domingo, abril 09, 2023

PÁSCOA 2023

 

 

Tu não me abandonarás no mundo dos mortos,

não deixarás que o teu fiel experimente a corrupção.* Sl 16:10

 

Feliz daquele que viu a sua culpa levantada

e o seu pecado apagado.

Feliz a quem o SENHOR não acusa de maldade

e que no seu espírito não tem falsidade.* Sl 32:1-2

 

Fizeste-me passar por grandes males e aflições; mas voltarás a dar-me a vida

e dos abismos da terra me erguerás de novo.* Sl 71: 20  

 

              Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, aí o crucificaram. E <crucificaram> também os malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem.”** Lc 23: 33-34

 

Quando o sofrimento é desmedido, a única forma de o vencer é perdoá-lo, tal como amar quando tudo parece perdido, por exemplo: aquele amigo que nos traiu, aquela verdade que se revelou mentira, aquele acontecimento que nos isolou injustamente. Perdoar e amar no auge da solidão, do abandono, do tudo está consumado é fazer brotar flores em espinheiros.

São tantas as nossas interrogações. Num mundo em que se tornou tão fácil matar, levantam-se questões existenciais, a saber, onde é que está Deus quando acontece o homicídio de uma criança, de um idoso, de um transeunte que vai descansadamente a passar na rua a olhar para as montras? Onde está Ele quando alguém é barbaramente torturado, quando no auge da vida surge a notícia de um cancro devastador, quando a alegria de um filho é trespassada pela notícia de que este caiu nas malhas da droga ou morreu subitamente num acidente de viação?...

A vida é uma passagem de passagens. Não apenas do bem-estar momentâneo para o inferno de uma desgraça que surge sem mais; ou da liberdade para o cativeiro; não só da Tradição para a sapiência da Lei; não só do espaço pagão para a Terra Prometida. Esta dicotomia faz pouco sentido se atendermos que pisamos solo sagrado, na medida em que tudo foi criado por Deus.

A Páscoa é a festa das passagens: do cativeiro para a liberdade, da morte para a vida eterna. Porém, há uma Páscoa de que pouco se fala: a passagem da insignificância de Jesus para o mundo e para a cultura do seu tempo, para a sua importância universal; da relatividade para a imensidade, do não glorioso para o glorioso. O mesmo é dizer, quantas vezes deturpados pelo olhar inerte vemos insignificância no homem caído à beira da estrada nas nossas cidades e pede esmola, ….., no pastor impuro que apascenta o rebanho que nas nossas cidades varre as ruas e nos garante a dignidade da limpeza, na ressurreição daqueles que trabalham nos hospitais e nos tratam com desvelo. Quanta magia nesta transformação de tudo em possibilidades.

A Páscoa da ressurreição de Jesus é a radical mudança de paradigma: proclamar o amor no meio do ódio, a vida na morte, perspectivar a existência terrena de outra forma. Jesus perdeu tudo, numa perda que se transformou na maior vitória de todos os tempos, caso único na história das religiões.

Hoje, já não estamos a passar do cativeiro para a liberdade, já não é preciso separar as águas nem vencer pragas. É a força de uma nação que se impõe pela certeza de que a vida continua, libertando a fé da natural dúvida que a acompanha. Também já não é uma nação que procura a sua terra, mas o povo de uma nação sai a universalidade metafísica de uma dúvida que é vencida.

Reduzir o imperialismo à sua vã ilusão não é só relativizar o poder do Império Romano, mas um aviso a todos os poderosos da terra de que não há maior ridículo do que aquele que leva a pensar que podemos ou somos alguma coisa.

Que significa o perdão? Ausência, anulação e fim, para culminar numa totalidade: tudo presença, tudo construção, tudo começo, eternos. Não é esquecimento de uma ofensa, mas aprender que aquilo que não se esquece também pode ser um móbil de mudança de um menos para um mais.

A vingança não nos leva à transcendência, Deus não surge aí. O Paraíso mostra o perdão incondicional face a um entendimento metafísico. Só o paraíso purifica, só ele é escola, porque só ele tem a autoridade do Bem. Estamos longe dos mitos repletos de heróis. Estamos no coração da teologia da dor como força transformadora, radical e perfeita.

Quem é o Jesus crucificado? Um pecador. Um terrorista perigoso que incitava o auditório a desconfiar do poder dos poderosos, daqueles que usavam longas vestes, dos que oravam com longas preces em público para serem vistos; que comia a todas as mesas, que curava em dia de sábado, que relativizada e ridicularizava todos os que tinham na terra o seu triunfo, enfim.

O terrorismo não é só quando se mata alguém à porta de um templo ou num espaço de lazer. O terrorismo também é perigosamente visto onde ele não está, por medo e desconfiança, por não se conhecer o outro, por imposição social, por respeito humano, por fobia, por complexos sem sentido.

Este perdão na cruz é também uma democratização da fé. Perdoar porque há um fim, há uma escatologia no perdão. O fim é atingir todo o bem, toda a felicidade, sê-lo, efectivamente, fundir-se com ele.

Cada um de nós é uma voz da Promessa, é uma passagem. Cada um de nós é um ser à procura de luz. Viver é encontrar-se consigo mesmo e com o outro numa casa que é Deus.

Tal como nós, os discípulos duvidavam da ressurreição, não apenas Tomé. Este foi apenas mais explícito, como nós também quando os problemas apertam. Ora Jesus marcou definitivamente a vida dos apóstolos, discípulos e simpatizantes, que somos nós todos.

Cada Páscoa é uma transcendência, o lembrar de que somos caminho, que estamos de passagem, sempre de passagem. A morte já não é uma fatalidade, um castigo divino, um mau pendor. A morte é uma necessidade, a maior necessidade do ser humano, porque sem morte não há vida.

Pergunta-se: Para que mundo queremos ir? Queremos passar de onde para aonde? Nesta Páscoa, eu quero passar para outra dimensão da oração, a saber, quero que Deus não me atenda.

Senhor

Não atendas aos meus pedidos de uma fé ferida nas malhas da dúvida

Não escutes as minhas lamentações quando caio no poço por teimosia

Não estejas perto de mim quando me julgo merecedor/a dos Teus elogios por algum bem remoto que tenha feito

Não fiques comigo à cabeceira quando estou doente pelos meus excessos de toda a ordem

Não Te preocupes comigo quando caio por não seguir as Tuas recomendações

Não me oiças quando a ousadia foi longe demais

Não me dês a Terra Prometida, permite-me antes prometer-Te a terra com paz

Não afastes de mim as águas poderosas, deixa-me ser eu a afastar de mim a ilusão do poder e dos poderosos

Não me leves para as montanhas, mas abre-me o caminho para ser eu a própria montanha

Não me dês a Lei, mas ilumina-me para ser eu um exemplo do dever cumprido

Não me ofereças os Mandamentos, mas que seja eu o/a seu portador/a por todo o universo, por toda a eternidade

Não escondas de mim o mundo dos mortos, mas permite-me lutar para merecer a eternidade dos vivos

Se preciso for, deixa-me construir os bezerros de oiro, festejar os poderes dos deuses, tentar confundir os escolhidos para ter a ousadia de Te pedir o perdão na consciência da ingratidão, na penúria dos sentimentos e das palavras (mal)ditas

A ti, Jesus, preciso que me dês uma definição de verdade:

Que eu não sei o que faço

Que sou culpado/a pela tua crucificação

Que estava lá, que vi tudo e que fugi para bem longe enquanto tu, agoniante, pedias perdão por toda a humanidade

Que que me digas que sou um que blasfemava contra ti ao teu lado, crucificado como tu; ou o outro, suplicando-te que te lembrasses dele quando chegasses ao teu reino, aquele a quem tu disseste que estaria contigo, hoje, no paraíso

Que me digas que tudo está consumado quando disseste que tinhas sede e te dei em vez de água uma esponja embebida em vinagre

Que me assustei quando se rasgou o véu do Templo em dois; quando “a terra tremeu e as rochas fenderam-se. Os sepulcros abriram-se e muitos corpos de santos que tinham adormecido ressuscitaram (…) ” * (Mt 27:51-52) aparecendo na cidade santa a muitos

Que escarneci solicitando artes mágicas dizendo que te salvasses, que és rei, que desças agora da cruz

Que o meu coração de pagão/ã, caído por terra e numa fé completamente renovada pelo espanto da singularidade dos acontecimentos, afirmou, na morte: “Verdadeiramente este era Filho de Deus!”* (Mt 27:54); “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!”* (Mc 15:39); Realmente, este homem era justo!”* (Lc23:47)

Que esta Páscoa seja a entrada triunfal numa outra dimensão da Palavra que se fez Carne, na “bênção da oração não atendida”.***

Margarida Azevedo

 

_____________________________________________________________

*Trad. Conferência Episcopal Portuguesa.

** Trad. F. Lourenço

***HALÍK, T., O Meu Deus é um Deus Ferido, Paulinas, Prior Velho, 2021, p.131.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home