OS DEUSES DA TRIBO
Antes de mais, como ecuménica, mas também como cristã à luz da doutrina espírita, tenho um profundo respeito por todas as manifestações religiosas, incluindo as formas de crença tribais e respectivos deuses. Todos eles são portadores de grandes máximas, preceitos e regras de conduta que visam curvar o Homem perante uma Força Suprema. Por isso nos merecem toda a consideração.
Todavia, o mesmo já não podemos dizer do “sub-movimento” arrepiante, e por demais escandaloso, que está a emergir dentro do Espiritismo. Refiro-me às disputas entre médiuns, grupos e até Centros, em torno das capacidades mediúnicas de autores/oradores espíritas, bem como das respectivas Entidades comunicantes. As discussões são tão acesas quanto áridas, de tal forma que expulsam gente, chegam a acabar com grupos que não têm força para se lhes opor, bem como a defender um modus operandi standard como o único e verdadeiro, nomeadamente na forma de dar passes.
A frivolidade vai ao ponto de defenderem interpretações, geralmente descontextualizadas, reclamando para si o supra sumo da inteligibilidade da Doutrina. O mesmo é dizer, são os detentores da luz, das suas manifestações, tentando aprisioná-la dentro do Centro como pássaros em gaiolas.
Ignorando o que se passa nas outras doutrinas, desconhecem que os Espíritos de luz são os mesmos em todo o lado, pois para Deus não há enteados, só filhos, e que, tal como Jesus nos legou, não é quem diz Senhor, Senhor, mas quem faz… Senão, que Deus seria esse? Que Pai amantíssimo que daria a uns o esclarecimento e a outros deixaria nas trevas? É que nem os deuses da tribo o fazem, é bom lembrar. E ainda que não nos pareça assim, a ignorância não está na tribo, é nossa.
Voltando aos nossos “espíritas iluminados”, tentam à viva força fazer crer que, quem entra num Centro espírita vai deparar-se com Entidades de luz, pertença do movimento. Só ali, e em mais lado nenhum, está o esclarecimento, a luz divina.
Parte significativa dos Centros tornaram-se autênticas tribos, com os seus deuses, isolados em si próprios, de tal forma negativos que, estou certa, em muitos deles ponho em causa se alguma Entidade relativamente mais esclarecida os visitará. E quanto a isto, eu não gostaria de ter razão.
Assim, uns são adeptos fervorosos de Pietro Ubaldi, a que outros dizem “Valha-me Deus!; outros, mais nacionalistas, preferem Fernando Lacerda, para os quais é a luz personificada, e outros, completamente esbaforidos, são uns autênticos filhos/discípulos de F.C. Xavier. Isto mais parece as Guerras do Alecrim e da Manjerona, de Nicolau Tolentino, em que uns são partidários da rosa, outros do cravo, mas há um, que quer ser mais a la mode, é partidário do malmequer, com a diferença de que para estes tudo se resume a uma valente snobeira, enquanto que para os outros é uma questão tribal.
A água fluidificada de um grupo não tem os mesmos “poderes” da de outro, o passe magnético é ineficaz em relação ao de outro, e assim sucessivamente. As tribos andam em guerra territorial, pois todas dizem querer salvar o Centro das garras do baixo astral (rima e é verdade), faltando-lhes apenas espetar o retrato do médium ou da Entidade num pau e pôr um livro no alto da cabeça, à semelhança de uma pena.
Para quem está fora de tudo isto, sente que urge dar carta de alforria aos médiuns, Entidades, trabalhadores, Centros e tudo o mais. É hora de revolução sob o slogan: “Abaixo as tribos e os seus deuses! Viva a liberdade de expressão!”
Há que compreender que Deus exclui-Se de definições, fórmulas, etc. Até aqui, parece-me, não há questões de maior. Porém, o problema, em nosso entender, coloca-se sobretudo ao nível da liberdade. Aqui é que começam as dissenções, pois se a liberdade de expressão é tida como um perigo dentro da maioria dos Centros, como “entender” Deus enquanto Ser de liberdade? Dito de outro modo, Deus é Deus porque é inteiramente livre. Não se reduz a um discurso, a um modo de estar ou compreender o mundo, a uma doutrina. Tudo quanto existe é criado, logo é uma criatura, sempre uma emanação.
Nós, como seus filhos, precisamos da liberdade de expressão como força estruturante da nossa fé. Porém, alguns oradores falam como se Deus lhes tivesse encomendado o responso, com tal exuberância e oratória de tal forma teatralizada que, ao ouvi-los, o auditório fica espantado e de olhos revirados. São os cínicos que, mais preocupados com a adesão do auditório do que com os caminhos para Deus, usam uma espécie de ênfase mediunista simulando estar em contacto directo com Entidades. E se calhar até estão, só que não são aquelas que o auditório pensa. Aí, a liberdade não existe, mas possessão.
O Espiritismo, enquanto doutrina de Espíritos esclarecidos ou do Espírito da Verdade, não pode continuar a permitir tal situação. Além disso, os Espíritos, por mais perfeitos que sejam, são emanações, criaturas que vão evoluindo através dos séculos e que vêm trazer o seu saber à Terra. Não são para ser adorados, venerados, mas respeitados, seja qual for o seu nível.
Em suma, Deus não é o deus dos espíritas, mas o Deus de toda a Humanidade. Manifesta-se no coração de todos os homens, pois todos são seus representantes legítimos. Em Espiritismo, Deus está ao alcance de todos, desde que pratiquem o Bem, o que implica arrependimento profundo e renovação interior. E o Espiritismo não é a única doutrina a dizê-lo. Os cínicos desconhecem que o que define as doutrinas nem sempre é a novidade do discurso, mas o modo como ele é dito.
O movimento tribal que está a crescer nos Centros espíritas é um lamentável equívoco da fé, uma caricatura de Deus bem como dos Seus legítimos emissários. É uma deturpação doutrinária, um postiço ético que facilmente desmascaramos.
Por outro lado, a hierarquia ou escala estabelecida entre as doutrinas é ilegal, perante um registo de fé, pois que abordá-las em termos de mais e de menos é construir muros à livre comunicação entre os crentes, o que urge derrubar.
Margarida Azevedo
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