NATAL 2018
Nada
há de pior que o lavar da consciência, dormir sem pesadelos porque já
contribuiu para o natal dos pobrezinhos e assim deus nosso senhor já não se
zanga, não manda nenhuma doença nem tira a prosperidade para o ano que se
avizinha a passos largos. É o alívio da esmolinha a um irmãozinho pobrezinho
coitadinho que não tem pãozinho, sim, porque eles existem para nos fazer
despertar para felicidade que temos de não sermos também, assim, tão
pobrezinhos.
E
assim ano após ano o ritual repete-se.
Fazem-se presépios, árvores de natal, compram-se presentes, fala-se de paz e
amor, de contrastes sociais, fossos,
crateras fundas e bem fundas entre ricos e pobres, lembra-se o frio dos deserdados, enfim, uma futilidade em
jeito de sarnazina do tipo conto da desgraçadinnha. Mas nada muda.
Porém,
somos todos pobres de alma, potencialmente pobres a nível de recursos
económicos, pobres de afectos, pobres, muito pobres porque muito ignorantes. Urge
perceber que ninguém existe para limpar consciências de ninguém, e essa começa
por ser a maior pobreza. É claro que isso é muito confortável. É bastante
incomodativo sensibilizar para a partilha, para
a saúde e educação ao alcance de todos. Isso é capaz de doer um pouco ou
um muito.
É
assustador como se propagam que nem cogumelos as organizações de solidariedade
social, o voluntariado, os pedidos para o Banco Alimentar e outras organizações
similares, para as instituições de abrigo, um nunca mais acabar de recolha de
víveres, roupas, produtos de higiene pessoal, para o lar e para a escola.
Porém, a pobreza aumenta, os necessitados são cada vez mais e mais pobres,
transformados em gente que não é gente, são apenas os pobres.
Avizinha-se
um mundo de electrónica com repercussões completamente imprevisíveis, no entanto
de uma temos a certeza, fará coro com os
que desejam destruir as bases estruturantes da estabilidade emocional, a
impossibilidade de as famílias fazerem projectos, traçarem caminhos com
objectivos próprios. A livre escolha dará lugar ao formatado.
Os
Robots não vão tirar ninguém da rua, não vão aliviar consciências pesadas, não
vão obrigar a trabalhar os preguiçosos, nem vão ensinar aos humanos a ser humanos. Lembremos, só de
relance, a descoberta do fogo. Colocado à entrada das cavernas, afungentava as
feras e assim os humanos puderam cair num sono profundo, e sonhar. O fogo ígneo
transportou o Homem para a consciência de outras realidades, fantásticas,
exuberantes, fantasias com que foi desenvolvendo folclores, linguagens,
imortalidades, um sem fim de memórias que se perpetuaram, tão reais como os
sonhos, tão reais como a dor de estar desperto na luta constante pela
sobrevivência. Sono e vigília casaram para sempre, a vida começou a dividir-se
entre vigília e sono, de tal forma que formaram uma unidade, um todo. Hoje
temos dificuldade em discernir um do outro. Também não é preciso. É preferível
deixar estar tudo como está. Lá diz o poeta que o sonho comanda a vida.
Com os robots estamos
perante uma situação similar, aparentemente. Os robots levarão os humanos à
exaustão, prolongando o estado de vigília que conduzirá ao pesadelo da
inutilidade, do humano se sentir excedentário, do que irá fazer de si mesmo.
O
sonho que amadureceu a fé, a coloriu e conduziu ao Deus da Promessa como uma
porta que se abriu a outras realidades, à maturidade de um povo mensageiro de
Deus para o mundo, jamais poderá ceder a esta falta crescente de
espiritualidade. A vigília está a querer ridicularizar a nossa fé, criar
incerteza, fragilidades, desconfiança e medo. É o pesadelo de estar
constantemente cá deste lado, transformando o sono na esterilidade do descanso
do corpo (apenas) de quem está exausto de pensar não pensando, e não numa
viagem que se repete todos os dias pelo universo distante há milhões de anos. Contrariamente
ao fogo, que faz de todos os humanos mediuns videntes, exploradores do cosmos,
o robot limita-os, amesquinha-os. O fogo revela o humano a si mesmo, o robot
ridiculariza-o; a sua precisão será, efectivamente, a sua mais-valia, mas terá
para o humano um preço demasiado alto.
Em
suma, parece que a nossa vida, irreversivelmente, vai mudar da água para o
vinho. A inteligência artificial estará na ordem do dia, em alta punjança,
substituirá a mão-de-obra humana; um dia, só
os robots irão trabalhar no campo; mais de 70% dos empregos vão
desaparecer; advogados, médicos e professsores serão reduzidos; à distância de
um clique no telemóvel tudo estará ao dispôr, tal como chamar um automóvel
telecomandado ou fazer um diagnóstico precoce, na área da saúde; a impressão 3D
nem se imagina até onde irá…
E
a fé? Como será a relação com o divino? Em que se tornará ou o que significará
acreditar? Remeter-se-á a fé para uma espécie de pensamento etnográfico,
rústico, arqueológico, uma característica dos seres de carne e osso por
oposição à inteligência artificial tão infalível e tão perfeita? Torna-se-á a
fé como uma mácula identitária dos humanos, um símbolo da sua fraqueza? Deus
será apenas uma jangada neste desejo ancestral de imortalidade? Continuará a fazer
sentido falar-se de Promessa, de povo escolhido, de Bíblia, de Lei, de Tora, de
Profetas? E de Natal?
A
Árvore de Natal, o Presépio, a decoração dos templos, a disposição dos objectos
utilizados nos rituais serão feitos por robots? Os arranjos florais, a escolha
das leituras, a inspiração para os respectivos comentários a que fontes irão
beber? Sim, porque comentar implica sempre situar no tempo e no espaço. O aqui e agora têm sido as nossas coordenadas. O que acontecerá se o
deixarem de ser? Se o tempo é o dos
robots e o espaço é o criado por eles, e se os humanos lhes vão obedecer, quais
irão ser os seus referenciais? Não irão os robots, por seu lado, temer as
congregações dos humanos? Não se tornará a religião temível para eles de tal
forma que os humanos terão que acabar com ela ou criar novas formas de
manifestação da fé? Mas como e quais?
Parece
que os robots irão deixar os humanos com mais tempo para si mesmos, mais libertos,
haverá mais tempo para pensar. Será? Mas será que é isso que se pretende?
O
Natal tem-se tornado a festa dos presentes. Crianças e adultos desejam ofertas
electrónicas, telemóveis avançados, computadores; as crianças desejam bonecos
que as imitem ou lhes ensinem como viver na abundância.
Fomos
habituados a um desejar mediante estruturas comportamentais assertivas. Mergulhados
até ao pescoço num fechado sistema de trocas que nos fazia desejar o Natal só
para ter o prazer de receber o prémio do bom comportamento do ano inteiro, o
Menino Jesus era o modelo para todas as crianças, não porque trazia os
presentes, mas pelo bom comportamento. O pai natal era um enviado repleto de
fantasia a quem era escrita uma cartinha a pedir o presente tão desejado, que voava
no céu no trenó puxado por renas e entrava pela chaminé.
O
Natal não se pode perder. Quem sabe, sem querer tombar no absurdo de que um mal
é sempre um bem, um mesmo num optimismo ingénuo, mergulhado na sua própria
insensatez, o humano seja, finalmente, obrigado a reflectir sobre a sua
verdadeira natureza, repense mais maduramente sobre a fé, Deus, e este profeta de
quem há mais de dois mil anos celebramos
o nascimento.
Que
a quadra natalícia de 2018 o/a faça reflectir sobre um profeta judeu, nascido
de mulher, carne da nossa carne, humano como nós, que nasceu numa manjedoura
não por ser pobre, mas porque não havia lugar na hospedaria (Lc 2: 1-20), e que
é alvo das mais infelizes fantasias e que urge desfazer. Este Jesus que não é
um mito, como nenhum dos profetas, não é o protagonista de uma história para
adormecer, uma aplicação no telemóvel, um herói ou um líder.
Jesus
é outra coisa. E se porventura, porque
pelo andar da carruagem iremos lá chegar, criarem um jesus virtual em 3D, a
pregar perante uma multidão ávida de liberdade, deserta por encontrar uma tábua
de salvação, aos gritos, histérica, de braços no ar como se estivesse num
concerto de uma música maluca, não acredite nesse jesus enlatado, ainda que o
discurso que lhe colarem aos lábios seja de paz, amor e fraternidade. Palavras,
leva-as o vento. O natal desse jesus traz a impotência da falsa fé.
Crer
é liberdade, é a luta constante por um mundo melhor onde todos cabemos sem
receios. Que esta época natalícia seja um momento de oração pela paz no mundo.
De oração, de muita oração.
Que
Cristo e todos os Profetas estejam no seu coração. Amén.
Margarida
Azevedo
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