sábado, abril 01, 2023

A PROCURA DO SENTIDO DE NÓS MESMOS II



A grande questão é: Mas afinal de contas o que é o passado? A que nos referimos quando dizemos a palavra passado? À partida, impõe-se como a ilusão própria de um investimento psicológico que lhe confere uma sabedoria quase infinita. Temos o passado como uma autoridade e daí uma fonte inesgotável de saber, raiz ôntica da nossa identidade. É uma espécie de fonte de onde jorra água, mas cuja raiz nos está vedada, sob pena de destruirmos a própria fonte e ficarmos com sede. A atracção do passado é nunca chegarmos lá.

Perdidos no desencontro de nós mesmos, temos a ilusão de que o passado contém as respostas satisfatórias para os nossos desencontros do presente. Ora viver em prol do passado é rejeitar que o nosso processo evolutivo é bem mais complexo do que supomos.

Porém, há em nós um móbil poderoso, a curiosidade. Aceitar que o passado está vedado é o mesmo que proibir de comer o fruto “daquela” árvore. Como ou não como? Há alguém que diz que sim porque fico a saber o mesmo que aquele que me proibiu. Mas então, como para me conhecer, ou como para me igualar a algo/alguém? O que é que move o meu apetite? De que é que tenho fome? Lá diz o povo diz-me o que comes, dir-te-ei quem és. Este alimento metafísico vai definir, escatologicamente, porque é que como aquilo e não outra coisa qualquer.

A queda adveio precisamente da ilusão de querer ser igual a alguém. Coloca-nos a barreira ontológica de que Deus me está tão perto e tão longe. Que Deus não é igualável, imitável, não tem duplos. A infinidade do seu poder está simbolicamente na simplicidade daquela árvore: “Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.”* (Gn 1: 3) Há um fruto que não é para nós. Pergunta-se: É da natureza humana aceitar tal imposição/impossibilidade? Está montada a nossa luta. O humano tem desejado ser um deus, a história assim o demonstra: mata tudo o que se oponha aos seus intentos, quer mandar, pôr e dispor; quer ser fonte, e fonte nunca poderá ser, porque a fonte é Deus. Não há maior luta para o humano que enfrentar Deus. Tudo lhe remete, o bom e o mau.

Lembremos que o diabo era o anjo mais perfeito do Reino (assim se aprendeu na catequese) e que, narcisicamente, querendo ser como Deus, caiu na mais abjecta condição: deambular pela terra querendo arrastar consigo as almas mais fracas e também as supostamente mais fortes. Os falsos profetas são os seus agentes directos assim como os falsos Cristos, o que deixa supor que a imitação será muito perfeita. Isto significa que o diabólico, ou o negativo, é conhecedor de todas as forças, boas e más, e que as sabe manipular muito bem - isto é confuso -, que há limites, até para o próprio desejo de bem. Daí a advertência: Então se alguém vos disser ‘eis aqui o Cristo’ ou ‘aqui <está ele> ‘ não acrediteis. Pois serão levantados falsos Cristos e falsos profetas e darão sinais grandes e prodígios com o intuito de desencaminhar, se possível, também os escolhidos. (Mt 24: 23-24).** E na completa absolutização do poder de Deus, surge a advertência maior: sobre aquele dia e aquela hora ninguém sabe <nada>. Nem os anjos dos céus, nem o Filho; só o Pai.” (v. 36)**

Retomando a reflexão de Génesis 1:1-3, Israel vai pegar no seus textos e desmitologizá-los, isto é, no lugar de uma criação feita por vários deuses vai colocar um único Deus. Esta desmitologização, no entanto, não significa deitar o mito para o lixo, mas reinterpretá-lo: o interdito comanda a vida. Esta antropologia é a alavanca do processo de hominização, a saber, tocar no interdito e carregar com as consequências é o fundamento da história humana. São duras? São existencialmente duras, e a maior é a do mistério da própria morte. É esta a grande incógnita humana, o móbil de todos os móbeis, com a respectiva questão consensual: Para onde vou? Há ou não há algo após a morte?

A advertência contra os falsos profetas, de que Jesus bem mais tarde vem dar esclarecimentos, vem precisamente nessa sequência. Desmitologização da fé e da crença no homem como um deus. Dito de outro modo, não acreditem nos homens, mas em Deus. Vocês são o próprio mito para vós próprios; os monstros que criaram são reflexos objectivos da vossa ignorância. O mito é apenas uma história que conta o que não conseguimos explicar de outro modo, é o oposto de endeusamento do próprio homem. 

Para a psicologia, vir à consciência o que nesta vida recalcámos e porquê é tão importante para superar episódios traumáticos, a começar pelos da infância, como revelar vidas esquecidas e bem arquivadas, com tudo o que foi vivido ao longo de milénios para certos crentes. Isto é, por muito longe desses tempos e espaços imemoriais que estejamos, ansiamos por uma revelação de nós mesmos para o que supomos ser o nosso equilíbrio. Só que o nosso aparelho psicológico pouco ou nada evoluiu, pois não suporta a verdade de si mesmo quando ela toca determinados pontos, como um ténue farrapinho do que chamamos a nossa verdade vivencial.

Parece que a sanidade mental depende da eficácia do esquecimento, o que parece ser uma contradição, sendo o louco aquele que tem forças para carregar com o historial da sua vivência não precisando de se camuflar por detrás da roupagem da personalidade. Talvez tenha optado por isso em tempos idos, os tais que fazem parte do esquecimento.

O que há a fazer, então? Resta-nos a grande graça do esquecimento, porém, uma graça problemática. Ela não anula a nossa curiosidade infinita e insaciável, ainda que saibamos pela Espiritualidade que o conhecimento do pretérito destruir-nos-ia fulminando-nos. Porém, há quem prefira queimar-se a viver na ignorância de si mesmo. O esquecimento do passado é responsável pela emergência de uma curiosidade transcendente e metafísica. A Espiritualidade confronta-nos com a impossibilidade, por agora, acalma-nos dizendo que um dia tudo será revelado. Será. Provavelmente quando isso acontecer já não fará muito sentido. Resta-nos, todavia, essa esperança, quando atingirmos uma maturidade compatível que, segundo a Espiritualidade, só se consegue além-túmulo. A Espiritualidade convida-nos à alegria do presente, à luta por fazer dele uma celebração constante da vida, inesgotável em acontecimentos renovadores.

No fundo, esta pesquisa existencial e antropológica lembra-nos que as negatividades são muito importantes para nós. Ao querermos saber quem fomos, ou o que somos nesta corrente infindável e misteriosa a que chamamos vida, sabemos que tocamos na barbárie no seu melhor. O problema é que enfrentá-la como protagonistas activos da mesma envolver-nos-ia numa vergonha da nossa espiritualidade de tal forma que nos destruiria. Por exemplo, o nosso ego tão exaltado, a nossa falta de humildade tão forte, a fragilidade da nossa sapiência que julgamos enorme e assertiva, ou o ridículo da nossa famosa personalidade cairiam por terra. O que seria de nós? O passado é a nudez, um cru, um tudo visto; ou nada disso, a saber, uma passagem, um momento de eternidade, uma nesga de princípio, um corpo deformado, uma arma mortífera, um gesto feroz.

Os profetas foram quem melhor assumiu singular ousadia que, nos seus discursos tão estranhamente assertivos, foram tidos como possuídos e perigosos, e daí perseguidos e assassinados. Ninguém percebia que o seu papel era precisamente o de nos libertarem dos atavismos das nossas tendências nocivas, das tradições paradas no tempo, da dureza dos nossos corações. Pregar o amor e a sensatez, educar e formar é demais para os poderosos da terra.

Viver é ouvir essas vozes enviadas, é sentir-se longe e simultaneamente tão perto do divino. Revelação da fé como uma curiosidade, o mecanismo, a chave-mestra que abre um portão gigante à significação de nós mesmos?! Não será a fé uma forma de ir buscar a uma instância qualquer o fundamento do esquecimento? Afinal, acredita-se em quê? No Deus refúgio, no Deus Consolador, no Deus Santo dos Santos, no Deus Algo inatingível, no Deus Ser completamente fora do pensável, tão superior, tão supremo, tão puro que nos perdoa infinitamente, a grande consolação para a humanidade?

É nesta perdição existencial, nesta seminal e pura ignorância, neste incognoscível, que chegámos ao séc. XXI tão conhecedores de nós mesmos como os homens das cavernas. O processo de hominização superou o de humanização: o corpo mudou, mas a alma é exactamente a mesma, violenta e devoradora. É pena. Há um défice de humano. Pergunta-se: Mas não há quem ajude?

Não tem faltado. Gente anónima. Por exemplo, todo o percurso de Jesus é a mostra do que nós somos, e por isso o rejeitámos. Não é fácil falar de amor num mundo como o nosso. Pelo amor a luta pelo passado perde sentido, a verdade revela-se, a felicidade impõe-se como uma flor singela num jardim de relva muito verde. O reino de Deus é o mesmo para toda a gente.

Precisa-se urgentemente de um reencontro, uma releitura, um incentivo que fortifique a fé, uma outra e nova visita aos textos. Se os cristãos não mudarem, se continuarem a ignorar as Escrituras, e os Evangelhos muito concretamente, então continuarão perdidos no fosso. O Cristo de Jesus é futuro, é Vida, é Luz. Contra ele o passado nada pode, é desnecessário.

Quem sabe, se um desencarne glorioso e feliz de uma consciência leve não conduzirá à rejeição de si mesmo, isto é, do arquivo da nossa mesma arquê?

Por isso, os evangelhos nos trazem um Jesus que, ao descer ao humano, converte a nossa natureza em nova possibilidade. Somos possíveis santos, somos possíveis perfeitos, numa palavra, temos a possibilidade de ser outros, tudo à maneira humana porque é possível sermos humanos e bons. Com Jesus, somos investidos de uma foça que nos transforma mediante a fé, que esclarece esta nossa natureza de imitadores natos. Se imitarmos um animal, somos como ele, se nos imitarmos uns aos outros, seremos reflexo uns dos outros, mas se imitarmos o Cristo Redentor seremos felizes. Procuremo-Lo e outro sentido existencial daremos à nossa vida.

Os cristãos precisam de acreditar nesse Cristo libertador. Precisam de se perder na sublimidade de uma fé inabalável e consoladora; de se abrir ao outro e à natureza, à vida como um amor sem limites, porque ser cristão é não conhecer barreiras.

É imperioso que se convertam, homens e mulheres, a este pregador do Reino de Deus, que não impôs condições, que não veio perder tempo em moralidades, que não escolheu ninguém, mas que veio dar as dicas para que cada um consiga fazer da vida um caminho para Deus.

Pergunta-se: Então, mas o que fazer ao desconsolo da ignorância quanto ao passado? Nada, absolutamente nada. Nunca o atingiremos neste pião que é a vida. O/a cristão/ã é um/a crente totalmente virado/a para o futuro porque sabe viver com o desconhecido. Pensar no passado é matéria para o psiquiatra. O verdadeiro cristão procura o equilíbrio na força do amor. É que os actos de amor abrem novos sentidos… Quer saber o seu passado? Leia um compêndio de história.

Se o céu está limpo sabemos que não vai chover. O amor é um grande sinal.

(cont.)

 

Margarida Azevedo

 

*trad. J. F. de Almeida.

** trad. F Lourenço. Ler na íntegra todo o cap. Mt 24.

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