segunda-feira, outubro 10, 2011

A MUNDIVIVÊNCIA DOS NOSSOS AFECTOS

(Continuação)

Passando à análise do que se passa no terreno, vejamos o que nos diz, numa conversa informal, uma professora de História, com dez anos de serviço, a leccionar na zona pedagógica de Lisboa, linhas de Sintra e Cascais, tendo leccionado dois anos no estabelecimento prisional de Caxias.

P - Sei que tens uma vasta experiência com alunos-problema: delinquentes, filhos de pais drogados...

R - Sim, sim. Já sei o que vais perguntar. As causas da delinquência começam com a família. É o que toda a gente diz. E não é mentira.

Mas que família? As famílias estão separadas e, por isso, não as considero família. Mais de 50% dos meus alunos são filhos de pais divorciados e, destes, uma grande fatia são drogados.

Cresce o número dos que vivem com os avós e com as mães. Por outras palavras, há um número crescente que vive sem qualquer contacto com o pai, ou que só o vê aos fins-de-semana.

Por seu lado, esses pais de part-time são demasiado permissivos, dão-lhes tudo... pensam que superam as carências agindo dessa forma.

Quanto às mães, as que vivem sozinhas, umas têm namorados, o que não é bem visto pelos filhos, outras estão sós, sem qualquer satisfação afectiva. A maioria tem problemas financeiros e sentem-se sem qualquer apoio de um homem.

P - Que apoio achas que essas famílias deviam ter?

R -  Em primeiro lugar, a aceitação do estatuto de divorciadas por parte da sociedade e por parte dos próprios familiares. Não está em causa, no meu ponto de vista, o ajudar ou não financeiramente, ou por meio de instituições que pregam a boa moral e os bons costumes. Quanto a mim, a ajuda maior vem de um emprego cuja remuneração dê para viverem com dignidade.

Um outro aspecto, é a falta de uma política decente para a família. A trabalhar-se ao ritmo a que se trabalha, gastando horas em transportes, não é o caminho mais directo para o apoio à família. Para onde vão os alunos que saem da escola à uma da tarde? E não penses que são apenas os do secundário, há crianças de 9 anos que, na parte da tarde, andam completamente à deriva. Essa história dos tempos livres nas escolas é muito bonito para se falar em programas de televisão, mas na prática... é o que se sabe.

Tenho alunos que vivem fora de casa desde os 3 meses, que vêm a família à noite.

P - Estás de acordo com os que afirmam que aquele período pós-parto é fundamental para a mãe e para a criança?

R - Claro. Já pensaste que a maioria das mulheres que são mães são frustradas pois não têm o prazer de ver crescer os filhos, Que os lançam nos infantários de madrugada e os vão buscar à noite, tratados sabe Deus como?

A licença de parto, que deveria ser de um ano, é o que se vê.

P - O que pensas das tão vulgarizadas “novas famílias”, isto é, das famílias compostas por pessoas que vêm de divórcios, que refizeram a vida?

R - É vulgar, debaixo do mesmo tecto, encontrarmos situações, face aos filhos, desta natureza: os meus, os teus e os nossos. Isto significa que crianças sem nada em comum umas com as outras vivem na mesma casa, muitas vezes com origens culturais completamente diferentes. São os filhos dele, sãos os filhos dela, e são os que ambos geraram. Compreendes?

Mas quando estes casamentos dão para o torto... aí é que são elas.

Uma aluna, de 10 anos, perguntava-me, muito aflita: Como é que se chama a mulher que vive com o meu padrasto? Ao princípio não percebi.

Isto é assim: a criança vivia com a mãe e o padrasto. O pai estava sabe Deus onde. Um dia, a mãe fugiu com outro homem e deixou-a com o padrasto. Este refez a vida com outra mulher. Resultado, a criança via-se com uma família que não era a dela. A mulher do padrasto não é mãe, não é madrasta. O que é então? Fiquei realmente embaraçada.

Esta criança era extremamente agressiva e autoritária.

P - E os avós?

R - Por vezes dormia em casa deles, mas diziam que tinham mais netos e, por isso, não queriam fazer discriminações, como se esse fosse o verdadeiro problema. Quem me parece que era discriminada era a mãe da criança...segundo o que pude avaliar do que a miúda me contava, tinha comportamentos que mostravam descontrolo.

P - Sobre alunos indisciplinados, há mais alguma coisa que queiras acrescentar?

R - Não muito mais. Apenas que a maioria deles vem de famílias separadas, ou de famílias muito instáveis. Isto é quase toda a gente; numa turma de 27 alunos, há 20 nestas condições.

Que opções? Ou a mãe consegue viver, e de certa forma aceita, no regime patriarcal, ou é mãe sobrevivente que tenta, com dignidade, dar uma vida limpa ao filho, independentemente da classe social a que pertence... nem que seja uma prostituta.

Sabes que a sociedade cobra muito caro a independência da mulher. Se tiver filhos, está mais exposta.

No caso das professoras, como a profissão é digna, são mais aceites. Parte-se do princípio de que é bem casada, ou pelo menos bem comportada. Embora não se vista como as professoras de antigamente, é essa a imagem que deve dar. Não te esqueças de que o ensino é das profissões em que se está mais exposto.

P - Além da questão familiar, que outras causas estão na base da indisciplina dos alunos?

R - Bem, eu ponho à cabeça a televisão, a banda desenhada e os filmes de um modo geral.

A televisão apela ao sexo pelo sexo, quer através dos filmes e das telenovelas, quer na publicidade. Consumir determinado produto é bom para ser musculado, sensual e, já se vê, atraente. Na televisão tudo se mistura.

O herói da banda desenhada é sempre um justiceiro que pratica ou impõe a justiça de uma forma não convencional, melhor dizendo, chocante para a maioria das sensibilidades. Há sempre um apelo à força e, só muito raramente, à inteligência. E tu sabes que a tendência dos alunos é copiarem os modelos. E quando os modelos não são bons, já se vê...

Os bons programas televisivos, raros, dão a horas mortas. É pena. A vertente educativa da televisão perdeu-se.

P - Bem, confesso que antes de falares da televisão pensei que ias abordar a questão da sociedade. Hoje, parece, não há ninguém que não acuse a sociedade de impor um clima de “salve-se quem puder”. O que pensas disso?

R - Oh, claro!, A sociedade é muito pesada. Não passamos de um bando de sobreviventes. Conseguir acompanhar o ritmo que ela impõe não é nada fácil. A maioria dos professores da minha escola vive sem pachorra para aturar a pressão que cai sobre eles.

Um professor é o bode expiatório de tudo. Se o menino tem más notas, a culpa é do professor; se o menino não estudou, diz que o professor explicou mal a matéria; se o menino não tem interesse, é o professor que não o sabe fazer despertar.

E ainda que algumas destas questões possam ser verdade, o que não é bem assim, o professor nunca é desculpado. O professor não pode errar, não pode estar mal disposto, não pode ter problemas. Esquecem-se de que o professor também tem família, também pode ser divorciado, também pode ter filhos problema.

A sociedade não aceita isso. Ela não está preparada para aceitar que os seus educadores sejam gente que também sofre. Ela apenas sabe exercer uma pressão enorme sobre toda a gente. E os professores, que têm um papel fundamental, sentem-no mais que qualquer um.

P - Já que abordaste a questão dos professores, o que achas que deveria mudar entre eles?

R - Há tanta coisa que devia mudar. Em primeiro lugar deixar de haver discriminação entre a classe docente. Há diferenças entre as licenciaturas, por exemplo EVT (Educação Visual e Tecnológica), os que têm habilitações para dar uma matéria e dão outra, como os de Contabilidade que dão Matemática. Mas isso não é o maior problema. O verdadeiro problema é empurrarem os alunos que ninguém quer, que são cada vez mais, para os professores mais indesejados, ou para os mais novos. Isto leva os alunos sentirem-se a mais na própria escola.

Por outro lado, há um grande número de professores que estão longe das raízes: marido, mulher, filhos; estão longe e ganham o mesmo. Não há motivação.

Depois o Ministério vem pedir que se façam milagres para fins estatísticos... passam os alunos que não sabem ler nem escrever.

O professor é mais um psicólogo, mãe, assistente social. O Professor é tudo. Há uma desvalorização do nosso trabalho de professor. É a lei do safanço, do desenrascanço. A sede de saber está fora de moda. O saber já não dá dinheiro.

Vivemos um período de loucura, podes crer. Os miúdos não têm valores a que se agarrem. Não sei o que fazer, é o que me dizem muitas vezes.
(Continua)
Margarida Azevedo

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