PARA ONDE CAMINHA A HISTÓRIA?
Longe
de criar e desenvolver uma liberdade consciente e empenhada, o mundo global
criou a clausura, a desertificação e empobrecimento de ideias, justificando-se
erroneamente, com a tradição e a história.
Esta desertificação gera a par e passo o vazio de sonhos,
cada vez mais limitados a anseios profissionais, o medo, onde o pensar por si
próprio é visto como uma ameaça e factor de exclusão, bem como a crescente
insegurança que, no pior dos cenários, pode ter como agente o vizinho do lado
(que, por acaso, era um tipo pacato).
Ora nem a tradição significa uma paragem no tempo, nem a
história é um alibi para os erros do presente. O esclavagismo, o racismo e a
xenofobia de hoje não podem encontrar justifictivo no passado, impondo-se como
a lei da vingança, ou uma reacção natural aos actos do passado. Mesmo os
reencarnacionistas não podem justificar o presente com as vidas passadas,
porque o passado não é um cliché. A teoria das reencarnações é demasiado eleborada
para cair em tal redundância. O reencarnacionismo pretende ser uma hipótese de resposta
e não uma justificação do anti-evolucionismo neste grande mistério que é a
existência. Isto significa que, se alguém mata alguém, não é porque a vítima
foi, necessariamente, homicida. O homicídio acontece porque a natureza humana
permanece idêntica ao que sempre foi, e esse é um dos grandes problemas.
Mas não só. A sociedade global tráz para dentro das
nossas casas o outro, sem que previamente lhe seja transmitido que terá que se
adaptar a novas regras, sendo que quem lá vive sente-se invadido e destronado
no espaço que sempre lhe pertenceu. Isto distancia o todos iguais perante a
Lei, acresce a impunidade, os justificativos para a violência e agresssividade,
encarados como um acto natural. Assiste-se, desta forma, a leis para
governantes e para governados, para ricos e para pobres, para nacionais e para
estrangeiros, para etnias diferentes, de tal forma que o que é errado para uns não
o é para outros, e tudo num mesmo
espaço.
Assim, nada mais inconsequente e impraticável que bloquear quem chega ao acesso às novas
regras, deixando-o comportar-se como muito bem entende e em total impunidade.
Assim se violam mulheres e crianças, se rouba e furta, se corrompe, se
desrespeitm as autoridades.
Nesta inversão de valores, surge o sonho de um
paraíso perdido, um passado estável, ainda que nem sempre simpático, não raro
ditador, como o garante da esbilidade.
Ao criticar a Europa, com o objectivo de fazer cair no
esquecimento tudo o que de positivo ela deu ao mundo, e sendo que muitos querem
nela viver, tentam anular o importantíssimo papel do Cristianismo, ou, melhor
dizendo, Judeu-Cristianismo, tornando-o o grande pecado do mundo. É certo que
há sempre contágios religiosos, o que num objectivo cem por cento de paz é
sempre bem-vindo, mas o que não pode acontecer é a subversão dos valores
judaico-cristãos em detrimento de outros, baseados em pensamentos guerreiros,
ou, mesmo que o não sejam, intolerantes, anti-democráticos, racistas, na medida
em que pretendem impor regras só para si.
Este eclipse do humano, mediante
comportamentos absurdos, pretende que este se perca, caindo num desnorte
existencial, exposto ao novo colonialismo da era moderna, baseado na degradação
salarial e social, onde a família é para desmoronar e onde a máquina vai
invadindo um espaço que não lhe pertence. Perante este quadro, pergunta-se: o
que é que se está, verdadeiramente, a combater? A corrupção? A crescente
desigualdade? A inversão de valores que estão a pôr em causa a democracia? Pode
ser tudo isso, mas a perda da identidade é a cabeça desta manifestação de
descontentamento, palavra de ordem que grita “que é feito da minha casa?’”
Se
observarmos com relativa atenção a temática dos discursos com que invadem a
televisão, deparamo-nos facilmente com jogos de linguagem manipuladores das
sensibilidades. Não são apenas os políticos que se esmeram em promessas
eleitoralistas, as religiões dão-lhes o mote: a ascensão a um mundo de
felicidade.
Porém,
quando tudo, ou quase tudo, dá sinais de não ser assim, surgem os processos
pseudo-explicativos tais como: “nada
aparece feito; as pessoas procuram milagres e são demasiado exigentes; este
mundo não é um paraíso; dificuldades, quem as não tem?” , culpabilizando o
auditório.
No
entanto, a par da justificativa individualista, fundamentam-se na História.
Ora, isso é duplamente perigoso. O Holocausto na Segunda Grande Guerra não pode
justificar os genocídios de hoje; a colonização de há séculos atrás não pode
justificar desentendimentos políticos do presente; o racismo de outrora não
pode justificar ódios inter-raciais de hoje.
A
História é um imenso palco pedagógico que ensina mentalidades, comportamentos,
manifestações de fé, relações internacionais, etc. Jamais pode ser utilizada
como justificação de comportamenos menos assertivos
do presente.
Assim,
mediante o consequente enfraquecimento das democracias, gerou-se um clima de
perseguição, baseado no passado de há séculos ou mesmo milhares de anos, que
alimenta ódios onde deveria haver tolerância e bom entendimento.
Aquilo
a que assistimos, lamentavelmente, é ao enfraqueimento do poder político,
substituído pelos tribunais, uma classe média sobrecarregada de impostos e que
vai perdendo voz na vida política, e um crescente distanciamento de todos
iguais perante a Lei.
Desta
forma, em jeito de balão de oxigénio, nunca se falou tanto de pesquisa etnográfica como hoje, pretendendo evidenciar
uma raíz cultural, lembrar os avós que tanto lutaram, que tantas dificuldades
tiveram para fazer dos filhos gente de bem, quase sempre em grande adversidade,
onde emerge, também, a fonte onírica do folclore com os seus monstros e
terrores nocturnos, geradores de fantasmas que se materializaram em figuras
coloridas e estranhas, enfim, uma espiritualidade transversal a todos os povos
que, no conjunto, encarnam o corpus cultural do mundo. Eles são o profano e o
sagrado, o laico e o religioso, o equilíbrio antropológico do animal Homem.
Porém,
e é de reflectir sobre isso, até a Etnografia começa a ser excluída dos
curriculos das faculdades porque, dizem, “já
ninguém vive nas aldeias”, como se o etnográfico fosse apenas aldeão. Ora,
nem isso é de todo verdade, nem se pode fazer da cidade um local onde vive
gente aos magotes, à deriva, sem identidade cultural. Como pode a cidade
receber estrangeiros se estes não são confrontados com a felicidade das raízes
identitárias de quem os recebe?
Por
seu lado, o religioso, seja em que ponto do planeta for, deve ensinar o crente
a tornar-se melhor. Se o não fizer, não passa de uma organização de mentira. O
religioso não pode apresentar-se como o terror social, o horrível, o gigantão
da morte cruel, facto que, não se pense, vem apenas pelas armas.
Afirmar que a felicidade não é deste mundo significa não
lutar por melhorá-lo. A felicidade não pode ser pertença exclusiva de um mundo
que não se sabe qual é nem onde está. A felicidade não pode ser uma ilusão ou
uma quimera existente num mundo ideal que nos transforma em paradigmas do mesmo,
num suposto paraíso reino da preguiça. Temos que a ver como uma realidade a
conquistar e, como tal, aquilo por que vale a pena lutar, precisamente porque
está, efectivamente, ao alcance de todos e realizável neste mundo.
Sonhar com um paraíso no lado de lá cria descontentes e
desempenhados com o mundo em que vivemos, gera mentalidades suicidas e
homicidas, irracionais. Esse mundo, se existisse, seria tão terrífico como um
qualquer império do mal, pois que o já feito impor-se-ia, adormecendo as mentes
que, na inércia, deixariam de produzir. O mundo do já feito e perfeito é
impensável pois, sem a acção humana, tudo se torna caótico. Mas, pergunta-se: “Não haverá um mundo melhor do que este?”
A haver, ele começa aqui e agora. “Ir
desta pra melhor”, como muito bem diz o povo, só é uma verdade mediante o
que construirmos no mundo em que vivemos. Tudo se encadeia. A Felicidade, que é
Deus, é outra coisa, que deixa de estar ao nosso alcance quando cada qual
pretende impor, alucinadamente, a imagem que Dele criou. Deus é Amor, e não uma
representação discursiva.
Que resposta dão as religiões, os grupos espiritualistas
e espíritas? Talvez a questão não deva colocar-se nestes moldes, mas: Que papel
desempenha cada crente convicto, cada crente que não abdica de um Deus que se
manifesta na História, que pretende aprender com ela os erros do passado para
não os repetir no futuro? Aqueles que no
seu seio promovem a fé em Deus acima de todas as coisas, a fé libertadora, que
conduzem o ser humano a repensar a sua identidade e, com ela, empenhá-lo na luta por um
mundo melhor, além de marginalizados tornaram-se indesejados. Mas são esses que
estão no bom caminho.
Isto
e muito mais faz parte do inexplicável mundo que construímos, fragmentado
e desiludido. Enquanto uns tiverem tudo e outros nem o indispensável, política
e religião têm muito que trabalhar. A crescente adesão, não só a novas
religiões, mas também a novas formas de viver o religioso, procurando a
humildade numa meditação, uma oração em grupo ou um ritual ecuménico e
eclético, vai ganhando corpo neste mundo do “crer
sem pertencer”, ainda que visto com relutância pelo poder político. São os
crentes defensores do Amor universal que vão humanizando a religião, democratizando-a, contra tudo e contra todos.
Com tudo isto, a
religião está a tornar-se demasiado pequena para a fé, que não dissocia
os assuntos do céu dos assuntos da terra, num ideal comum, contíguo e fraterno.
Sopram outros ventos e outro Deus começa a manifestar-se na História.
Margarida Azevvedo
Sites
consultados:
“De Durkheim aos
Dias de Hoje”
– Religiões (Bertrand Badie/Courser)
Cardeal
Sarah
Arno
Froeste
“O que isso
significa?”-
Introdução (Bertrand Badie)
Conversas à
Quinta
Fukuyama:”Hoje é mais complicado tomar decisões chegar
a…”
https://observador.pt
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