PÁSCOA 2023
Tu não me abandonarás no mundo dos mortos,
não deixarás que o teu fiel experimente a
corrupção.* Sl
16:10
Feliz daquele que viu a sua culpa
levantada
e o seu pecado apagado.
Feliz a quem o SENHOR não acusa de maldade
e que no seu espírito não tem falsidade.* Sl 32:1-2
Fizeste-me passar por grandes males e
aflições; mas voltarás a dar-me a vida
e dos abismos da terra me erguerás de
novo.* Sl
71: 20
Quando chegaram ao lugar chamado
Calvário, aí o crucificaram. E <crucificaram> também os malfeitores, um à
direita e outro à esquerda. Jesus dizia: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o
que fazem.”**
Lc 23: 33-34
Quando
o sofrimento é desmedido, a única forma de o vencer é perdoá-lo, tal como amar
quando tudo parece perdido, por exemplo: aquele amigo que nos traiu, aquela
verdade que se revelou mentira, aquele acontecimento que nos isolou
injustamente. Perdoar e amar no auge da solidão, do abandono, do tudo está consumado é fazer brotar
flores em espinheiros.
São
tantas as nossas interrogações. Num mundo em que se tornou tão fácil matar,
levantam-se questões existenciais, a saber, onde é que está Deus quando
acontece o homicídio de uma criança, de um idoso, de um transeunte que vai
descansadamente a passar na rua a olhar para as montras? Onde está Ele quando
alguém é barbaramente torturado, quando no auge da vida surge a notícia de um
cancro devastador, quando a alegria de um filho é trespassada pela notícia de
que este caiu nas malhas da droga ou morreu subitamente num acidente de
viação?...
A
vida é uma passagem de passagens. Não apenas do bem-estar momentâneo para o
inferno de uma desgraça que surge sem mais; ou da liberdade para o cativeiro;
não só da Tradição para a sapiência da Lei; não só do espaço pagão para a Terra
Prometida. Esta dicotomia faz pouco sentido se atendermos que pisamos solo
sagrado, na medida em que tudo foi criado por Deus.
A
Páscoa é a festa das passagens: do cativeiro para a liberdade, da morte para a
vida eterna. Porém, há uma Páscoa de que pouco se fala: a passagem da
insignificância de Jesus para o mundo e para a cultura do seu tempo, para a sua
importância universal; da relatividade para a imensidade, do não glorioso para
o glorioso. O mesmo é dizer, quantas vezes deturpados pelo olhar inerte vemos
insignificância no homem caído à beira da estrada nas nossas cidades e pede
esmola, ….., no pastor impuro que apascenta o rebanho que nas nossas cidades
varre as ruas e nos garante a dignidade da limpeza, na ressurreição daqueles
que trabalham nos hospitais e nos tratam com desvelo. Quanta magia nesta transformação de tudo em
possibilidades.
A
Páscoa da ressurreição de Jesus é a radical mudança de paradigma: proclamar o
amor no meio do ódio, a vida na morte, perspectivar a existência terrena de
outra forma. Jesus perdeu tudo, numa perda que se transformou na maior vitória
de todos os tempos, caso único na história das religiões.
Hoje,
já não estamos a passar do cativeiro para a liberdade, já não é preciso separar
as águas nem vencer pragas. É a força de uma nação que se impõe pela certeza de
que a vida continua, libertando a fé da natural dúvida que a acompanha. Também
já não é uma nação que procura a sua terra, mas o povo de uma nação sai a
universalidade metafísica de uma dúvida que é vencida.
Reduzir
o imperialismo à sua vã ilusão não é só relativizar o poder do Império Romano,
mas um aviso a todos os poderosos da terra de que não há maior ridículo do que
aquele que leva a pensar que podemos ou somos alguma coisa.
Que
significa o perdão? Ausência, anulação e fim, para culminar numa totalidade:
tudo presença, tudo construção, tudo começo, eternos. Não é esquecimento de uma
ofensa, mas aprender que aquilo que não se esquece também pode ser um móbil de
mudança de um menos para um mais.
A
vingança não nos leva à transcendência, Deus não surge aí. O Paraíso mostra o
perdão incondicional face a um entendimento metafísico. Só o paraíso purifica,
só ele é escola, porque só ele tem a autoridade do Bem. Estamos longe dos mitos
repletos de heróis. Estamos no coração da teologia da dor como força
transformadora, radical e perfeita.
Quem
é o Jesus crucificado? Um pecador. Um terrorista perigoso que incitava o
auditório a desconfiar do poder dos poderosos, daqueles que usavam longas
vestes, dos que oravam com longas preces em público para serem vistos; que
comia a todas as mesas, que curava em dia de sábado, que relativizada e
ridicularizava todos os que tinham na terra o seu triunfo, enfim.
O
terrorismo não é só quando se mata alguém à porta de um templo ou num espaço de
lazer. O terrorismo também é perigosamente visto onde ele não está, por medo e
desconfiança, por não se conhecer o outro, por imposição social, por respeito
humano, por fobia, por complexos sem sentido.
Este
perdão na cruz é também uma democratização da fé. Perdoar porque há um fim, há
uma escatologia no perdão. O fim é atingir todo o bem, toda a felicidade,
sê-lo, efectivamente, fundir-se com ele.
Cada
um de nós é uma voz da Promessa, é uma passagem. Cada um de nós é um ser à
procura de luz. Viver é encontrar-se consigo mesmo e com o outro numa casa que
é Deus.
Tal
como nós, os discípulos duvidavam da ressurreição, não apenas Tomé. Este foi
apenas mais explícito, como nós também quando os problemas apertam. Ora Jesus
marcou definitivamente a vida dos apóstolos, discípulos e simpatizantes, que
somos nós todos.
Cada
Páscoa é uma transcendência, o lembrar de que somos caminho, que estamos de
passagem, sempre de passagem. A morte já não é uma fatalidade, um castigo
divino, um mau pendor. A morte é uma necessidade, a maior necessidade do ser
humano, porque sem morte não há vida.
Pergunta-se:
Para que mundo queremos ir? Queremos passar de onde para aonde? Nesta Páscoa, eu
quero passar para outra dimensão da oração, a saber, quero que Deus não me
atenda.
Senhor
Não
atendas aos meus pedidos de uma fé ferida nas malhas da dúvida
Não
escutes as minhas lamentações quando caio no poço por teimosia
Não
estejas perto de mim quando me julgo merecedor/a dos Teus elogios por algum bem
remoto que tenha feito
Não
fiques comigo à cabeceira quando estou doente pelos meus excessos de toda a
ordem
Não
Te preocupes comigo quando caio por não seguir as Tuas recomendações
Não
me oiças quando a ousadia foi longe demais
Não
me dês a Terra Prometida, permite-me antes prometer-Te a terra com paz
Não
afastes de mim as águas poderosas, deixa-me ser eu a afastar de mim a ilusão do
poder e dos poderosos
Não
me leves para as montanhas, mas abre-me o caminho para ser eu a própria
montanha
Não
me dês a Lei, mas ilumina-me para ser eu um exemplo do dever cumprido
Não
me ofereças os Mandamentos, mas que seja eu o/a seu portador/a por todo o
universo, por toda a eternidade
Não
escondas de mim o mundo dos mortos, mas permite-me lutar para merecer a eternidade
dos vivos
Se
preciso for, deixa-me construir os bezerros de oiro, festejar os poderes dos
deuses, tentar confundir os escolhidos para ter a ousadia de Te pedir o perdão
na consciência da ingratidão, na penúria dos sentimentos e das palavras
(mal)ditas
A
ti, Jesus, preciso que me dês uma definição de verdade:
Que
eu não sei o que faço
Que
sou culpado/a pela tua crucificação
Que
estava lá, que vi tudo e que fugi para bem longe enquanto tu, agoniante, pedias
perdão por toda a humanidade
Que
que me digas que sou um que blasfemava contra ti ao teu lado, crucificado como
tu; ou o outro, suplicando-te que te lembrasses dele quando chegasses ao teu
reino, aquele a quem tu disseste que estaria contigo, hoje, no paraíso
Que
me digas que tudo está consumado quando disseste que tinhas sede e te dei em
vez de água uma esponja embebida em vinagre
Que
me assustei quando se rasgou o véu do Templo em dois; quando “a terra tremeu e as rochas fenderam-se. Os
sepulcros abriram-se e muitos corpos de santos que tinham adormecido
ressuscitaram (…) ” * (Mt 27:51-52) aparecendo
na cidade santa a muitos
Que
escarneci solicitando artes mágicas dizendo que te salvasses, que és rei, que
desças agora da cruz
Que
o meu coração de pagão/ã, caído por terra e numa fé completamente renovada pelo
espanto da singularidade dos acontecimentos, afirmou, na morte: “Verdadeiramente este era Filho de Deus!”*
(Mt
27:54);
“Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!”* (Mc
15:39);
Realmente, este homem era justo!”* (Lc23:47)
Que
esta Páscoa seja a entrada triunfal numa outra dimensão da Palavra que se fez
Carne, na “bênção da oração não
atendida”.***
Margarida Azevedo
*Trad. Conferência Episcopal Portuguesa.
** Trad. F. Lourenço
***HALÍK, T., O Meu Deus é um Deus Ferido, Paulinas, Prior Velho, 2021, p.131.
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