À PROCURA DO SENTIDO DE NÓS MESMOS III
Parábola do pai
misericordioso
Disse ainda: “Um homem tinha dois
filhos. O mais novo deles disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte dos bens que me
toca’. O pai repartiu os bens entre eles. Não muitos dias depois, o filho mais
novo, juntando tudo, partiu para uma região distante e aí esbanjou os seus
bens, vivendo dissolutamente. Depois de ele gastar tudo, surgiu uma grande fome
naquela região, e ele começou a passar privações.
Uniu-se, então, a um dos cidadãos
daquela região, que o mandou para os seus campos guardar porcos. Desejava
saciar-se com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
Então, caindo em si, disse: ‘Quantos
assalariados de meu pai têm pão em abundância e eu aqui morro de fome! Vou levantar-me,
ter com meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra o céu e para contigo; não mais
sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus assalariados’. E
levantando-se foi ter com o seu pai.
Ainda ele estava longe, quando o seu
pai o viu e se compadeceu profundamente; correndo, então, lançou-se-lhe ao
pescoço e o beijou repetidamente. Disse-lhe o filho: ‘ Pai, pequei contra o céu
e para contigo; não mais sou digno de ser chamado teu filho’.
O pai, porém, disse aos seus
servos: ‘Trazei depressa a melhor veste e vesti-lha; dai-lhe um anel para a sua
mão e sandálias para os pés; trazei o vitelo gordo, matai-o e festejemos
comendo, porque o meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi
encontrado. E começaram a festejar.
Ora,
o seu filho mais velho estava no campo. Quando voltou e se aproximou da casa,
ouviu músicas e danças, chamou um dos servos e procurou saber o que era aquilo.
Ele disse-lhe: ‘ O teu irmão voltou, e o teu pai matou o vitelo gordo, porque o
recebeu de volta são e salvo’. Ficou irado e não queria entrar, mas o seu pai
saiu para lhe suplicar. Em resposta, disse ao seu pai: ‘ Eis que há tantos anos
te sirvo, nunca transgredi uma ordem tua e nunca me deste um cabrito para eu
festejar com os meus amigos. Mas, quando veio esse teu filho, que devorou os
teus bens com prostitutas, mataste-lhe o vitelo gordo’. Ele disse-lhe: ‘ Filho,
tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; mas era necessário festejar e
alegrarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido
e foi encontrado’.” (1)
Vejamos primeiro a estrutura da história
1º momento
Personagem
principal: O filho mais novo.
Personagem
secundária: O pai.
Personagens
secundárias anónimas: Assalariados - figurantes -.
Cenário: Uma propriedade rural com criação
de gado.
Situação:
O
filho mais novo pede ao pai a sua parte dos bens.
O
pai reparte-a com os dois.
1ª decisão: O filho mais novo sai da casa do pai e
vai para terra longínqua.
Motivo: A personagem não o diz. É o leitor
que, desmontando a situação, cria uma razão (também é a nossa parábola).
2º momento
Personagem principal: O filho mais novo
Personagens secundárias: Panóplia de pessoas que vai
conhecendo – figurantes, à excepção do dono dos porcos, personagem-tipo -.
Cenários:
1º imaginado/construído pelo leitor
2º
rural; criação de porcos
2ª decisão: O
filho mais novo decide voltar para a casa do pai.
Motivo:
Já não tinha nada; passava fome.
3º Momento
Personagem
principal: O filho mais novo.
Personagens
secundárias: Os assalariados do pai, anónimos.
Desfecho:
O filho mais novo volta para a casa do pai.
Objectivo: Deixar
de passar privações.
Final: O pai festeja.
Momento apoteótico com um final absolutamente
inesperado.
4.º Momento
Personagem
principal: O filho mais velho
Personagem
secundária: O pai
Situação:
Conflito entre ambos. Noções diferentes de justiça.
Se
há histórias que jogam com a nossa ignorância da vida e nos desafiam, nenhuma o
faz tão primorosamente como esta parábola. Não é uma moral, é o enfrentar das
nossas ilusões e da nossa ignorância. Quantos são os filhos que se revoltam
contra os seus pais por nada? Quantos veem a vida familiar como um entrave à
experiência do conhecimento do outro, ao necessário quanto urgente aprendizado
que nos ajuda a subir a patamares mais complexos?
O
mundo é uma experiência avassaladora que arrasta consigo a emergência de uma
mudança radical de mentalidade, uma observação minuciosa, uma consciência de
novas necessidades, nomeadamente a de saber proteger-se pelos seus próprios
meios. No entanto, a maior lição será o amargo da experiência de que os outros
não são pai, nem família, mas desconhecidos como desconhecida é a vida com
eles, totalmente imprevisível em que se está exposto, desamparado, frágil. O
filho descobriu tudo isso arduamente, e também e por contraste a sublimidade
dos sentimentos do pai, a sua infinita misericórdia, o que podemos resumir
deste modo: seminal a esta parábola há uma nova noção de ressurreição, a saber,
rejeitar a família é estar morto na medida em que repudia a progenitura, a
semente, a origem, o que lhe confere identidade: “porque o meu filho estava morto e voltou à vida.” (v.24). Isto
significa que há uma pertença, um dever, uma genealogia ôntica identitária que passa
pelo biológico e que o transcende: ser da casa do pai é ser filho de pleno
direito numa relação tão profunda que se torna indizível. São valores
antropológicos que se impõem numa necessidade de voltar à tribo ou ao clã numa
misteriosa estabilidade que só estes conseguem dar.
Por
outro lado, Jesus pretende com esta parábola fazer-nos ver o quão somos
ridículos quando fazemos escolhas entre as pessoas numa avaliação que não faz
sentido, a saber, não nos sentarmos à mesa com pecadores. A dicotomia puro
versus impuro é inqualificável. Eu conheço quem se recuse a estar à mesma mesa
com quem não seja vegetariano, porque comer carne é um pecado de
lesa-majestade. Certamente não andará de transportes públicos, nem vai a
espectáculos.
Para
J. Jeremias, Lc 15: 11-32 “é em primeira
linha uma parábola apologética, com que Jesus justifica diante de seus críticos
sua comunhão de mesa com os pecadores (…) ” (2) O
que é então ser pai? Que Deus seria esse que ensinasse a recusar a comunhão de
mesa com pecadores?! Acaso somos perfeitos? E se o pecador é o próprio filho,
sangue do seu sangue, carne da sua carne, rejeita-se? Se o filho pecou, por
maiores que sejam os seus pecados, não estará o pai sempre pronto a recebê-lo?
A mesa do Pai, sempre posta, é um festim para todos os que regressam, exaustos
da vida, das experiências dolorosas mas avassaladoras.
Antes de deixar o
pai, o filho desconhecia que partir para conhecer o mundo é sujeitar-se a
entrar no imundo: o espaço dos que não conseguem viver nele, porque estão
atormentados - como o endemoninhado de Gerasa, cuja legião de espíritos imundos
fora lançada para uma vara de porcos, e o doente enviado para casa por
imposição de Jesus (3) -, ou porque se julgam
superiores – mulher adúltera apedrejada, “aquele
que, de entre vós, está sem pecado, seja o primeiro que atire pedra contra ela.”
(4) -,
ou de todos aqueles que se comprazem em prejudicar o próximo. Nada que o pai
dissesse seria capaz de o demover. Veja-se que a parábola silencia o pai quando
o filho lhe pede a sua parte dos bens. É como se lhe dissesse: Vai.
Porém,
o filho não regressa por amor ao pai, mas pela fome e miséria em que caiu.
Desejou a vida dos assalariados da casa de seu pai, ele que se tornou também um
assalariado, faminto e sem ordem para comer nem sequer da comida dos porcos. A
vida abjecta a que desceu transfigurou-o, aparece descalço, paupérrimo, mísero,
irreconhecível, porém não para uma pessoa especial que, ao longe, reconheceu-o,
a única capaz de o reconhecer fosse com que aspecto fosse; e que foi ao seu
encontro compadecido (v.20), não
aguardou que ele chegasse. O pai tem pressa do abraço, daqueles beijos que
significam perdão incondicional; ninguém, no mundo inteiro, teria tal atitude:
o excesso de vivência catastrófica, de faltas, de erros, enfim, foi compatível
com a misericórdia sem medida do pai. Tolentino Mendonça afirma sapiente que “não há misericórdia sem excesso. Se
queremos ser pessoas moderadas, se queremos ser apenas justos, se queremos
fazer apenas o que está certo, seremos até boas pessoas, mas não conheceremos o
Evangelho da Misericórdia.” (5)
Não
há grandes máximas. A parábola impõe-se pelo amor incondicional do pai. O filho
sentiu na pele o desencontro, o desamor, o desrespeito, e isso já vale por mil
sermões, que somos tão bons a dar e tão maus a cumprir. O excesso levou o filho
a ver o mundo com outra lente.
Porém, há ainda uma personagem muito importante: O vitelo gordo. Isto significa que havia
um, aquele e não outro vitelo, que estaria reservado para ocasião especial, e
que era agora. O filho mais velho, que somos nós, os bem comportados, ficou indignado,
pois nem tampouco tinha sido abatido para ele um cabrito (v29) – queremos tanto
ser premiados -. Não satisfeito, refere-se ao irmão como esse teu filho (v30), o esbanjador, o perdido na vida. e mais uma
vez o pai, em infinita misericórdia suplicou
(v28) que, também ele, caísse em si, porque esteve sempre com ele, o que já era
uma festa permanente. Estamos em presença de duas manifestações ou duas
aplicações diferentes da misericórdia. Aqui, não é a da lonjura e do regresso,
mas a da justificação de uma atitude de incompreensão: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu” (v31).
Não é fácil aprender a ser misericordioso. Tem que se
compreender primeiro que a vida é cheia de excessos, que o prato da balança
está em desequilíbrio, que o imundo não está apenas mesmo ao lado, está em nós.
Só pela misericórdia nos tornamos mundo.
Ninguém
é feliz na exclusão. Excluir é esvaziar-se. Aprendemos com esta parábola que o
poder de Deus é surpreendente e infinito, que a Sua linguagem não é a nossa,
que o Seu pensamento difere do nosso.
O filho mais velho é o auditório de Jesus, nós, muito
tempo depois desta história. Esta parábola, que não é uma alegoria,
confronta-nos com a noção de festa, de banquete, de alegria infinita num quadro
redentor.
Só no regresso a casa, o filho conheceu quem o seu pai é
verdadeiramente; só nos festejos o filho que não saiu de casa alcança a
sabedoria do pai.
O
filho volta porque passa privações, não por saudade do amor do pai; mas o
desfecho da história remete-nos, inevitavelmente, para uma reflexão sobre como
é que nós agiríamos em idêntica situação. E isso é coisa que não falta, nos
tempos que correm, nesta aldeia frenética em que vivemos, em um mundo que
quer destruir a família e reduzir pai e mãe a progenitores.
A
globalização pretende pôr fim às diferenças culturais e formatizar toda a gente.
Há, porém, um bando de resistentes. Mas até quando irão resistir? Não se sabe! Espalhar
amor pelo planeta não interessa aos independentes, os que não precisam de
ninguém. A globalização gerou sós, assustados e desconfiados, temerosos e
fantasmáticos. Ora natureza e cultura são seminais da nossa existência e
espiritualidade, e não são globalizáveis.
Assim,
na nossa cultura cristã, apetece-me dizer com Jesus: “Zaqueu, desce depressa, pois hoje é necessário que fique em tua casa.”
(…) “Pois o Filho do Homem veio procurar
e salvar o que estava perdido”. (6)
Ou
seja, “ (…) porque o meu filho estava
morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado. (v24)
Festejemos,
porque bela é a ressurreição, incomensurável o amor de Deus.
Margarida
Azevedo
(1)
Conferência Episcopal Portuguesa, Bíblia,
os Quatro Evangelhos e os Salmos, Lisboa, 2019, Lc 15: 11-32.
Referências:
(2)
JEREMIAS, J., As Parábolas de Jesus, Paulus,
São Paulo, 2004, p.134.
(3)
Mc 5:1-20. Trad. C.E.P.
(4)
Jo 8:7. Trad. J.F.de Almeida
(5)
MENDONÇA, J.T., Elogio da Sede, Quetzal
Editores, Lisboa, 2018, p.133.
(6)
Lc 19: 5; 10. Trad. C.E.P.
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