domingo, novembro 27, 2022

A DIABOLIZAÇÃO DISFARÇADA DAS COMUNICAÇÕES ESPIRITUAIS

 


 

“Tu que amas a Deus, mantém viva e atenta a tua inteligência! Bem precisas disso, pois ao viveres a profundidade da oração, ao te sentires, como orante, profundamente imerso nesse mundo espiritual, pode acontecer-te ver uma luz, ou um fogo (fora de ti ou dentro de ti) ou até mesmo a assim chamada figura de Cristo, ou a de um anjo, ou a de um santo – pois bem, quando isso te acontecer, rejeita o que vês.”(!)

 

 

          Falar de falsos profetas já não resulta, remeter para o Evangelho ou para os profetas, a mesma coisa. Fechados no seu casulo, os grupos espirituais, que deviam ser uma lufada de ar fresco no actual contexto socio-político, pelo contrário, dão largas ao egoísmo das suas práticas, desculpando-se com o karma ou com o merecimento sequencial a vidas passadas.

          Este círculo fechado, com resposta para tudo e mais alguma coisa, considera-se a chave-mestra que abre todas as portas deste labirinto que é a vida humana. Ao invés de apelar à modificação interior e esquecer de vez o pretérito, agradável e necessariamente esquecido por misericórdia divina, estão a inventar-se, mediante um fanatismo exacerbado, seres de carne e osso tão superiores e tão conhecedores do seu passado, com tanta certeza e afinco que nem têm a noção do ridículo.

          O que é que vem acrescentar à humanidade saber que um homem que viveu na terra há bem pouco tempo foi Platão, Descartes, Francisco de Assis, e de mais umas quantas celebridades deste belo planeta? E ainda que fosse verdade, tornar-se-ia imperioso silenciar, aquele silêncio que só a humildade conhece.

É que não basta estar em oração. Muitas vezes, o recolhimento e a introspecção (se é que isso existe ou é possível), enganam-nos. Um grupo em que todos dizem o mesmo não significa um grupo unido pelo mesmo ideal. O mesmo ideal é a confluência de uma multiplicidade de ideias, o contrário de um bando de papagaios.

É bom lembrar que o espelho engana-nos, é assim na dança e é em tudo na vida. Nós só vemos o que queremos ver, geralmente o que nos agrada. Os grupos de trabalho espiritual estão cheios de armadilhas, algumas até relativamente disfarçadas, bem formuladas, cheias de lógica, léxico do mais fino gosto, como: paz, muito amor (isso não pode faltar), muito Jesus, muito Deus, enfim. Porém, há sempre um que, nesses grupos, habitualmente fala, fala e fala, psicótico e narcísico quão enraivecido, ou muito santinho de voz turva de emoção, que gosta muito de se ouvir e de se impor. É o iluminado, director espiritual lá do sítio, de tal forma que, se alguém o contrariar, aqui d´el-rei, cospe veneno ou deita com as chaves do centro espírita ao chão, como já aconteceu.

Ora podemos estar sós em grande momento de meditação e oração; podemos estar acompanhados, unidos em um mesmo ideal e a partilhar idêntica perspectiva, porém, isso não garante sucesso, libertação das negatividades, espiritualidade assertiva. Aquilo que não se vê, o pensamento, a intenção, o objectivo, enfim, são decisivos para o desfecho dos trabalhos.

Torna-se imperioso perceber que é na diferença que encontramos a verdadeira reflecção. O outro é sempre a maior riqueza para uma vivência rumo a uma sociedade mais espiritualizada, e a um consequente alívio do sofrimento.

          É bom ter presente que não são as palavras da oração que nos trazem a boa companhia espiritual que tanto se deseja, mas o coração que as pronuncia. Para Deus não há deuses, nem Espíritos, nem homens nem mulheres à parte, superiores e alvo de especial atenção. A dificuldade em viver uma espiritualidade igualitária tem sido a maior barreira ao triunfo de uma espiritualidade libertadora. O ser humano persiste nesta dualidade escravizadora de bons versus maus, classificação traçada à luz dos seus parcos recursos tanto de fé como de razão.

          Tomemos o exemplo de Jesus: as suas referências, os seus paradigmas, os seus modelos são os rejeitados da sociedade; as suas multidões eram plurais. Isto significa o contrário do secretismo humano, da implementação do delírio, do ilusório, do fantasioso. As palavras de Jesus, os Evangelhos e os profetas são agentes do futuro, não do passado. O passado já lá vai. Ele não é um justificativo, uma desculpa, uma origem para tudo o que fazemos e dizemos. O passado é uma interrogação sem resposta porque esta anda perdida nas teias do esquecimento.

          Os crentes falham não apenas porque estão dependentes dos sacerdotes, pregadores, mestres, místicos, ancestralidade, etc., porque acreditam que eles são pessoas especiais, dotadas de capacidades sobre-humanas a quem tudo é possível, porque estão numa relação directa com Deus. Só que em relação directa com Deus estamos todos, basta queremos.

          Quanto ao esquecimento, muitos não querem aceitá-lo. Parece que há uns mais esquecidos do que outros. O pior é que há quem acredite. Estamos na antítese da Doutrina Espírita. É deplorável.

 

          Margarida Azevedo

         

         

 

Referências:

(1)    Pequena FilocaliA; Paulinas, Prior Velho, 2017, S. Gregório, O Sinaíta, § 10, pp.717-718, trad. Dimas de Almeida.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home