A PROCURA DO SENTIDO DE NÓS MESMOS II
A
grande questão é: Mas afinal de contas o que é o passado? A que nos referimos
quando dizemos a palavra passado? À
partida, impõe-se como a ilusão própria de um investimento psicológico que lhe
confere uma sabedoria quase infinita. Temos o passado como uma autoridade e daí
uma fonte inesgotável de saber, raiz ôntica da nossa identidade. É uma espécie
de fonte de onde jorra água, mas cuja raiz nos está vedada, sob pena de
destruirmos a própria fonte e ficarmos com sede. A atracção do passado é nunca
chegarmos lá.
Perdidos
no desencontro de nós mesmos, temos a ilusão de que o passado contém as
respostas satisfatórias para os nossos desencontros do presente. Ora viver em
prol do passado é rejeitar que o nosso processo evolutivo é bem mais complexo
do que supomos.
Porém,
há em nós um móbil poderoso, a curiosidade. Aceitar que o passado está vedado é
o mesmo que proibir de comer o fruto “daquela” árvore. Como ou não como? Há
alguém que diz que sim porque fico a saber o mesmo que aquele que me proibiu.
Mas então, como para me conhecer, ou como para me igualar a algo/alguém? O que
é que move o meu apetite? De que é que tenho fome? Lá diz o povo diz-me o que comes, dir-te-ei quem és.
Este alimento metafísico vai definir, escatologicamente, porque é que como
aquilo e não outra coisa qualquer.
A
queda adveio precisamente da ilusão de querer ser igual a alguém. Coloca-nos a
barreira ontológica de que Deus me está tão perto e tão longe. Que Deus não é
igualável, imitável, não tem duplos. A infinidade do seu poder está
simbolicamente na simplicidade daquela árvore: “Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não
comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.”* (Gn 1: 3) Há um
fruto que não é para nós. Pergunta-se: É da natureza humana aceitar tal
imposição/impossibilidade? Está montada a nossa luta. O humano tem desejado ser
um deus, a história assim o demonstra: mata tudo o que se oponha aos seus intentos,
quer mandar, pôr e dispor; quer ser fonte, e fonte nunca poderá ser, porque a
fonte é Deus. Não há maior luta para o humano que enfrentar Deus. Tudo lhe
remete, o bom e o mau.
Lembremos
que o diabo era o anjo mais perfeito do Reino (assim se aprendeu na catequese)
e que, narcisicamente, querendo ser como Deus, caiu na mais abjecta condição:
deambular pela terra querendo arrastar consigo as almas mais fracas e também as
supostamente mais fortes. Os falsos profetas são os seus agentes directos assim
como os falsos Cristos, o que deixa supor que a imitação será muito perfeita.
Isto significa que o diabólico, ou o negativo, é conhecedor de todas as forças,
boas e más, e que as sabe manipular muito bem - isto é confuso -, que há
limites, até para o próprio desejo de bem. Daí a advertência: Então se alguém vos disser ‘eis aqui o
Cristo’ ou ‘aqui <está ele> ‘ não acrediteis. Pois serão levantados
falsos Cristos e falsos profetas e darão sinais grandes e prodígios com o
intuito de desencaminhar, se possível, também os escolhidos. (Mt 24:
23-24).** E na completa absolutização do poder de Deus, surge a advertência
maior: sobre aquele dia e aquela hora
ninguém sabe <nada>. Nem os anjos dos céus, nem o Filho; só o Pai.”
(v. 36)**
Retomando
a reflexão de Génesis 1:1-3, Israel vai pegar no seus textos e desmitologizá-los,
isto é, no lugar de uma criação feita por vários deuses vai colocar um único
Deus. Esta desmitologização, no entanto, não significa deitar o mito para o
lixo, mas reinterpretá-lo: o interdito comanda a vida. Esta antropologia é a
alavanca do processo de hominização, a saber, tocar no interdito e carregar com
as consequências é o fundamento da história humana. São duras? São
existencialmente duras, e a maior é a do mistério da própria morte. É esta a
grande incógnita humana, o móbil de todos os móbeis, com a respectiva questão
consensual: Para onde vou? Há ou não há algo após a morte?
A
advertência contra os falsos profetas, de que Jesus bem mais tarde vem dar
esclarecimentos, vem precisamente nessa sequência. Desmitologização da fé e da
crença no homem como um deus. Dito de outro modo, não acreditem nos homens, mas
em Deus. Vocês são o próprio mito para vós próprios; os monstros que criaram
são reflexos objectivos da vossa ignorância. O mito é apenas uma história que
conta o que não conseguimos explicar de outro modo, é o oposto de endeusamento
do próprio homem.
Para
a psicologia, vir à consciência o que nesta vida recalcámos e porquê é tão importante
para superar episódios traumáticos, a começar pelos da infância, como revelar
vidas esquecidas e bem arquivadas, com tudo o que foi vivido ao longo de
milénios para certos crentes. Isto é, por muito longe desses tempos e espaços
imemoriais que estejamos, ansiamos por uma revelação de nós mesmos para o que
supomos ser o nosso equilíbrio. Só que o nosso aparelho psicológico pouco ou
nada evoluiu, pois não suporta a verdade de si mesmo quando ela toca
determinados pontos, como um ténue farrapinho do que chamamos a nossa verdade
vivencial.
Parece
que a sanidade mental depende da eficácia do esquecimento, o que parece ser uma
contradição, sendo o louco aquele que tem forças para carregar com o historial
da sua vivência não precisando de se camuflar por detrás da roupagem da
personalidade. Talvez tenha optado por isso em tempos idos, os tais que fazem
parte do esquecimento.
O
que há a fazer, então? Resta-nos a grande graça do esquecimento, porém, uma
graça problemática. Ela não anula a nossa curiosidade infinita e insaciável,
ainda que saibamos pela Espiritualidade que o conhecimento do pretérito
destruir-nos-ia fulminando-nos. Porém, há quem prefira queimar-se a viver na
ignorância de si mesmo. O esquecimento do passado é responsável pela emergência
de uma curiosidade transcendente e metafísica. A Espiritualidade confronta-nos
com a impossibilidade, por agora, acalma-nos dizendo que um dia tudo será
revelado. Será. Provavelmente quando isso acontecer já não fará muito sentido. Resta-nos,
todavia, essa esperança, quando atingirmos uma maturidade compatível que,
segundo a Espiritualidade, só se consegue além-túmulo. A Espiritualidade
convida-nos à alegria do presente, à luta por fazer dele uma celebração
constante da vida, inesgotável em acontecimentos renovadores.
No
fundo, esta pesquisa existencial e antropológica lembra-nos que as
negatividades são muito importantes para nós. Ao querermos saber quem fomos, ou
o que somos nesta corrente infindável e misteriosa a que chamamos vida, sabemos
que tocamos na barbárie no seu melhor. O problema é que enfrentá-la como
protagonistas activos da mesma envolver-nos-ia numa vergonha da nossa
espiritualidade de tal forma que nos destruiria. Por exemplo, o nosso ego tão
exaltado, a nossa falta de humildade tão forte, a fragilidade da nossa
sapiência que julgamos enorme e assertiva, ou o ridículo da nossa famosa
personalidade cairiam por terra. O que seria de nós? O passado é a nudez, um
cru, um tudo visto; ou nada disso, a saber, uma passagem, um momento de
eternidade, uma nesga de princípio, um corpo deformado, uma arma mortífera, um
gesto feroz.
Os
profetas foram quem melhor assumiu singular ousadia que, nos seus discursos tão
estranhamente assertivos, foram tidos como possuídos e perigosos, e daí
perseguidos e assassinados. Ninguém percebia que o seu papel era precisamente o
de nos libertarem dos atavismos das nossas tendências nocivas, das tradições
paradas no tempo, da dureza dos nossos corações. Pregar o amor e a sensatez,
educar e formar é demais para os poderosos da terra.
Viver
é ouvir essas vozes enviadas, é sentir-se longe e simultaneamente tão perto do
divino. Revelação da fé como uma curiosidade, o mecanismo, a chave-mestra que
abre um portão gigante à significação de nós mesmos?! Não será a fé uma forma
de ir buscar a uma instância qualquer o fundamento do esquecimento? Afinal,
acredita-se em quê? No Deus refúgio, no Deus Consolador, no Deus Santo dos
Santos, no Deus Algo inatingível, no Deus Ser completamente fora do pensável,
tão superior, tão supremo, tão puro que nos perdoa infinitamente, a grande
consolação para a humanidade?
É
nesta perdição existencial, nesta seminal e pura ignorância, neste
incognoscível, que chegámos ao séc. XXI tão conhecedores de nós mesmos como os
homens das cavernas. O processo de hominização superou o de humanização: o
corpo mudou, mas a alma é exactamente a mesma, violenta e devoradora. É pena.
Há um défice de humano. Pergunta-se: Mas não há quem ajude?
Não
tem faltado. Gente anónima. Por exemplo, todo o percurso de Jesus é a mostra do
que nós somos, e por isso o rejeitámos. Não é fácil falar de amor num mundo
como o nosso. Pelo amor a luta pelo passado perde sentido, a verdade revela-se,
a felicidade impõe-se como uma flor singela num jardim de relva muito verde. O
reino de Deus é o mesmo para toda a gente.
Precisa-se
urgentemente de um reencontro, uma releitura, um incentivo que fortifique a fé,
uma outra e nova visita aos textos. Se os cristãos não mudarem, se continuarem
a ignorar as Escrituras, e os Evangelhos muito concretamente, então continuarão
perdidos no fosso. O Cristo de Jesus é futuro, é Vida, é Luz. Contra ele o
passado nada pode, é desnecessário.
Quem
sabe, se um desencarne glorioso e feliz de uma consciência leve não conduzirá à
rejeição de si mesmo, isto é, do arquivo da nossa mesma arquê?
Por
isso, os evangelhos nos trazem um Jesus que, ao descer ao humano, converte a
nossa natureza em nova possibilidade. Somos possíveis santos, somos possíveis
perfeitos, numa palavra, temos a possibilidade de ser outros, tudo à maneira
humana porque é possível sermos humanos e bons. Com Jesus, somos investidos de
uma foça que nos transforma mediante a fé, que esclarece esta nossa natureza de
imitadores natos. Se imitarmos um animal, somos como ele, se nos imitarmos uns
aos outros, seremos reflexo uns dos outros, mas se imitarmos o Cristo Redentor
seremos felizes. Procuremo-Lo e outro sentido existencial daremos à nossa vida.
Os
cristãos precisam de acreditar nesse Cristo libertador. Precisam de se perder
na sublimidade de uma fé inabalável e consoladora; de se abrir ao outro e à
natureza, à vida como um amor sem limites, porque ser cristão é não conhecer
barreiras.
É
imperioso que se convertam, homens e mulheres, a este pregador do Reino de
Deus, que não impôs condições, que não veio perder tempo em moralidades, que
não escolheu ninguém, mas que veio dar as dicas para que cada um consiga fazer
da vida um caminho para Deus.
Pergunta-se:
Então, mas o que fazer ao desconsolo da ignorância quanto ao passado? Nada,
absolutamente nada. Nunca o atingiremos neste pião que é a vida. O/a cristão/ã
é um/a crente totalmente virado/a para o futuro porque sabe viver com o
desconhecido. Pensar no passado é matéria para o psiquiatra. O verdadeiro
cristão procura o equilíbrio na força do amor. É que os actos de amor abrem
novos sentidos… Quer saber o seu passado? Leia um compêndio de história.
Se
o céu está limpo sabemos que não vai chover. O amor é um grande sinal.
(cont.)
Margarida Azevedo
*trad.
J. F. de Almeida.
**
trad. F Lourenço. Ler na íntegra todo o cap. Mt 24.
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