sábado, dezembro 29, 2018

NATAL 2018


 

Nada há de pior que o lavar da consciência, dormir sem pesadelos porque já contribuiu para o natal dos pobrezinhos e assim deus nosso senhor já não se zanga, não manda nenhuma doença nem tira a prosperidade para o ano que se avizinha a passos largos. É o alívio da esmolinha a um irmãozinho pobrezinho coitadinho que não tem pãozinho, sim, porque eles existem para nos fazer despertar para felicidade que temos de não sermos também, assim, tão pobrezinhos.

E assim ano após ano o  ritual repete-se. Fazem-se presépios, árvores de natal, compram-se presentes, fala-se de paz e amor,  de contrastes sociais, fossos, crateras fundas e bem fundas entre ricos e pobres, lembra-se o frio dos deserdados, enfim, uma futilidade em jeito de sarnazina do tipo conto da desgraçadinnha. Mas nada muda.

Porém, somos todos pobres de alma, potencialmente pobres a nível de recursos económicos, pobres de afectos, pobres, muito pobres porque muito ignorantes. Urge perceber que ninguém existe para limpar consciências de ninguém, e essa começa por ser a maior pobreza. É claro que isso é muito confortável. É bastante incomodativo sensibilizar para a partilha, para  a saúde e educação ao alcance de todos. Isso é capaz de doer um pouco ou um muito.

É assustador como se propagam que nem cogumelos as organizações de solidariedade social, o voluntariado, os pedidos para o Banco Alimentar e outras organizações similares, para as instituições de abrigo, um nunca mais acabar de recolha de víveres, roupas, produtos de higiene pessoal, para o lar e para a escola. Porém, a pobreza aumenta, os necessitados são cada vez mais e mais pobres, transformados em gente que não é gente, são apenas os pobres.

Avizinha-se um mundo de electrónica com repercussões completamente imprevisíveis, no entanto de uma temos a  certeza, fará coro com os que desejam destruir as bases estruturantes da estabilidade emocional, a impossibilidade de as famílias fazerem projectos, traçarem caminhos com objectivos próprios. A livre escolha dará lugar ao formatado.

Os Robots não vão tirar ninguém da rua, não vão aliviar consciências pesadas, não vão obrigar a trabalhar os preguiçosos, nem vão ensinar aos humanos a ser humanos. Lembremos, só de relance, a descoberta do fogo. Colocado à entrada das cavernas, afungentava as feras e assim os humanos puderam cair num sono profundo, e sonhar. O fogo ígneo transportou o Homem para a consciência de outras realidades, fantásticas, exuberantes, fantasias com que foi desenvolvendo folclores, linguagens, imortalidades, um sem fim de memórias que se perpetuaram, tão reais como os sonhos, tão reais como a dor de estar desperto na luta constante pela sobrevivência. Sono e vigília casaram para sempre, a vida começou a dividir-se entre vigília e sono, de tal forma que formaram uma unidade, um todo. Hoje temos dificuldade em discernir um do outro. Também não é preciso. É preferível deixar estar tudo como está. Lá diz o poeta que o sonho comanda a vida.

Com os robots estamos perante uma situação similar, aparentemente. Os robots levarão os humanos à exaustão, prolongando o estado de vigília que conduzirá ao pesadelo da inutilidade, do humano se sentir excedentário, do que irá fazer de si mesmo.

O sonho que amadureceu a fé, a coloriu e conduziu ao Deus da Promessa como uma porta que se abriu a outras realidades, à maturidade de um povo mensageiro de Deus para o mundo, jamais poderá ceder a esta falta crescente de espiritualidade. A vigília está a querer ridicularizar a nossa fé, criar incerteza, fragilidades, desconfiança e medo. É o pesadelo de estar constantemente cá deste lado, transformando o sono na esterilidade do descanso do corpo (apenas) de quem está exausto de pensar não pensando, e não numa viagem que se repete todos os dias pelo universo distante há milhões de anos. Contrariamente ao fogo, que faz de todos os humanos mediuns videntes, exploradores do cosmos, o robot limita-os, amesquinha-os. O fogo revela o humano a si mesmo, o robot ridiculariza-o; a sua precisão será, efectivamente, a sua mais-valia, mas terá para o humano um preço demasiado alto.

Em suma, parece que a nossa vida, irreversivelmente, vai mudar da água para o vinho. A inteligência artificial estará na ordem do dia, em alta punjança, substituirá a mão-de-obra humana; um dia, só  os robots irão trabalhar no campo; mais de 70% dos empregos vão desaparecer; advogados, médicos e professsores serão reduzidos; à distância de um clique no telemóvel tudo estará ao dispôr, tal como chamar um automóvel telecomandado ou fazer um diagnóstico precoce, na área da saúde; a impressão 3D nem se imagina até onde irá…

E a fé? Como será a relação com o divino? Em que se tornará ou o que significará acreditar? Remeter-se-á a fé para uma espécie de pensamento etnográfico, rústico, arqueológico, uma característica dos seres de carne e osso por oposição à inteligência artificial tão infalível e tão perfeita? Torna-se-á a fé como uma mácula identitária dos humanos, um símbolo da sua fraqueza? Deus será apenas uma jangada neste desejo ancestral de imortalidade? Continuará a fazer sentido falar-se de Promessa, de povo escolhido, de Bíblia, de Lei, de Tora, de Profetas? E de Natal? 

A Árvore de Natal, o Presépio, a decoração dos templos, a disposição dos objectos utilizados nos rituais serão feitos por robots? Os arranjos florais, a escolha das leituras, a inspiração para os respectivos comentários a que fontes irão beber? Sim, porque comentar implica sempre situar no tempo e no espaço. O aqui e agora têm sido as nossas coordenadas. O que acontecerá se o deixarem de ser? Se o tempo é o dos robots e o espaço é o criado por eles, e se os humanos lhes vão obedecer, quais irão ser os seus referenciais? Não irão os robots, por seu lado, temer as congregações dos humanos? Não se tornará a religião temível para eles de tal forma que os humanos terão que acabar com ela ou criar novas formas de manifestação da fé? Mas como e quais?

Parece que os robots irão deixar os humanos com  mais tempo para si mesmos, mais libertos, haverá mais tempo para pensar. Será? Mas será que é isso que se pretende?

O Natal tem-se tornado a festa dos presentes. Crianças e adultos desejam ofertas electrónicas, telemóveis avançados, computadores; as crianças desejam bonecos que as imitem ou lhes ensinem como viver na abundância.

Fomos habituados a um desejar mediante estruturas comportamentais assertivas. Mergulhados até ao pescoço num fechado sistema de trocas que nos fazia desejar o Natal só para ter o prazer de receber o prémio do bom comportamento do ano inteiro, o Menino Jesus era o modelo para todas as crianças, não porque trazia os presentes, mas pelo bom comportamento. O pai natal era um enviado repleto de fantasia a quem era escrita uma cartinha a pedir o presente tão desejado, que voava no céu no trenó puxado por renas e entrava pela chaminé. 

O Natal não se pode perder. Quem sabe, sem querer tombar no absurdo de que um mal é sempre um bem, um mesmo num optimismo ingénuo, mergulhado na sua própria insensatez, o humano seja, finalmente, obrigado a reflectir sobre a sua verdadeira natureza, repense mais maduramente sobre a fé, Deus, e este profeta de quem há mais de dois mil anos  celebramos o nascimento.

Que a quadra natalícia de 2018 o/a faça reflectir sobre um profeta judeu, nascido de mulher, carne da nossa carne, humano como nós, que nasceu numa manjedoura não por ser pobre, mas porque não havia lugar na hospedaria (Lc 2: 1-20), e que é alvo das mais infelizes fantasias e que urge desfazer. Este Jesus que não é um mito, como nenhum dos profetas, não é o protagonista de uma história para adormecer, uma aplicação no telemóvel, um herói ou um líder.

Jesus é outra coisa.  E se porventura, porque pelo andar da carruagem iremos lá chegar, criarem um jesus virtual em 3D, a pregar perante uma multidão ávida de liberdade, deserta por encontrar uma tábua de salvação, aos gritos, histérica, de braços no ar como se estivesse num concerto de uma música maluca, não acredite nesse jesus enlatado, ainda que o discurso que lhe colarem aos lábios seja de paz, amor e fraternidade. Palavras, leva-as o vento. O natal desse jesus traz a impotência da falsa fé.

Crer é liberdade, é a luta constante por um mundo melhor onde todos cabemos sem receios. Que esta época natalícia seja um momento de oração pela paz no mundo. De oração, de muita oração.

Que Cristo e todos os Profetas estejam no seu coração. Amén.

 

Margarida Azevedo

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