domingo, março 03, 2013

O PAPEL FUNDAMENTAL DO ATEÍSMO NA CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE ( Contos de Fadas e Tradicionais)


Consideremos previamente três diferentes acepções de ateísmo:

1.Deus não existe. É uma construção da imaginação humana resultante de uma dificuldade existencial: aceitar a morte, o términus do sentido, o fim absoluto.

2.Não acreditar em Deus. A forma como os crentes estão na fé em nada dignifica a condição humana. Os crentes não são melhores que os não crentes.

3.Deus está ausente. Ele é uma questão que não se põe. Vencer e ultrapassar dificuldades consegue-se por meios próprios.

Se em 1 temos a posição radical do indivíduo que simplesmente rejeita a existência de Deus, facto que depende unicamente de si próprio, em 2 estamos perante uma situação vivencial que passa pelo modo como o outro está na fé. É da observação que o indivíduo conclui que não acredita em Deus. 1 é apriorístico, 2 depende da experiência.

Em 3 as questões da existência e da fé não se colocam. E é este aspecto que nos interessa para as linhas que se seguem.

Contrariamente ao que a maioria pensa, os contos infantis são para adultos. A infantilidade do conto é apenas um postiço para agradar às crianças. Neles há ódio, inveja, ciúme, sensualidade, interesses, castigo terrível, grande festança, morte, mas também vida feliz para sempre. Como chegar lá? É precisamente isso que o conto ensina de forma objectiva.

Os contos partem sempre de uma ausência terrível e sem recurso: a morte da mãe como em Irmão e Irmã, Branca-de-Neve; a morte do pai, como em Rosa Branca e Rosa Vermelha, As Fadas, João e o Feijoeiro Mágico; pobreza extrema ou ausência de meios de sobrevivência como em A Gata Borralheira, Os Três Porquinhos, O Vendedor de Pêssegos.

A personagem principal geralmente é de tenra idade ou pré-adolescente, quase sempre feminina, embora também surja o menino ou os irmãos. Vive com uma madrasta má, é visitada por bruxas e fadas más que usam de todos os disfarces e artimanhas para a enganarem, em contraposição com a presença de fadas boas e animais dóceis. A madrasta toma o partido das fadas más e das bruxas, sendo ela por vezes a própria bruxa. O pai está ausente, trabalha fora ou está muito ocupado. Acredita na madrasta, desempenhando sempre o papel do ingénuo, pois nem lhe passa pela cabeça o que vai lá por casa.

A personagem principal está entregue a si mesma. É toda inocência, ingenuidade, ignorância. Ela possuí, no entanto, alguns materiais que irá utilizar no seu aprendizado, que significa crescimento, e que são alguns dotes naturais: é bela e/ou trabalhadora. Quanto ao seu bom coração, descobre-o na oposição ao ambiente que a rodeia.

Podemos assim afirmar que dizer que a vida não é como nos contos de fadas é proferir um erro crasso. A vida é exactamente como nos contos de fadas. É dura, nos contos a personagem principal é mal tratada pelos que vivem com ela, veja-se A Gata Borralheira; é difícil, a personagem principal, e não só, trabalha de sol a sol, veja-se A Gata Borralheira e Branca-de-Neve, onde os anões trabalham bastante e exigem-lhe o mesmo; o perigo espreita a toda a hora, quando e por quem menos se espera, veja-se O Capuchinho Vermelho, Hänzel e Gretel, que têm que lutar para não serem mortos; convive-se diariamente com quem não se gosta, como as madrastas em Branca-de-Neve e Gata Borralheira, nesta temos ainda as filhas da madrasta, que são terríveis; há muita falsidade, a madrasta de Branca-de-Neve mascara-se tornando-se irreconhecível, para a enganar; os idosos são marginalizados e rejeitados, como em Os Quatro Músicos da Aldeia; perder o grande amor da vida por não ser capaz de o merecer, dando valor às coisas simples, ou então fazer tudo por um grande amor, mas infrutiferamente, como em O Guardador de Porcos; há inveja entre irmãos, como em A Bela e o Monstro; a riqueza não protege ninguém de cair em desgraça, como em a Bela Adormecida, Branca-de-Neve, A Gata Borralheira; por vezes os bons perdoam aos maus os maus tratos a que os submeteram, como em A gata Borralheira; desenvolver a sensibilidade garante uma vida feliz, como em Uma Verdadeira Princesa; os maus sofrem geralmente um castigo terrível e sem perdão como em O Capuchinho Vermelho, uma das versões de Branca-de-Neve, As Fadas.

Perante tão grandes dificuldades e tão dolorosas, uma tão grande diversidade de acontecimentos, pergunta-se: Porque é que os autores dos contos de fadas não introduziram Deus? Mas também: Que viria Deus acrescentar ou ser uma mais-valia na estrutura dos contos? Do nosso ponto de vista, temos as seguintes hipóteses.

Parece claro que os contos pretendem introduzir na personalidade do indivíduo três factores essenciais:

Toda a estrutura do conto conduz-nos facilmente à identificação com a personagem principal. Queremos ser como ela. Todos simpatizamos com Branca-de-Neve, Gata Borralheira, o Porquinho, o que não deixa de ser curioso. Ninguém quer ser mal tratado, mas todos se identificam com o herói sofredor. Porquê? Porque é antecipado um final feliz. A nossa estrutura psíquica não suporta um sofrimento ad eterno. Isso é reforçado pelo facto de a personagem principal ser injustiçada, ou seja, nada fez para merecer tão grandes dificuldades, deixando antever um grande momento de justiça. Ora é aí que reside um dos fundamentos do conto: o herói não é uma vítima, pois a sua docilidade excluí-o perentoriamente; por outro lado, a pedagogia vivencial não é um pagamento de coisa alguma, um merecimento resultante de comportamentos anteriores, mas um curriculum que se vai construindo em cada momento doloroso ao qual a docilidade confere insensatez e ausência de inteligência. O fim será sempre um grande momento de justiça.

Por outras palavras, a noção de sofrimento no conto não é a de um castigo do herói, mas um percurso. Nesse percurso ele vai aprender a viver com situações de ausência (mãe/pai, Irmão e Irmã; O Fuso, a Lançadeira e a Agulha), orientar-se nos parcos recursos, situações de extrema pobreza (O Pequeno Polegar), aprender a viver num processo descendente (de rico passa a pobre, A Gata Borralheira ), de dono passa a dependente, de príncipe passa a plebeu, A Guardadora de Gansos); há uma mudança espacial, do palácio, com todas as mordomias, desloca-se para a floresta, com todos os seus perigos (Branca-de-Neve); há também uma mudança radical no tempo, de criança passa a jovem, que implica logicamente a passagem da imaturidade para o conhecimento (A Bela Adormecida). Por outras palavras, no fim do conto o herói sabe viver porque é conhecedor dos perigos da vida

O medo do outro, por pior que ele seja, é sempre ultrapassado. Ainda que possam surgir receios, eles são facilmente superados por meio de uma obediência e docilidade em que o mau, ao incoerentemente acreditar nele, esbarra com na sua mesma credulidade ao ser traído por ela, como em Hänsel e Gretel. O mau acaba por ser mais ingénuo que o bom. Aprende-se assim que a docilidade não é sinónimo de estupidez, mas de sábia paciência/prudência. Por outras palavras, sem revolta, o bom atinge sempre os seus objectivos.

O bom é trabalhador, o mau preguiçoso. O bom é útil, o mau parasita. O bom chora, o mau ri. O bom aprende, o mau ignora. Perante tanta insensatez cometida pelo mau, e tão grandes dificuldades e maus-tratos sofridos pelo bom, a progressão deste é inquestionável. A vida tem que ter para com ele um gesto de gratidão. E efectivamente tem-no. O bom será feliz para sempre. Esta escatologia está presente desde o primeiro momento. O conto faz-nos aguardar um final que é sempre terrível para o mau e feliz para o herói. Essa felicidade consiste num resultado justo de uma pedagogia que não é escolar, mas vivencial. A mãe ou o pai morreu, é muito pobre, não se diverte, tal é a realidade e não há nada a fazer, há que viver com isso. A aceitação e a ausência de revolta são os móbeis dessa vivência prenhe de felicidade.

Se introduzíssemos Deus nesta problemática empobreceríamos o papel de ambos, do conto e de Deus. De que serve pedir a Deus a mãe se ela já faleceu? Deus não é uma fada boa que nos traz a mãe falecida. De que serve pedir a riqueza se os recursos são parcos, as terras secaram, se já não dão fruto? Do lado do conto, de que serviria lamentar-se? Iria alterar alguma coisa? Podemos dizer que a realidade mágica do conto não é apelativa da vivência milagrosa da fé, mas da transformação do carácter daquele que muito trabalha. No final, ele já não possuí a bondade da ignorância, mas a do bem, e que são diametralmente opostas.

Qual o papel de Deus e qual o do conto? Parece que a adoração a Deus ainda está por fazer. O que habitualmente acontece é um transfert do ambiente mágico do conto para a vivência não menos magiciante da fé, por parte do crente. Este ignora, habitualmente, que magia e milagre não são a mesma coisa.

Porém, os contos não nos remetem para o pensamento mágico, mas para a magia da vida, bem como para a dura realidade existencial do ser humano. Saber viver é o que o conto ensina. Deus é outra realidade. Quanto ao pensamento mágico, ele faz parte de uma vivência psicológica desconforme com a realidade e cujo comportamento varia entre a atrofia da personalidade, que não se desenvolveu, e o homicídio sanguinário, de quem não conseguiu ultrapassar episódios dolorosos desde a infância.

O ateísmo do conto remete indiscutivelmente para uma preparação psicológica de tal forma sólida que deixa espaço aberto para todas as relações, independentemente da sua natureza: afectivas, sociais, fé. Antes de lermos um catecismo, já nos leram contos que nos prepararam para outras leituras, outras realidades, outras experiências. Podemos dizer que, antes de caminharmos na fé, passeámos pelo ateísmo, ouvindo histórias de encantar no traço colorido mas inconfundível dos caminhos complexos do que nos vai esperar ao longo da vida. Ele deixa também a certeza da punição justa do mau, não por uma imposição divina ou sobrenatural, mas na sequência lógica de todo um conjunto de actos frios, calculistas, indignos, maus. Podemos dizer que a maldade tem um fim, condição e resultante da sua mesma natureza.

Há que perceber que não é no modo como conquistamos a felicidade que está Deus, mas no que significa a própria felicidade. O modus operandi será sempre nosso, individual. A luta pelo bem também não significa Deus. Deus é o próprio bem. Um bem é qualquer coisa que se deseja e que trás felicidade, o que pode ser de uma infinidade de naturezas: um anel, um banquete, um(a) príncipe/princesa, nada faltar. Deus pode passar por aí, mas não significa que passe. Ele pode contê-los, mas não são nem Deus nem a Sua totalidade.

A par e passo deparamo-nos com a transcendência desta imanência que é um fora que está muito dentro e vice-versa. Deus não é toda a felicidade nem todo o bem. É uma felicidade e um bem que não compreendemos, de que não conseguimos falar porque é totalidade.

Por isso, a atracção por Deus é contrária à do conto. Em Deus não antecipamos nenhum fim, pois o tempo e o espaço não são definíveis e o fim é sempre um princípio. Somos atraídos pela inefabilidade, o desconhecido, isto é, uma curiosidade por meio de qualquer coisa a que chamamos fé. Dito de outro modo, a fé é a coisa mais curiosa que há. Por isso dizemos que em Deus tudo é inefável, talvez por uma questão de conforto linguístico.

No conto sentimo-nos atraídos pelo herói precisamente porque antevemos um fim, a felicidade para sempre num mundo algures. Essa felicidade é sempre o domínio sobre o outro que, porque mau e ainda que arrependido, passa a ser ele o obediente de forma escrava, porém, jamais nos mesmos moldes dos do herói (curioso). Este, porque é bom, usa critérios de justiça para com ele, o que não invalida que seja intransigente e implacável deixando-o morrer dolorosamente. O bom, feliz, assiste ao final do mau sem nada fazer porque não pode. A sua felicidade distancia-o do mau. Isto significa que se o bom teve a compensação pelos seus bons comportamentos, o mau tem a respectiva compensação pelos maus. Não é possível alterar isto, tal como não é possível ao juiz sentenciar o assassino à liberdade. A família da vítima ficará radiante com a reclusão do homicida e nada fará para alterar essa realidade, assim como a sociedade em geral. Desta forma, o fim justo do conto é generalista, universalista, representável pelo mais simples silogismo lógico.

E isto não é matéria de Deus. O que pertencerá a Deus será sempre pedir e orar por ele. O que é que isso significa? Bom, isso já é outra coisa.

Moral da história: O mal é uma dependência. Vale sempre a pena ser bom porque o bem triunfará para sempre.
Margarida Azevedo

__________BIBLIOGRAFIA

Os Mais Belos Contos, Companhia Editora do Minho, 1994, 9 vols.

GRIMM, Irmãos, Branca-de-Neve,Verbo Infantil, Lisboa, s/data.

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