sexta-feira, julho 08, 2011

NA RELIGIÃO, QUE LUGAR PARA A FÉ?


Ao reflectirmos sobre o fenómeno religioso e os seus meios de divulgação, facilmente constatamos que o mesmo tem sido o grande erro da humanidade.

Em nome da religião, de falsos conceitos e vivências da fé, se têm proibido os avanços científicos, as ideias novas, criado distâncias entre homem e mulher, impedindo assim uma vivência despreconceituosa, livre e saudável.

No que diz respeito à exegese e teologia das chamadas Religiões do Livro (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), quantos não têm sucumbido nas mãos dos líderes para os quais a novidade interpretativa é uma ameaça? Estabelecendo um clima de terror, muitos estudiosos não manifestam livremente as suas ideias sob pena de não continuarem vivos.

Na maioria dos casos, pretendendo uma uniformização mediante um discurso a uma só voz, pensam alguns que o fenómeno religioso implica, dentro de uma mesma organização, vivências da fé em moldes idênticos, calibrados como peças de um maquinismo qualquer, de tal forma que faltando uma substitui-se facilmente por outra.

Assim, não mais que revelador do lado alucinado do ser humano, o fenómeno religioso é um bom exemplo de distúrbios psicológicos, pois cada religião julga-se detentora da verdade, o que só por si é gerador de discursos incoerentes e por isso pouco credíveis, o que a torna intransigente e inflexível. Movidos por uma certeza inquestionável, os líderes crêem que o seu discurso é o discurso de Deus, a sua voz a única que chega ao céu. Desconhecendo que o discurso religioso, como qualquer outro, é permeável a outros discursos, que sofre influências pois nada surge do nada, e que a religião tem que acompanhar a evolução dos tempos, lutam sem tréguas por uma suposta pureza doutrinária que mais não é que a manutenção de uma hierarquia longe dos fiéis, abstracta e surda, e onde a fé nada, ou muito pouco, significa ou representa.

Ora, o contágio não significa perda de integridade, enfraquecimento ou laxismo. Pelo contrário, é representativo de crescimento, evolução e adaptação do discurso aos novos sentidos da linguagem, tornando-se perceptível a todos os fiéis, e não perdido e restrito a um pequeno grupo. Por outras palavras, tornado voz de uma elite poderosíssima, o discurso unidireccional do fenómeno religioso tem erigido muros à fé, impedindo que cada um de per si se sinta caminho e não escolho dentro da organização religiosa.

Levado às últimas consequências, este fenómeno tem desenvolvido a xenofobia, nós somos os únicos enviados directos de Deus, o racismo, somos uma raça escolhida, a ideia de superioridade, nós somos os mais inteligentes, de poder, só nós temos a verdade e há que espalhá-la por toda a terra.

O culminar destes comportamentos alucinados tem sido revelador de uma humanidade cuja natureza é profundamente homicida, e à qual o fenómeno religioso tem dado livre expansão, uma vez que matar torna-se mais fácil porque encoberto sob o véu da religião. Segue-se depois o desfilar de injustiças, tais como a impunidade e o assumir da situação como um acto de coragem e de fé, construindo heróis que devastam e aterrorizam tudo o que se lhes oponha, sendo os derrotados os infiéis perigosos.

Desta forma se compreende que matar em nome de mais não é que o rosto dos perigosíssimos fundamentalismo e totalitarismo, em que a vida não é o maior dos bens, a diferença é encarada como uma ameaça que faz desmoronar a boa moral e os bons princípios, a emancipação das mulheres como uma fraqueza e ameaça para os homens. Tudo isto abafa o sublime direito à vida, o dever de respeito pelo outro que, em vez de ser encarado como um filho de Deus, é tido como um vírus destruidor.

Os fantasmas impedem que haja uma aproximação ao outro, uma vez que o único e exclusivo objectivo é o de criar milhões de adeptos e não milhões de amigos. Aqui impõe-se uma questão: O que é mais importante para mim, relacionar-me com o outro enquanto possível seguidor das minhas convicções, ou como cidadão, crente ou não, reconhecendo-lhe o direito de traçar o seu próprio caminho? O que é mais importante, o outro enquanto pessoa ou enquanto crente?

Ora, a dimensão de pessoa é sempre mais abrangente. Ela engloba antes de mais o cidadão, o que é inegável, pois até o próprio discurso religioso assenta no facto de que Deus nos deu um mundo para habitar, sendo a Humanidade uma irmandade porque todos somos Seus filhos; engloba a inter-relação com o outro, o que implica partilha, a que o fenómeno religioso não se cansa de fazer alusão; engloba as relações entre homem/mulher, afectos, paternidade/maternidade, relações de filiação, de que a religião sobejamente se ocupa; engloba as relações laborais e toda a sua complexidade, e sobre as quais a religião emite os seus pareceres.

Porém, não redutível a um pequeno espaço, religioso ou não, a dimensão de pessoa engloba todos os aspectos, religioso, estético e político, alarga horizontes dando espaço ao livre pensamento, promove a inter-subjectividade, dinamiza e alarga objectivos nas mais diversas áreas, tais como científicas, técnicas e tecnológicas, confere ao ser humano a possibilidade de se revelar enquanto ser único, transmissor de um potencial riquíssimo que só em liberdade pode manifestar-se. Ser cidadão é ser responsável, donde o espanto perante a Natureza e todo o vasto campo fenoménico, do qual o outro é sempre parte integrante, consiste no despertar da incómoda quão atraente noção de que caminhamos para um mais onde nada se confunde mas participa e colabora.

Contrariamente, a dimensão de crente é redutível a um único aspecto, a saber, a adesão a uma organização religiosa. Resultado, a cidadania, relações inter-pessoais, afectivas, laborais e outras, ficam drasticamente dependentes da mesma, uma vez que o cumprimento dos deveres sociais, familiares, etc, confunde-se com os deveres religiosos.

Poderão fundir-se cidadania e religião? Se isso viesse a acontecer ficaríamos sem ambas. Quando temos no Evangelho a expressão de que não é quem diz Senhor, Senhor que entra no Reino de Deus, mas quem faz a Sua vontade, somos conduzidos a uma novidade grandiosa, a saber, a fé não é do domínio do dizível, mas do vivencial, mostrável, expansível, pois a capacidade de agir é infinita. Com Jesus, não estamos no plano da discursividade mas da vivência interior da fé, plano esse que supera tudo o que o fenómeno religioso defende. O texto refere-se a comportamentos e não a fórmulas; é uma qualidade e não uma análise quantitativa. Para Jesus, sendo que toda a humanidade é filha de Deus, logo o que conduzirá cada um ao Pai não é o cumprimento das práticas exteriores (o mostrar que se é crente), mas toda uma vivência discreta da fé. Por outras palavras, se o fenómeno religioso continuar de costas viradas para a sociedade, com todo o pluralismo que a caracteriza, temendo-o, em pouco tempo perderá todo o sentido, tornando-se as religiões resíduos, uma espécie de tábua de salvação fantasmática para os problemas que protagonizamos, e não um espaço de conversa com Deus no recato da fé.

Crer que uma religião é forte só porque tem muitos adeptos, é reduzi-la a muito pouco. A sua força mede-se pela tolerância e pelo amor a Deus que promove, acima de todos e quaisquer interesses. Tal como a fé não é grande em quem muito fala, ou muito ora, mas em quem pretende bem agir.

A religião não esgota a fé, mas é a fé que esgota a religião e a supera, transpondo o homem para lá da discursividade.

Margarida Azevedo

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