VERDADE E REVELAÇÃO
Eis
uma das grandes temáticas das religões. Um binómio que tem custado alguns
dissabores, pensamentos intolerantes sob a capa de pacifismos de cosmética,
pois não há religião que não se diga detentora de grandes revelações e da verdade
absoluta. Assim, ser crente tornou-se sinónmo de ser o privilegiado (o
escolhido, entenda-se) de pertencer a uma forma de fé que possui a verdade, que
aconteceu por meio de uma revelação numa época e num momento muito especiais.
Ora
esta vivência torna a fé redutível a um partidarismo minimizador da sua força
intrínseca, desmobiliza o aspecto sociológico no qual a fé deve espelhar-se
colocando o crente ao serviço da comunidade, ou seja, aprisiona. Isto abre-nos
à reflexão de que a fé pode não ser factor libertador. A fé também pode ser um
mal se por meio dela o crente não conseguir ouvir, perceber, interrogar,
aprender que: “A minha fé está no caminho
errado.”
Os
insondáveis e nebulosos caminhos da fé
não têm sido auto-estradas bem construídas, mas vielas e pisos bastante
irregulares impeditivos de expansões livres na medida em que têm excluido linguagens,
isto é, outras fés. Há que perceber que não somos irmãos porque estamos
próximos no espaço e no tempo, mas porque somos filhos de um mesmo Deus para
além do tempo e do espaço. Temos uma
origem comum, que partilhamos ao longo das existências onde cruzamos idênticos
caminhos, estamos onde muitos já estiveram, mas objectivando, todos sem
excepção, a felicidade. Partilhamos
experiências materiais e espirituais que nos definem, todavia sempre na nossa
subjectividade porque Deus sente-se, não se explica.
Se
remontarmos aos anais da Bíblia Hebraica, a Revelação vem trazer conforto,
esperança e incentivo; o nosso esforço não é em vão, ainda que num quadro de
grandes lutras, erros constantes, porém, com eles e apesar deles, caminhamos
para algo que podemos desconhecer mas que é profundamente libertador. Este Deus
que se revela sem nome, forma ou figura, seguramente em resultado de uma maturidade
religiosa e espiritual de um povo é, não uma, mas a Verdade suprema que Se
revelou no momento próprio. Este Deus desconhece as barreiras humanas tais como
ricos e pobres, manifesta-Se no Templo como no lar mais humilde, é uma presença
incondicional fora das coordenadas espaço/tempo. Estamos em presença de uma
revelação que é simultaneamene uma nova pedagogia pois ensina a estar na fé de
uma forma livre. Não amesquinha nem
aprisiona numa classe social, num grupo de fé, pois que o seu cumprimento é acessível
a todos e não a alguns.
Tal
facto implica uma noção de mundo como o lugar da humanidade inteira, lugar
comum onde se cruzam caminhos rumo a um mesmo fim, Deus. Sem mundo não há fé, nem
revelação nem procura da verdade. O mundo é caminho, não o fim.“Os rabinos expressavam a sua ideia num paradoxo:“Deus é o lugar do mundo, mas o mundo não é
o seu lugar”.*
As
práticas de diversas origens culturais que continuaram e continuam a existir,
ou melhor, coexistir, não são, umas perante as outras, mercê de alguma aparente
simplicidade, voz de deficiências de fé representativas de primórdios
espirituais (Espíritos primitivos) por oposição a outras, mais eleboradas, e
por isso iluminadas. O mais ou menos compatível com os desígnios de Deus reside
no muito amar, o que implica tolerância e respeito. Crer em Deus e amar o mundo
são uma só coisa, os modos são nossos neste imenso arco-íris da fé.
Tomemos
o exemplo de Jeremias e os falsos profetas. Não falta quem delapide o seu
sentido profético para impôr aos fiéis a ideia falaciosa de que o profeta se
dirige a formas de fé exclusivas do judaísmo, ou até de uma igreja em
particular. Não. Jeremias impôs-se aos crentes que dividiam a vida em duas
vivências opostas: a da fé e a social, e este é um dos grandes problemas
universais. Com Jeremias aprendemos que todos somos profetas na medida em que formos
cumpridores da Lei, lei que não tem fora nem dentro, exterior por oposição ao interior
salvífico. A salvação não vem de dentro para fora ou seja, é da integridade do
ser humano que falamos, a qual não possuí frente e verso. Dito de outra forma,
crer não é uma escapadela milagrosa ao castigo dos actos incorrectos, mas pode
ser um perdão no coração do verdadeiramente arrependido. Trata-se do velho
problema da passagem do discurso religioso para a prática quotidiana da vida. Porventura
não será o contrário? Muitos crentes não são crentes, mas um bando de
supersticiosos para quem Deus não passa de um ser mágico que, quando quer e
porque quer, dá a luz e a salvação. Só que nós não estamos excluídos da
responsabilidade dessa construção.
Assim,
este Deus único apresenta-se ao coração humano, não como um Ser que carece de
ideologia para ser adorado, mas como uma presença vivencial. Trata-se de um
Deus todo liberdade e libertador, todo verdade, todo revelação. Sem a força da
Revelação permaneceríamos numa fé silenciada na idolatria (que ainda hoje
perdura entre muitos e que, por isso, erroneamente é confundida com as
religiões da Natureza). Assim, o crescimento espiritual e religioso da
humanidade não passa pela aceitação deste Deus no abstracto, que para muitos é
erradamente um vazio, mas no concreto e
tangível da vida material, da vivência ao nível do humano e muito humano. Esta
revelação jamais iria ao invés da nossa natureza. Ela acontece porque nós somos
quem somos perante Algo que É como É.
Vivemos
a irmandade de filhos de Deus na Verdade libertadora, uma liberdade que não
conseguiríamos dar a nós mesmos. Como irá dizer Paulo na carta aos Gálatas: “Pela liberdade Cristo nos libertou.”(Gl
5:1) que, embora no contexto temático da circuncisão, podemos, sem
exagero, enquadrar neste contexto de
revelação uma vez que a liberdade, pela sua natureza, é abrangente e não
redutível a uma só problemática.
Quanto
a definições, e tomando o exemplo da Bíblia Cristã, é posto na boca de Jesus um
silêncio sapiente. O autor de João em 18:38, sensatamente, não pôs em Jesus uma
definição de verdade. Mas imaginemos que o tivesse feito: seguramente teríamos não
só a inauguração da dicibilidade do indizível, o referencial de uma guerra de
palavras entre fés, mas também, e principalmente, o encerramento aprisionador
do conceito de verdade; Jesus não veio trazer significados aos nossos
conceitos, cabe-nos a nós essa tarefa, não veio delimitar nem definir. A
revelação de Deus é progresso, não uma paragem nos paradoxos da nossa linguagem,
e o silêncio de Jesus é disso revelador.
Por
outro lado, o mundo helénico irrompia com toda a sua força na vivência judaica.
A influência da filosofia com as suas grandes questões levou a novas formas de
pensar a fé, isto é, a fé repensa-se, não está imune à interrogação, às
influências exteriores de outros saberes; a fé contagia e contagia-se. Se à Filosofia
questões como o que é o Bem, o Belo, a Virtude, a Verdade, etc., bem como
disciplinas como a Retórica e a Matemática eram fundamentais para o
desenvolvimento do conhecimento e do saber humanos, para a Teologia passsaram a
ser uma mais-valia. Daí resultou que as temáticas filosóficas passassem a ser
também temáticas teológicas. O Bem já não é só uma questão filosófica, mas
também teológica.
Foi
nesta encruzilhada que o autor de João colocou o silêncio de Jesus, a saber, um
problema teológico-filosófico ou filosófico-teológico. O caminho está aberto
para a sensibilidade do Leitor: Para si a Revelação é o pontapé de saída para
as grandes questões teológicas, a Lei e ensinamento dos profetas? As grandes
interrogações filosóficas são fundamentais para o engrandecimento teológico? De
qualquer forma, a verdade sobre a existência de Deus, baseada numa revelação,
não é incompatível com o espanto filosófico. Ainda hoje, e por muitos e bons
anos, os crentes andarão espantados às voltas com a existência de um povo
escolhido que, ainda que não o aceite, é forçoso que reflita sobre ele.
Os
filósofos, por seu lado, politeístas nas suas origens, foram portadores de uma
pluralidade rica (cujo saber o religioso não abandonou, como por exemplo,
Platão e Aristóteles são de capital importância para o pensamento cristão), e
daí ligados a grupos secretos dentro dessas vivências (lembremos apenas os
Pitagóricos), sentindo uma profunda necessidade de reflectir sobre a grande questão
de vivermos “confortáveis” sobre o desconhecido, o indefinível, o não sabermos
onde estamos e, mais incisivamente, quando nos interrogamos “O que é isto?”, não termos respostas
fiáveis, concludentes, satisfatórias.
Como
equilibrar Verdade/Revelação neste tão grande desconhecido? A História vem dar
um contributo inigualável: a factualidade rumo ao silêncio mercê da
insatisfação linguística, tão simples como dizer “Bom dia” em dia de relâmpagos
e trovões. A História torna imperiosa a verdade de que se algo não se
manifestar, não nos retirar do pequeno mundo em que nos encontramos, das
sombras que temos por realidades/verdades, a nossa natureza jamais seria capaz
de vôos mais altos. Assim, temos a Teologia e a Filosofia como precursoras de
silêncios; Atenas e Jerusalém como referenciais identitários de grandes
questões e de grandes fés. A interrogação de ambas caracteriza é o referencial
da nossa liberdade.
Nenhuma
religião possui a Verdade. Todas são ruelas estreitas e acidentadas, mas que
conduzem a algum lado.
Margarida
Azevedo
Referências:
*ARMSTRONG, KAREN, Uma História de Deus, Temas e Debates,
Lisboa, 1999, 2, Um Deus, p.98. Bíblia trad. de Frederico Lourenço,
vols. I;II; III, (Evang de João, Carta aos Gálatas e Livro de Jeremias,
respectivamente
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