretamente num 2.º andar, num prédio muito velho, numa avenida periférica de Lisboa. A dirigi-lo tínhamos um grupo de pessoas unidas pelo muito amor à Doutrina, encabeçado por um director versado no que a mesma tem de mais sublime, a saber, amor versus instrução.
Hoje, um Centro deve situar-se em zona alta da cidade, preferencialmente. Se tal não acontecer, deve ao menos estar em zona de fáceis acessos, ou onde seja facilmente detectável ao mais desatento transeunte. Quanto à Direcção, geralmente constituída por uma lista vencedora após renhida campanha eleitoral, silenciosa ou barulhenta, ou num zumbido do diz que diz, é encabeçada por alguém versado em retórica, o que em linguagem comum significa “ter muita palheta” ou “ter muito parlapier”. Saber Espiritismo é o que menos importa. O importante é ser astuto e saber levar a água ao moinho, isto é, convencer o auditório.
Dantes, o Centro era constituído por algumas salas contíguas, um corredor muito comprido que dava acesso fácil a todas elas, uma casa de banho relativamente grande e ao fundo uma cozinha, igualmente grande, onde era confeccionada a sopa dos pobres. A casa estava modestamente mobilada. A livraria e a biblioteca estavam lado-a-lado, e quer numa quer noutra os livros estavam dispostos ora com rigor, ora sem ele. A sala de sessões públicas resumia-se a umas quantas cadeiras enfileiradas como num anfiteatro, uma mesa com O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo, e um aparelhómetro muito antigo (ainda a cassetes) para dar uma musiquinha ao pessoal, a fim de criar o ambiente apropriado para a prece. Atrás da mesa, viradas para o público, estava o exacto número de cadeiras para os oradores. Tudo do mais humilde. Nas paredes um retrato de Kardec, um ou outro poster ou quadro alusivo à Natureza, ou de algum médium exemplar.
Hoje, os Centros são espaços reluzentes de tudo o que há de mais moderno e sofisticado. Ele é aparelhagem de luz e som caríssimas, ele é cadeiras estufadas de modernos designs, ele é computadores, data shows, retroprojectores, ecrãs, tudo o que de melhor há em áudio e vídeo. A mesa de trabalhos é uma sofisticada obra de arquitectura, minuciosamente preparada para o efeito, e, nas paredes, as prateleiras para essa maquinaria toda, além de outras parafrenálias que não se sabe para que servem. Quando alguma coisa falha, lá se vai o trabalho por água abaixo. O auditório começa a ficar nervoso, gera-se um zumbido frenético enquanto algum expert, há sempre, tenta colmatar a falha. Quando há quadros nas paredes, estes têm um aspecto muito místico, consistindo em imagens de médiuns envoltas em jogos de luz complexos ou em fundos cénicos pouco definidos. São os milagreiros dos Centros, os tão adorados médiuns e respectivos Espíritos comunicantes.
Dantes, as pessoas vinham ao Centro para “tratar”os seus problemas espirituais, serem esclarecidas, ouvirem atentamente as leituras e os seus comentários. É claro que o
Evangelho era a obra principal e os comentários eram livres. Isto significa que o comentador, sendo versado na Doutrina, interpretava os textos recorrendo, muitas vezes, a outras obras, algumas fora do Espiritismo, se isso viesse a propósito. Desta forma, cada grupo tinha a sua forma de trabalhar, o que conferia ao Centro um colorido e uma vivacidade que muito o enriquecia.
Hoje, mediante um lugar de direcção que se pretende manter custe o que custar, e ignorando as linhas condutoras da Doutrina e os grandes problemas da Humanidade, bem como tudo o que de mais nos rodeia, o comentador tem de ser um indivíduo da inteira confiança da Direcção. O que ele diz é voz de quem dirige. Assim, ouvir o Joaquim ou a Maria, é indiferente. Falam todos pela mesma boca; um pensa por todos.
Dantes, o discurso apelava essencialmente à modificação interior da pessoa, à sua capacidade de perdoar, a uma vida de altruísmo. Pretendia-se educar para a vida, ensinar para a paciência, desenvolver aptidões para que todos pudessem vir, um dia, a fazer parte dos trabalhadores da Casa.
Hoje, desenvolve-se a dependência. É preciso que a casa se encha, mas é fundamental que cada um saiba qual é o seu lugar: uns falam, outros ouvem; uns mandam, outros obedecem; uns dirigem, outros são dirigidos. Mas… mas, quando algum tem ordem para saltar o muro, é imperioso saber que a obediência é uma grande virtude, pois caso contrário os Espíritos inferiores tomam conta dele.
Dantes, ensinava-se que imitar Jesus significa criar uma aura protectora, lembrando que ninguém vai ao Pai a não ser por Seu intermédio. A santificação ou a luz do Espírito era o objectivo principal de toda e qualquer palestra. Desta forma, apelava-se ao poder da prece, da meditação e do bem-fazer. A depressão encontrava no esclarecimento parte da sua resolução, assim como a angústia e a descrença em Deus. Orar e fazer o bem era o melhor remédio contra as más influências, quer dos seres desencarnados, quer dos encarnados. Estas eram as bases da fé, o fundamento da Casa.
Hoje, este discurso perdeu todo o sentido. A quem está deprimido aconselham que vá para um ginásio, pois a depressão é bem capaz de se dever mais a um problema de sedentarismo que de espiritualidade, ou então mais a um entorpecimento das articulações do que a um certo egoísmo ou falta de fé. Quem sabe, talvez a fé também seja um problema de celulite ou de artroses nos joelhos. Mas isto não fica por aqui. Aconselham idas ao cinema ou simplesmente a andar por aí, dar um girinho. É que desta forma talvez se encontre alguém, talvez os bons Espíritos tragam a companhia que está a faltar para aconchegar a alma. Por outras palavras, andar à pesca de alguém pode ser uma fantástica prática espiritual.
Dantes, o Centro convidava oradores de outras doutrinas, de outros Centros, quer de Portugal, quer do estrangeiro. Todos eram de igual modo recebidos. Todos eram atenciosamente ouvidos e as questões colocadas eram todas elas de boa fé.
Hoje, os oradores de outras doutrinas nem tão pouco são convidados. Esses não entram nos Centros. Quanto aos de outras Casas Espíritas, só são convidados os que fazem parte dos conhecimentos pessoais dos seus dirigentes e, portanto, pessoas nas quais depositam absoluta confiança. Ninguém quer correr o risco de ser confrontado com outras abordagens doutrinárias, o que poderia fazer perigar o bom funcionamento do Centro. Os convidados de hoje são psiquiatras, psicólogos, médicos dos mais variados colégios de especialidade, juízes, advogados, biólogos, como se estivesse ao seu alcance responder, entre outras questões, porque é que existe cosmos e não caos, por exemplo, explicar os fundamentos da nossa existência, ou ainda os fenómenos mediúnicos, a sua génese e as suas causas remotas.
Sem pôr em causa as competências científicas dessas pessoas, há que perceber que convidá-las não tem como objectivo esclarecer quanto a questões doutrinárias, mas tão só usar sub-repticiamente os seus conhecimentos com o objectivo de sedimentar afirmações que nada têm a ver com as verdades da fé. Para esses, a fé já não faz sentido, é tudo uma questão de ADN. A Doutrina de Jesus passou a explicar-se pelos genes e não pela Ética, Moral, Religião, Teologia, Exegese. Tudo isto está excluído dos discursos espíritas. Quanto à Bíblia, mais de 90% é para deitar fora.
Assim, estes novos ares que se respiram dentro dos Centros estão a defender a existência de uma casta baseada na superioridade biológica, ainda que muitos não se dêem conta disso, por meio do que poderemos chamar discursos subliminares. Esta fascinação colectiva de consequências desastrosas a todos os níveis, já se estende ao próprio Jesus. Não falta por aí quem diga que deixou descendência, tal como não falta quem pesquise quem são os seus legítimos herdeiros, não já aqueles que querem fazer a vontade do Pai ou subir até Ele por Seu intermédio, mas aqueles que, através de uma genética superior, são os verdadeiros escolhidos.
Ora, o Espiritismo, bem como as demais Doutrinas sérias, está para além de biologismos. Ensinam essas doutrinas, das quais o Espiritismo é uma delas, que a fé é parte integrante de todo o ser humano, independentemente da sua constituição biológica.
Quem ler as Bem-aventuranças depara, de facto, com o apelo a um ser superior, aquele que muito quer servir, muito quer amar. E isso está ao alcance de todos os homens, sem excepção. Servir e amar, sempre, é esta a acção superior e esclarecida da fé. E isto não é matéria jurídica, nem biológica…É resultado das muitas vivências que se perdem na noite dos tempos. É imemorial.
Por isso a maioria dos discursos de hoje não apelam a coisa alguma. São tão áridos como as negatividades que os produzem.
Muita paz
Margarida Azevedo
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