quarta-feira, dezembro 08, 2021

VÊM AÍ OS CABAZES DE NATAL DOS POBREZINHOS (com muito amor e carinho, acrescente-se)

Encontrando-se Jesus em Betânia, em casa de Simão, o leproso, estava ele à mesa quando chegou uma mulher segurando um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preço; partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus. Alguns indignados entre si: “Para quê este desperdício de perfume? Podia vender-se este perfume por mais de trezentos denários e dar-se o dinheiro aos mendigos.” E falavam à mulher com rispidez. Mas Jesus disse: “ Deixai-a. Porque lhe dais aborrecimentos? Foi uma bela ação que ela praticou em mim. Pois os mendigos tendes sempre convosco e quando quiserdes podeis fazer-lhes bem. Mas a mim, nem sempre me tendes. O que ela tinha para fazer, ela fez: antecipou a unção do meu corpo para a sepultura. Amém vos digo: em qualquer parte do mundo onde for proclamada a boa-nova, será falado o que ela fez, em memória dela.” Mc 14:3-9 (1) Cada vez mais e mais pobres, na sua maioria oriundos de países riquíssimos, grandes produtores de matéria-prima como ouro, prata, diamantes, ferro, entre víveres de excelente qualidade, vítimas da feroz desertificação causada pela mão humana, ou trabalhadores de gastar e deitar fora, eles são o alvo preferencial de todos os que, cinicamente, fazem do natal a grande festa da hipocrisia. Os mesmos que usufruem de mão-de-obra barata, disponível, sazonal, dispensável e lançada para o abismo sem apelo nem agravo quando já não faz falta; os indiferentes perante os que nem chegam ao mercado de trabalho, lançados à fome, simplesmente; os que compram a matéria-prima ao preço da chuva; os que deixam ao analfabetismo e à doença gente em massa são, enfim, os que incentivam outros a dar do que lhes sobra, dizem, aos pobrezinhos, inculcando-lhes o sentido de serem uns privilegiados. Mas não satisfeitos com isso, inculcam ainda nos de coração grande a confusão entre filantropia e voluntariado, desenvolvendo autênticos postos de trabalho a preço de nada, onde os voluntários carregam a pulso pesados caixotes de doações, tratam de doentes, deslocam-se às residências nos seus automóveis ou em transportes públicos, às suas custas, combustíveis e portagens e títulos de transporte, para fazerem limpezas domésticas, etc. Do lado das igrejas (os diversos grupos cristãos), fazendo das doações um artifício salvífico, continuam a manipular a fé, criando nos crentes a ideia de que Deus fica muito contente com um saco de alimentos ou roupas velhas para os irmãozinhos necessitados. Há pessoas que chegam a dar a roupa suja, saída do directamente do corpo, medicamentos e alimentos há muito fora da validade e, se alguma pobrezinho deixa de o ser porque entretanto arranjou trabalho a ganha alguma coisa, comentam: “Já vive melhor do que eu!” Tudo isto acontece porque não há uma pedagogia da dádiva, não foi cultivado o respeito pelo outro que, por ser pobre, é um ser humano com dignidade. Porém, os que conseguem sair da pobreza do pedir são raros. A maioria vai pedir esmola a vida toda. Pior, eles são cada vez mais, a começar pelos que trabalham. É que nos tempos que correm trabalhar não significa ter garantida a sobrevivência. São cada vez mais os que trabalham horas e horas por quase nada. São os outros pobres. Os que se deslocam para o trabalho de fato e gravata, que têm que usar o automóvel, que têm a prestação da casa para pagar, a do carro, a água, a elecricidade, o gaz, a internet e que, depois de apresentarem o IRS nas instituições da caridade, cheios de vergonha, dizem: “Não me sobra para comer.” E se têm filhos, um ou dois, solicitam o apoio social para a escola pois não há dinheiro para o material escolar, pastas e equipamentos desportivos. Mas estes são os que a sociedade pensa que não precisam, os que andam de cara lavada, os de “bons empregos” Quer num caso quer noutro, a pobreza, os mendigos ou os de fato e gravata, são problema político e social, não um problema teológico, como a perícopa muito lucidamente adverte. E o exemplo do perfume é brutal. Estou a lembrar-me de uma reportagem sobre a pobreza, passada em um dos canais televisivos, há uns bons anos, em que se dizia que só o que se gasta em perfumes no mundo industrializado daria para matar a fome em África. Seria? Não creio. Se continuar imutável a organização política em vigor, não há perfumes que cheguem. Além disso, não é à custa de ausências nem de abstinências que a pobreza se combate, mas na luta pela igualdade e dignidade, ou seja, mudança radical das políticas e da economia. Ser governante é servir os cidadãos. Nem tampouco é uma carreira profissional. Pelo contrário, cabe aos profissionais dos mais diversos ofícios, representados no parlamento, lutar pelos interesses das suas classes. É esse o verdadeiro político, só assim é que votar significa eleger os representantes. Representantes que não são eleitos para garantir uma vida ao sol para si próprios, famílias e amigalhaços, ávidos de poder, levar os cidadãos à miséria, encostados à caridade e promovendo-a, em total desrespeito pela cidadania. Dito de outro modo, gabando-se de que o seu povo é um povo solidário, tem muito bom coração, pois está sempre pronto a ajudar os pobrezinhos. São os que estão acima da Lei, que não dão contas da sua má governação, loucos, ávidos de dinheiro e de poder. São os líderes de países eternamente pobres, de governantes igualmente pobres de inteligência, do conceito ridículo de que a felicidade é ter saúde e nada mais. Quanto aos que já não podem prescindir de ofertar ou participar em ceias natalícias de instituições de solidariedade social, dos quais eu ainda, infelizmente, faço parte, com toda a gratidão por tão nobres impulsos filantrópicos, lanço o repto de acrescentar aos cabazes esta mensagem: Pelos os pobres que aumentam todos os dias; pela fétida, perigosa quão manipuladora expressão “politicamente correcto”; pelo tanto de uns poucos e o tão pouco ou nada de muitos; pelos complexos de superioridade de alguns à custa do esmagamento de tantos; pelos desperdícios desrespeitosos e pelo não chega dos desrespeitados, a nossa indignação. E tu, pobre, faz greve à tua pobreza e diz: “Basta!” Grita ao mundo que não queres mais a indignidade de uma esmola, mas o trabalho dignificante e honrado a que tens direito; à liberdade que é tua e só tua; ao contributo para a sociedade que só tu podes dar porque és um ser irrepetível, porque és pessoa. E agora nós, Senhor. Que a caridade caminhe para o fim. Que viva a transitoriedade das coisas perecíveis. Que não seja vista como um processo salvífico, uma luz espiritual ou uma forma de catarse das malfeitorias da indiferença, mas o estender da mão àqueles que, por hora, estão a viver um período menos favorável. Que o perdão de Deus não seja estratificado, esmagado e reduzido àqueles que dão uma esmola, mas aos que lutam por mudança interior, por corações burilados e empenhados num mundo novo, uma nova forma de viver na Terra que é de todos. Que os nossos pecados sejam efectivamente perdoados porque o bem-fazer é tão grande, o empenho pelo mundo é tão esmerado que o humano vive uma transcendência tal que Deus, de facto, só pode perdoar. Eu não quero a Tua gratidão a troco de um saco de compras que fui entregar a uma família ou instituição, porque é natal. Eu não quero o natal dos pobrezinhos, mas o de o derrame de um frasco de alabastro sobre os Teus pés num banquete partilhado com quem não conheço, de qualquer raça ou etnia, numa fraternidade que só o coração cristão é capaz de entender. Recuso-me a aceitar que o outro seja um caminho para mim, que exista para saciar a minha sede de cair nas Tuas graças, que a sua pobreza seja o teste á minha fé. Recuso-me a aceitar ser um/a bom/boa cristão/ã só porque me lembro dos pobres por ser natal, ou em qualquer outro dia do ano. Recuso o alívio de sentir que é missão cumprida roupa usada que dou. Não me salves de nada, Senhor, não me gratifiques de rigorosamente nada por dar este nada no nada que eu sou. Dá-me a força da mudança salvífica, a coragem e a irreverência do descontentamento e da dor profunda de ver crianças sem tecto, de ver esbanjamento e todos os demais excessos. Dá aos/às homens e mulheres a força para acabarem de vez com os refugiados, que todos possam viver nas suas terras, ou em qualquer outro lugar, por vontade própria, e não porque o lugar onde nasceram os expulsa. Dá-nos a permissão de dizer, com o coração transbordante de amor: “Esta é a minha terra, a casa onde nasci! “ou “Esta é a terra que escolhi para viver!” Que as religiões, Senhor, sejam um trabalho de purificação da alma; que se empenhem verdadeiramente na salvação, ofertando a cada crente os meios emancipativos da materialidade e empenharem-se na construção da salvação da miséria, da discriminação de toda a ordem; que tragam Deus para as ruas das nossas cidades, vilas, aldeias e campos; que Deus seja um companheiro das nossas lides, personagem activa das nossas vidas; que tragam Deus para os nossos jardins e parques, a qualquer lugar, por mais recôndito que seja, por mais íngreme. Já não suporto um deus distante, vingativo, guerreiro, ciumento, castigador e intransigente. Quero uma fé livre e alegre, feliz porque empenhada na construção de uma nova fé, arquétipo de um mundo novo. Já não quero orações para pedir a paz, o fim das guerras e da fome, nem o fim de nada. Quero uma oração para pedir a santidade, a pureza, o pensamento livre e puro, desamarrado de condicionalismos de toda a ordem, pois só esse consegue mudar o mundo e torná-lo um espaço universal. Quero sentir que a guerra, a fome, a miséria fazem parte das lutas do quotidiano, e que todos, absolutamente todos, estão empenhados em derrota-las com todas as forças. A caridade é a coisa mais hipócrita que há, mas estamos todos sujeitos a ela, mais do que nunca, pois o regime global é mestre em criar pobres. É o efeito bola-de-neve. Porém, se as religiões fossem o que dizem ser, nada disto faria sentido e a humanidade sentir-se-ia protegida por elas. Margarida Azevedo (1) Trad. LOURENÇO, F., Bíblia, vol.I, Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, Quezal Editores, Lisboa, 2016, p.204.

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