segunda-feira, fevereiro 25, 2013

O SENSO COMUM COMEÇA A DAR OS SEUS FRUTOS III

(Continuação)
Conceitos a reter:

Jesus, um homem que nasceu, viveu e morreu judeu. Não criou o Cristianismo.

Cristo, o Ungido, que não sabemos o que é, transporta-nos inevitavelmente à grande questão da História das Religiões que é saber “O que é o Cristianismo?”

Evangelho significa boa-nova. Quando nascia um rei, quando as culturas davam bons frutos, quando o gado se reproduzia sem problemas, tudo isso era evangelho. Exemplo; Venho trazer-vos um evangelho, já nasceu o príncipe! Tenho um bom evangelho para vos dizer, o gado está saudável!

Verdade histórica é o conjunto de todos os acontecimentos reais: nascimento de Jesus, pregação, viagens, refeições, etc.; verdade de fé é aquilo em que se acredita: ressurreição de Jesus em corpo (para algumas igrejas), ressurreição de Jesus no sentido de desencarne, deixando o corpo no túmulo (como defende o Espiritismo e alguns cristãos fora da Doutrina, muitos deles embora pertencentes a igrejas que defendem oficialmente o contrário), milagres, a Transfiguração, as ressurreições, como a de Lázaro, por exemplo, o episódio de Paulo na estrada de Damasco, etc.

Tão difícil é uma quanto a outra. Se a primeira é das questões mais complexas da pesquisa histórica, a saber, quem foi o Jesus histórico, a segunda cai na complexa teia que é a fé. Ambas se condicionam mutuamente. No entanto, a abertura a novos conhecimentos, estudos e pesquisas, seja da história, seja da fé, tem conduzido a que esta vá ganhando novos contornos, ainda que muitas das suas crenças permaneçam.

Quanto a doutrina, este vocábulo refere-se ao alicerce em que uma religião assenta. Por exemplo, no caso do Cristianismo, o amor universal, o conceito de pessoa, o perdão incondicional dos pecados, a procura do Reino de Deus, Jesus como o Caminho, a Verdade e a Vida, etc. Já as doutrinas são interpretações, singularidades ou particularidades dentro da doutrina-mãe. As diversas igrejas cristãs, os seus movimentos, mesmo as sub-divisões dentro de uma mesma igreja, são grupos doutrinais que vêm acrescentar sentido ao que já está preconizado pelo macro-grupo.



Finalmente, a questão de saber se o Espiritismo é ou não uma religião, nem tão pouco se devia colocar, pois é incongruente e estéril. Segundo uma perspectiva linguístico-conceptual, o Espiritismo seria quando muito uma igreja, pois é uma congregação dentro da religião cristã. Porém, como o complexo aparelho conceptual está inserido dentro de um não menos complexo aparelho social, a palavra igreja, aplicada ao Espiritismo, está desfasada. O mais correcto, e é isso que acontece, é chamar-lhe doutrina. É isso que sempre foi, desde a Codificação, e assim o será.

Também há quem diga que o Espiritismo, não sendo uma religião, será o futuro das religiões. Vamos cair no mesmo. Se se entender por esse futuro a comunicação com os Espíritos, essa posição está erradíssima pois o próprio codificador afirma, perenptoriamente, que o espiritismo se nos depara em todas as épocas da humanidade (vide L´Evangile selon le Spiritism, p.15). Por outras palavras, o espiritismo sempre esteve dentro das religiões. Se se entender, pelo contrário, que isso se refere à Doutrina, é possível que alguns dos preceitos do Espiritismo sejam adoptados pelas religiões, não esquecendo que todas têm nas suas catequeses.

Quanto à evangelização do Espiritismo, ela é tão premente como a sua humanização. Os dois conceitos implicam-se. Espiritismo sem Evangelho seria o descalabro total. Era o fim da doutrina.

O negativismo espreita por todos os meios. Cabe-nos deitá-lo abaixo. A Ciência ensina-nos apenas o que é uma flor; o amor a amá-la; a fé a atribuí-la a Deus. Sem a Ciência podemos amar e ter fé, sem amor e fé podemos ter Ciência. A alma não é passível de ser encontrada por meio de pinças, nem Deus pelo telescópio. A fé pode não ser uma resposta, mas é de certeza um caminho muito interessante.

Há que perceber que a Doutrina é um itinerário para Deus, como qualquer outra congregação no mundo, mas à sua maneira, segundo os seus próprios processos. Porém, isso não significa que se isole das restantes. Tal como elas, precisa do confronto com os seus parceiros de fé para que ela mesma possa evoluir. Se as pessoas não evoluem sozinhas, as doutrinas também não. Não há doutrinas sem contágios, influências.

Quanto à casa espírita, isto é, o local onde se realizam os trabalhos espíritas, poderíamos chamar-lhe igreja, local de congregação. Porém, pelos motivos a que aludimos anteriormente, o mais correcto é chamar-lhe Casa Espírita ou Centro Espírita, que é o que acontece. Também o fazem as Testemunhas de Jeová, que chamam ao seu espaço de trabalhos Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, cuja designação tem a finalidade de marcar a fronteira entre a sua forma de estar no Cristianismo por oposição à das igrejas.

Refira-se ainda que os conceitos religiosismo e evangelismo, formados pelo sufixo ismo, referem-se a sistema. Exemplo: espiritualismo, materialismo, etc. Religiosismo significa “carácter do ensino evangélico; conformidade com os ensinamentos dos Evangelhos; pregação e/ou proclamação do Evangelho como único caminho para a salvação; doutrina religiosa das igrejas que se baseiam nos princípios dos Evangelhos; qualquer sistema moral e/ou religioso baseado nesses mesmos princípios.” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Evangelismo é um conceito erróneo, pois etimologicamente existem sistemas em torno do Evangelho, mas ele próprio não é um sistema.

A pobreza doutrinária, e consequentemente espiritual, para que o Cristianismo está a precipitar-se, e o Espiritismo em particular, apresentam os cristãos como um bando de homens e mulheres à beira do precipício, perdidos na não menos pobre vivência religiosa, sem objectivos de fé que encarnem uma perspectiva de paz e amor universalistas. Está-se a criar um cristianismo sem Cristo, congregações sem evangelho, fé empobrecida e espartilhada nas lides de um saber que, esquecem-se, é sempre perecível e está a vitimizar os homens/mulheres porque mal utilizado. Entregues a um cientismo que pretendem à viva força deificar/endeusar, estão afogados no seu mesmo colete-de-forças, desunidos, envaidecidos e à beira do colapso da fascinação.

O movimento cristão transporta o peso da sua história ensanguentada, deixou-se cegar na entrega às forças trevosas que em todos os movimentos minam as mentes na tentativa de derrubar o seu profeta maior, construindo um edifício sem alicerces.

Não sabendo desfrutar da riqueza do seu pluralismo interpretativo, da cada vez mais emergente especificidade conceptual, muitos cristãos estão perdidos na ilusão do seu falso saber. É lamentável que a voz salvífica de Jesus ainda não seja a bandeira dos cristãos. De facto, o Cristianismo ainda está para vir com todo o seu esplendor, com toda a sua glória. Quem sabe se o nascimento do Cristianismo não será segunda vinda de Jesus!?

Ora, se os cristãos rejeitam Jesus Cristo, quem Dele irá dar testemunho? Quem O levará aos grupos não cristãos e ao mundo? Se se abdicar do Evangelho, o que é proposto em troca? Estamos perante uma problemática complexa, a saber, serão os cristãos quem melhor compreende Jesus, ou, pelo contrário, a sua inteligibilidade é mais objectivamente pertença dos outros grupos religiosos? Dito de outro modo, serão esses grupos quem melhor O compreende? Será que a fé em Jesus é uma barreira à compreensão dos seus ensinamentos? As outras vivências da fé conseguem maior objectividade? Não terá sido isso o que aconteceu em Mt 8:5-13; Lc 7:1-10; Jo 4:43-54? Para se ser cristão tem que se estar fora do Cristianismo? Teríamos que saber de antemão o que significa estar fora e estar dentro.

O abandono do Evangelho seria a maior perda do movimento religioso mundial, a maior catástrofe espiritual do planeta. Não se confundam os ilustres representantes do senso comum (diferente de gente humilde que incita à oração e pouco mais), com os estudiosos atentos e dedicados que, na sua suficiência, tentam esclarecer mediante investigações sérias. O que se está a verificar dentro do movimento espírita, e isso já não é de hoje, é a crescente resistência em aceitar os estudos científicos de exegetas, teólogos e hermeneutas, porque desconformes com os textos que são recebidos psicograficamente. Entregues aos preconceitos e ao medo das trevas, os espíritas isolam-se, fecham-se às leituras dos grandes investigadores mundialmente reconhecidos porque, dizem, o que o mundo aceita não é o que os Espíritos defendem. O mundo está mau, tudo está virado no avesso, as trevas espalharam-se por toda a terra, vamos deitar abaixo os estudiosos.

Quanto a nós, duvidamos desses textos supostamente vindos do além, que isolam as pessoas na sua ignorância, o que só por si desencoraja a curiosidade do leitor sério, desenvolvem ideias exclusivistas, criam a desunião e a desconfiança, principalmente aquando de discursos cujos temas e assuntos lhes são alheios.

Pensamos que não é possível uma doutrina como o Espiritismo não ter nos Centros pessoas licenciadas em História a leccionar História da França, principalmente a partir da Revolução Francesa (e, porque não, da Revolução Industrial?). Estamos em crer que muitos iriam mudar radicalmente as suas perspectivas quanto à Codificação. Por outro lado, é fácil perceber através da biografia de Kardec que este não dominava uma multiplicidade de assuntos relacionados com a religiosidade de então, pois essa não era de todo a sua área. A missão de Kardec reside no âmbito das comunicações com os Espíritos, principalmente, provar a sua existência e a sua natureza.

No entanto, é mais fácil aos espíritas aceitar as obras kardecistas sem a necessária análise crítica, o que nem o próprio codificador aconselhou, do que submetê-las a um estudo sério. Ou então rejeitá-las radicalmente. E tudo isso tem ilustres adeptos e defensores.

A grande ameaça que ensombra o Espiritismo é o fantasma dos Espíritos negativos a que se entregou, em vez de se lhes impor com a força da verdade e do amor cristãos. Não somos nós que temos que ser doutrinados pelos Espíritos, são estes que têm que ser doutrinados por nós (quanto à palavra doutrinação falaremos um dia).

O Cristianismo não é o conjunto das pregações das suas igrejas e movimentos, apenas, é principalmente a luta exemplar pela instauração da paz na terra.
Margarida Azevedo

Bibliografia
HOUAISS, A. e VILLAR, M., Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Mem Martins, 2003, Tomo III, p. 1655.

KARDEC, A., L´Evangile selon le spiritisme, Les Les Editions Philman, Marly-le-Roi, 2001, Introduction, 1. Le but de cet ouvrage, p.15.

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