domingo, abril 17, 2022

PÁSCOA 2022

“ (…), de novo gritando com voz grande, deixou o espírito.” Mt 27: 50 “Mas Jesus, soltando um grito enorme, expirou.” Mc 15: 37 “Dando um grito forte, Jesus disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” Tendo dito isto, expirou.” Lc 23: 46 “(…) e, inclinando a cabeça, entregou o espírito.” Jo19:30 “Da morte brota a vida.” Dimas de Almeida Como falar da Páscoa hoje? Que mensagem, que mudança, que inovação, mas principalmente que universo de esperança nos oferece? Vive-se uma época de imposição rígida, descontextualizada no tempo e no espaço, hipoteticamente disfarçada por meio de ideais que não estão definidos e que se mostram cada vez mais escusos. O século XXI não deixou partir os fantasmas. Percebeu-se que alimentá-los é enfraquecer os mais fracos e fortalecer os mais fortes. A designação de traumas de infância veio para ficar, é o grande cliché. Os espertos servem-se disso cruamente, aventando saídas airosas que vão desde a expulsão definitiva dos demónios às curas das mais variadas doenças, passando pelo apagão da memória traumática. São as tais máximas libertadoras individuais e colectivas, que tanto podem vir de políticos hábeis, como de líderes religiosos perspicazes. E assim se destroem países em nome desses fantasmas, se enfraquecem as forças de bem, reduzem-se a pó memórias, impõe-se pela força bélica uma flacidez à palavra; num estalar de dedos cai-se no trágico. O pão sem fermento, símbolo da escravatura em terra estrangeira, as ervas amargas, o vinho, tornaram-se outros porque “tornei-me novamente escravo, só que desta vez na minha própria casa!” De repente, a casa caiu, afundou-se no vazio e no sangue, “caí morto no chão da minha rua, ou quando ia buscar pão, algumas ervas, um pouco de vinho” simbolizados em algum leite, água, sopa, fraldas das mãos dos anjos da paz. De repente, até parece que nem tampouco tive casa alguma vez. Que Páscoa!” Vejamos, os evangelhos foram escritos numa época em que Jesus era insignificante, quer para o mundo quer para a cultura. No entanto, o que é que aconteceu na vida daqueles homens e daquelas mulheres para proclamarem o amor no meio do ódio, a vida no meio da morte? Que mudança de perspectiva foi essa e como aconteceu? Foi semelhante à nossa, hoje? O Império Romano também foi um invasor, uma potência com um vastíssimo território conquistado. Há semelhanças com o ano de 2022? Tal como para o povo hebreu, também hoje só queremos a libertação da nossa terra, da nossa casa, mas livres para traçar o nosso caminho. Porque a nossa casa encontra-se num contexto universal, está naturalmente cercada de outras casas, fazendo um mundo, em conjunto. De facto, tudo isto é notável: nos momentos de grande catástrofe individual e colectiva, quando estão em causa soberanias, livre pensamento, livre manifestação de fé, a imagem do Egipto aprisionador, a renitência do faraó em libertar o povo hebreu e a respectiva luta de um povo pela sua autonomia, o concurso de actos mágicos e insólitos, a majestade dos elementos da Natureza implicados nos acontecimentos, a esperança, enfim, vêm-nos à memória como a Grande Memória, paradigma de todas as memórias, de todos os episódios, tão complexos quão deploráveis, de soberanos que se julgam acima de todas as coisas. A fé de Israel dá-nos a noção da importância que tem a liberdade como força identitária de um povo, de que só por seu intermédio a fé se torna força de coesão, unificadora de um mesmo ideal. Jesus proclamou um poder que até hoje ainda não entendemos. Sabemos que é um poder que põe em causa poderes, que os minimiza e esmaga. É natural, se considerarmos que o poder não advém nem da justiça, nem da temperança, nem de qualquer outra virtude. O poder é filho da ilusão, da discórdia, do separatismo, do metal com que se compram todas as coisas, até gente. Não dizemos “Pessoa” porque tal conceito é filho do pensamento cristão e significa Ser, Ente portador de uma individualidade inviolável, criado à imagem e semelhança de Deus. Contrariamente, somos uma humanidade cada vez mais vulnerável, refém do poder que não é poder, sem casa, escrava do perecível e transitório. Porém, Jesus confronta-nos com o facto incontornável da Cruz, que só faz sentido porque há a Ressurreição. Não há maior esperança nem maior alegria que a de saber que o Reino de Deus é, apesar de todas as vicissitudes, o refúgio para os arrependidos, para todos aqueles que se julgavam perdidos e condenados para sempre. Só a qualidade do bem possui a mercê de eternidade, lembremos. O mal termina quando o coração humano sair das cavernas da ignorância destruidora, e viver na Ressurreição e não na Cruz. Isto significa que há um horizonte de sentido que surge com a morte, a não-morte. Uma loucura inspiradora, não só dos evangelhos, mas da poesia. Escrever, poetar sobre um crucificado, esmaga os ideais da heroicidade e inaugura a eternidade da pessoa na fusão com Deus. O ser humano tem que se apaixonar pala Vida. Tomemos o exemplo de Jesus. Esteja onde estiver, como estiver, os profetas não são prisioneiros das nossas vãs e desastrosas doutrinas. Eles são forças ao serviço de Deus. Este judeu muito especial veio fazer-nos despertar para a noção da fraqueza que é força, a da força que é fraqueza; que o limitado e o ilimitado se confundem, assim como o dependente e o independente. A morte não é uma fatalidade, é a grande passagem. Nesta Páscoa, sinta-se um ressuscitado, um desfatalizado; passe para um qualquer lado das coisas tão simples e tão belas que este planeta tem para nós. Presenteie-se com a liberdade e ore como só oram aqueles que pretendem ser hoje melhores do que ontem e amanhã melhores do que hoje. Não se deixe enganar pelas coisas vãs e, com Jesus, coma a Páscoa da Terra Prometida no seu lar em nome do fim da escravatura e na certeza da Ressurreição. Que Jesus esteja consigo, hoje e sempre. Ámen. Margarida Azevedo Citações do evangelho: Bíblia, vol.I,, Novo Testamento, os Quatro Evangelhos, Quetzal, Lisboa, 2016, trad. Frederico Lourenço.

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