quinta-feira, abril 06, 2023

À PROCURA DO SENTIDO DE NÓS MESMOS III

 


Parábola do pai misericordioso

              Disse ainda: “Um homem tinha dois filhos. O mais novo deles disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte dos bens que me toca’. O pai repartiu os bens entre eles. Não muitos dias depois, o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma região distante e aí esbanjou os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ele gastar tudo, surgiu uma grande fome naquela região, e ele começou a passar privações.

              Uniu-se, então, a um dos cidadãos daquela região, que o mandou para os seus campos guardar porcos. Desejava saciar-se com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.

              Então, caindo em si, disse: ‘Quantos assalariados de meu pai têm pão em abundância e eu aqui morro de fome! Vou levantar-me, ter com meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra o céu e para contigo; não mais sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus assalariados’. E levantando-se foi ter com o seu pai.

              Ainda ele estava longe, quando o seu pai o viu e se compadeceu profundamente; correndo, então, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou repetidamente. Disse-lhe o filho: ‘ Pai, pequei contra o céu e para contigo; não mais sou digno de ser chamado teu filho’.

              O pai, porém, disse aos seus servos: ‘Trazei depressa a melhor veste e vesti-lha; dai-lhe um anel para a sua mão e sandálias para os pés; trazei o vitelo gordo, matai-o e festejemos comendo, porque o meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado. E começaram a festejar.

Ora, o seu filho mais velho estava no campo. Quando voltou e se aproximou da casa, ouviu músicas e danças, chamou um dos servos e procurou saber o que era aquilo. Ele disse-lhe: ‘ O teu irmão voltou, e o teu pai matou o vitelo gordo, porque o recebeu de volta são e salvo’. Ficou irado e não queria entrar, mas o seu pai saiu para lhe suplicar. Em resposta, disse ao seu pai: ‘ Eis que há tantos anos te sirvo, nunca transgredi uma ordem tua e nunca me deste um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas, quando veio esse teu filho, que devorou os teus bens com prostitutas, mataste-lhe o vitelo gordo’. Ele disse-lhe: ‘ Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; mas era necessário festejar e alegrarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado’.” (1)

 

Vejamos primeiro a estrutura da história

1º momento

Personagem principal: O filho mais novo.

Personagem secundária: O pai.

Personagens secundárias anónimas: Assalariados - figurantes -.

Cenário: Uma propriedade rural com criação de gado.

Situação:

O filho mais novo pede ao pai a sua parte dos bens.

O pai reparte-a com os dois.

1ª decisão: O filho mais novo sai da casa do pai e vai para terra longínqua.

Motivo: A personagem não o diz. É o leitor que, desmontando a situação, cria uma razão (também é a nossa parábola).

 

2º momento

Personagem principal: O filho mais novo

Personagens secundárias: Panóplia de pessoas que vai conhecendo – figurantes, à excepção do dono dos porcos, personagem-tipo -.

Cenários: 1º imaginado/construído pelo leitor

        2º rural; criação de porcos

2ª decisão: O filho mais novo decide voltar para a casa do pai.

Motivo: Já não tinha nada; passava fome.

 

3º Momento

Personagem principal: O filho mais novo.

Personagens secundárias: Os assalariados do pai, anónimos.

Desfecho: O filho mais novo volta para a casa do pai.

Objectivo: Deixar de passar privações.

Final: O pai festeja.

Momento apoteótico com um final absolutamente inesperado.

 

4.º Momento

Personagem principal: O filho mais velho

Personagem secundária: O pai

Situação: Conflito entre ambos. Noções diferentes de justiça.

 

Se há histórias que jogam com a nossa ignorância da vida e nos desafiam, nenhuma o faz tão primorosamente como esta parábola. Não é uma moral, é o enfrentar das nossas ilusões e da nossa ignorância. Quantos são os filhos que se revoltam contra os seus pais por nada? Quantos veem a vida familiar como um entrave à experiência do conhecimento do outro, ao necessário quanto urgente aprendizado que nos ajuda a subir a patamares mais complexos?

O mundo é uma experiência avassaladora que arrasta consigo a emergência de uma mudança radical de mentalidade, uma observação minuciosa, uma consciência de novas necessidades, nomeadamente a de saber proteger-se pelos seus próprios meios. No entanto, a maior lição será o amargo da experiência de que os outros não são pai, nem família, mas desconhecidos como desconhecida é a vida com eles, totalmente imprevisível em que se está exposto, desamparado, frágil. O filho descobriu tudo isso arduamente, e também e por contraste a sublimidade dos sentimentos do pai, a sua infinita misericórdia, o que podemos resumir deste modo: seminal a esta parábola há uma nova noção de ressurreição, a saber, rejeitar a família é estar morto na medida em que repudia a progenitura, a semente, a origem, o que lhe confere identidade: “porque o meu filho estava morto e voltou à vida.” (v.24). Isto significa que há uma pertença, um dever, uma genealogia ôntica identitária que passa pelo biológico e que o transcende: ser da casa do pai é ser filho de pleno direito numa relação tão profunda que se torna indizível. São valores antropológicos que se impõem numa necessidade de voltar à tribo ou ao clã numa misteriosa estabilidade que só estes conseguem dar.

Por outro lado, Jesus pretende com esta parábola fazer-nos ver o quão somos ridículos quando fazemos escolhas entre as pessoas numa avaliação que não faz sentido, a saber, não nos sentarmos à mesa com pecadores. A dicotomia puro versus impuro é inqualificável. Eu conheço quem se recuse a estar à mesma mesa com quem não seja vegetariano, porque comer carne é um pecado de lesa-majestade. Certamente não andará de transportes públicos, nem vai a espectáculos.

Para J. Jeremias, Lc 15: 11-32 “é em primeira linha uma parábola apologética, com que Jesus justifica diante de seus críticos sua comunhão de mesa com os pecadores (…) (2) O que é então ser pai? Que Deus seria esse que ensinasse a recusar a comunhão de mesa com pecadores?! Acaso somos perfeitos? E se o pecador é o próprio filho, sangue do seu sangue, carne da sua carne, rejeita-se? Se o filho pecou, por maiores que sejam os seus pecados, não estará o pai sempre pronto a recebê-lo? A mesa do Pai, sempre posta, é um festim para todos os que regressam, exaustos da vida, das experiências dolorosas mas avassaladoras.

             Antes de deixar o pai, o filho desconhecia que partir para conhecer o mundo é sujeitar-se a entrar no imundo: o espaço dos que não conseguem viver nele, porque estão atormentados - como o endemoninhado de Gerasa, cuja legião de espíritos imundos fora lançada para uma vara de porcos, e o doente enviado para casa por imposição de Jesus (3) -, ou porque se julgam superiores – mulher adúltera apedrejada, “aquele que, de entre vós, está sem pecado, seja o primeiro que atire pedra contra ela.” (4) -, ou de todos aqueles que se comprazem em prejudicar o próximo. Nada que o pai dissesse seria capaz de o demover. Veja-se que a parábola silencia o pai quando o filho lhe pede a sua parte dos bens. É como se lhe dissesse: Vai.

Porém, o filho não regressa por amor ao pai, mas pela fome e miséria em que caiu. Desejou a vida dos assalariados da casa de seu pai, ele que se tornou também um assalariado, faminto e sem ordem para comer nem sequer da comida dos porcos. A vida abjecta a que desceu transfigurou-o, aparece descalço, paupérrimo, mísero, irreconhecível, porém não para uma pessoa especial que, ao longe, reconheceu-o, a única capaz de o reconhecer fosse com que aspecto fosse; e que foi ao seu encontro compadecido (v.20), não aguardou que ele chegasse. O pai tem pressa do abraço, daqueles beijos que significam perdão incondicional; ninguém, no mundo inteiro, teria tal atitude: o excesso de vivência catastrófica, de faltas, de erros, enfim, foi compatível com a misericórdia sem medida do pai. Tolentino Mendonça afirma sapiente que “não há misericórdia sem excesso. Se queremos ser pessoas moderadas, se queremos ser apenas justos, se queremos fazer apenas o que está certo, seremos até boas pessoas, mas não conheceremos o Evangelho da Misericórdia.” (5)

Não há grandes máximas. A parábola impõe-se pelo amor incondicional do pai. O filho sentiu na pele o desencontro, o desamor, o desrespeito, e isso já vale por mil sermões, que somos tão bons a dar e tão maus a cumprir. O excesso levou o filho a ver o mundo com outra lente.

            Porém, há ainda uma personagem muito importante: O vitelo gordo. Isto significa que havia um, aquele e não outro vitelo, que estaria reservado para ocasião especial, e que era agora. O filho mais velho, que somos nós, os bem comportados, ficou indignado, pois nem tampouco tinha sido abatido para ele um cabrito (v29) – queremos tanto ser premiados -. Não satisfeito, refere-se ao irmão como esse teu filho (v30), o esbanjador, o perdido na vida. e mais uma vez o pai, em infinita misericórdia suplicou (v28) que, também ele, caísse em si, porque esteve sempre com ele, o que já era uma festa permanente. Estamos em presença de duas manifestações ou duas aplicações diferentes da misericórdia. Aqui, não é a da lonjura e do regresso, mas a da justificação de uma atitude de incompreensão: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu” (v31).

            Não é fácil aprender a ser misericordioso. Tem que se compreender primeiro que a vida é cheia de excessos, que o prato da balança está em desequilíbrio, que o imundo não está apenas mesmo ao lado, está em nós. Só pela misericórdia nos tornamos mundo.

Ninguém é feliz na exclusão. Excluir é esvaziar-se. Aprendemos com esta parábola que o poder de Deus é surpreendente e infinito, que a Sua linguagem não é a nossa, que o Seu pensamento difere do nosso.

            O filho mais velho é o auditório de Jesus, nós, muito tempo depois desta história. Esta parábola, que não é uma alegoria, confronta-nos com a noção de festa, de banquete, de alegria infinita num quadro redentor.

            Só no regresso a casa, o filho conheceu quem o seu pai é verdadeiramente; só nos festejos o filho que não saiu de casa alcança a sabedoria do pai.

O filho volta porque passa privações, não por saudade do amor do pai; mas o desfecho da história remete-nos, inevitavelmente, para uma reflexão sobre como é que nós agiríamos em idêntica situação. E isso é coisa que não falta, nos tempos que correm, nesta aldeia frenética em que vivemos, em um mundo que quer destruir a família e reduzir pai e mãe a progenitores. 

A globalização pretende pôr fim às diferenças culturais e formatizar toda a gente. Há, porém, um bando de resistentes. Mas até quando irão resistir? Não se sabe! Espalhar amor pelo planeta não interessa aos independentes, os que não precisam de ninguém. A globalização gerou sós, assustados e desconfiados, temerosos e fantasmáticos. Ora natureza e cultura são seminais da nossa existência e espiritualidade, e não são globalizáveis.

Assim, na nossa cultura cristã, apetece-me dizer com Jesus: “Zaqueu, desce depressa, pois hoje é necessário que fique em tua casa.” (…) “Pois o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”. (6)

Ou seja, “ (…) porque o meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado. (v24)

Festejemos, porque bela é a ressurreição, incomensurável o amor de Deus.

 

Margarida Azevedo

 

 

(1) Conferência Episcopal Portuguesa, Bíblia, os Quatro Evangelhos e os Salmos, Lisboa, 2019, Lc 15: 11-32.

Referências:

(2) JEREMIAS, J., As Parábolas de Jesus, Paulus, São Paulo, 2004, p.134.

(3) Mc 5:1-20. Trad. C.E.P.

(4) Jo 8:7. Trad. J.F.de Almeida

(5) MENDONÇA, J.T., Elogio da Sede, Quetzal Editores, Lisboa, 2018, p.133.

(6) Lc 19: 5; 10. Trad. C.E.P.

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