segunda-feira, dezembro 05, 2011

O PROBLEMA DA IDENTIDADE


Nascemos herdeiros de uma mistura complexa de instintos e cognição, uma estrutura biológica elaborada, que se traduzem em alguma informação, conhecimentos relativamente manifestos ou latentes, traços físicos e psíquicos. Porém, mais que ter consciência de possuir alguns resquícios mnemónicos de tais conteúdos, a maior luta do ser humano é, sem sombra de dúvida, querer saber quem de facto é.

A procura da identidade perde-se num pântano nebuloso gerador de fantasias, numa sopa cujos ingredientes razão, sensibilidade, sentimentos, reminiscências se inter-misturam originando valores, tendências, normas, etc. São esses laivos de informação que nos remetem para um suposto saber de uma infinidade de “existências” remotas, as quais estão arquivadas no nosso processo existencial, e que constituem o alvo principal da pesquisa para a resposta a “Quem sou?”

De um ponto de vista da Psicanálise, com estes ingredientes é criado um mecanismo de fuga que, em vez de dar uma resposta, procede antes a uma desculpabilização do eu ao recalcar episódios desagradáveis. Por outro lado, a minha ignorância sobre mim mesmo(a) deve-se à estrutura psíquica, à sua mesma natureza. Isto significa que fomos feitos assim, temos um aparelho psíquico que não suporta a consciência do conhecimento de si mesmo. Será?

Neste aspecto, a religiosidade tem desempenhado um papel preponderante. A procura de quem sou? não tem tanto a ver com a pesquisa sobre o passado psíquico, nem com o facto de sermos capazes ou não de suportar episódios recalcados, caso o pudessemos desvendar, mas com o modo como é ultrapassado o peso da perda do paraíso perdido, uma idade de ouro em que fomos totalmente felizes. A Religião surge como o tal re-ligare que pretende repor a ordem pré-estabelecida, apresentando-se como o único caminho salvador capaz de revelar ao homem quem é. Desta forma, a questão do desconhecido não é relevante, mas sim o retomar a vida de plenitude só possível no seio de Deus. Para isso, basta cumprir determinadas normas, cujo fim é escapar ao pecado.

Projectando o crente para o futuro, a Religião promove a beatitude como a única forma do conhecimento de si: conhecer-me é ser puro(a), isto é, desprovido(a) da capacidade de pecar, logo de deixar de sofrer. Assim, o fantasma do castigo aterrador converte-se no móbil para a modificação intrínseca do crente, cujo fim último é vencer a morte, pois que a pureza é um estado de vida eterna em Graça.

Porém, longe de ser um estado definitivo, o ser beatificado não está isento de voltar a cair. O Bem não é um estado permanente nem irreversível, mas transitório. O puro pode querer ser ainda mais puro e pretender ser igual a Deus. Aí, cai redondo no chão e recomeça todo o processo. Por outras palavras, o Bem não é aceite para sempre, não é uma vivência em que o prazer da Felicidade, uma vez atingido, seja o grande horizonte. Pelo contrário, a ambição é tão forte que consegue habitar nos mais elevados castelos do Bem.

Nesta perspectiva, o que é que não é transitório? O Mal. O Inferno ardente é o local para onde vão os maus, sem hipótese de saída. A nossa natureza, que desconhecemos, parece que gira em torno do temor da Queda, mas não consegue evitá-la, donde o Mal não é uma resultante de querer ser como Deus, uma vez que tal é corrigível pela existência depurativa e purificadora, mas tão simplesmente por se ser mau enquanto oposto ao Bem.

Por outras palavras, querer ser como Deus, na sua duplicidade de Bem e de Belo, é menos grave que cometer qualquer acto mau. Quanto a isso, em Sua infinita bondade, Deus dá ao homem a possibilidade de retomar todo o processo evolutivo. A religiosidade responde, assim, à questão de quem sou: herdeiro da Queda mas não do Mal, porque o Mal pertence a um reino de onde ninguém sai; cair é querer ser o que não é, Deus. Saber quem sou? pertence desde logo a uma exclusão, a saber, não sou nem jamais poderei ser como Deus. É esta a ordem que a vivência religiosa pretende repor.

O Espiritismo, através de uma forma muito peculiar de encarar a reencarnação, tenta acalmar o eu ávido do conhecimento de si mesmo ao acoplar a noção de evolução sem queda. Sentimo-nos confortados por sabermos que no passado fomos muito piores do que no presente. Não perdemos nenhum paraíso, nem houve uma idade de ouro. Pelo contrário, fomos protagonistas de uma realidade terrível, muito longíqua e muito próxima, num mundo muito antigo e num tempo remoto que se prolongou até aos nossos dias e cuja lembrança, por graça de Deus, perdemos ao reencarnar na Terra. Não existe uma desculpabilização nem des-responsabilização do sujeito, no que toca a uma herança do passado, mas há o princípio de que em cada vida o homem reforça as suas capacidades espirituais. A purificação não se consegue no para lá, mas conquista-se vida após vida, em qualquer lado, neste planeta ou fora dele.

Neste ponto, o Espiritismo não pressupõe uma conquista da Terra, como o defendem as Testemunhas de Jeová, mas uma libertação da mesma. Porém, coincidem no facto de crerem que a Terra será para os justos, quando a mesma estiver liberta de todos os males. A diferença está em que, enquanto as Testemunhas crêem que as almas retomarão os mesmos corpos, o Espiritismo defende que os Espíritos viverão em corpos diferentes.

Esse mundo cheio de escolhos mais não é que um substituto do resultado do pecado original dos católicos. A diferença reside no facto de que, enquanto para estes alguém pecou por nós, no Espiritismo somos portadores das nossas próprias faltas, e não das dos outros. Pecámos num tempo imemorial, somos herdeiros desse pecado do qual só nos libertaremos pela fé em Deus e pela prática do bem; no Espiritismo, além do facto de a idade de ouro ou a vida paradisíaca ainda estarem para vir, na Terra, ou já existirem em planos superiores da Espiritualidade, o Mundo da Luz só será atingido após uma infinidade de encarnações, cujo objectivo primordial é escapar aos liames que prendem o indivíduo à Terra, enquanto esta se mantiver no nível em que se encontra actualmente. O Bem não se alcança numa só vida.

Viver, para os Cristãos, é uma catarxis na medida em que se traduz pela procura da luz ou do plano angelical. Porém, a diferença mais acentuada entre o Espiritismo e o restante mundo cristão reside, em suma, no facto de que para a doutrina espírita à pergunta quem sou? a resposta é: um Espírito a caminhar para Deus.

O conceito de evolução segundo o Espiritismo não é o de um sobe-desce, mas um projecto rectilíneo de um menos para um mais, em que a informação adquirida e as qualidades morais do indivíduo jamais se perdem. Por outras palavras, a nossa existênca move-se em torno de conceitos tais como menos infinito e mais infinito, uma vez que, não definindo a nossa recôndita e penúmbrica origem, não vislumbramos igualmente os contornos do futuro deslumbrante que nos aguarda.

O mais objectivamente comparável com esta tese são as Parcas, da mitologia grega, tão cara à Religião e à Psicanálise, Cloto, Laquesis e Atropos. A primeira possui o novelo da Vida, a segunda desenrrola-o e a terceira enrrola-o. Nós somos isso. A cada encarnação abrimos o novelo de fios justapostos que, ao voltar a ser enrrolado, nunca o será da mesma forma, pois que a nova experiência introduziu no indivíduo alterações da personalidade de forma que é outro sendo o mesmo. Cada um de nós contém as três Parcas; num futuro que não se sabe, o novelo não voltará a ser enrrolado.

Desta forma, podemos classificar o Espiritismo como uma doutrina optimista. A cada vida que passa seremos sempre melhores, muito à semelhança da filosofia de Leibnitz para quem nós vivemos no melhor dos mundos possíveis e cada indivíduo é o melhor possível. Aplicada ao Espiritismo, significa que possuímos a potência para a realização de tudo o que viermos a concretizar. O livre-arbítrio, que não é liberdade, é mera escolha dentro de um saco cheio de possíveis.

Vivendo com o espectro da culpabilidade humana, a vida significa redenção, donde o esquecimento funciona como um mecanismo contra a atrofia do progresso. Saber o que fizemos faria perigar o presente que, ao invés de ser uma mais-valia, seria, definitivamente, o caminho mais recto para o chumbo das provações, além de que não conseguiria acrescentar algo à resposta a quem sou?.

Assim, o conceito de esquecimento possuí esta ambivalência: se por um lado introduz o indivíduo na responsabilidade da construção do seu edifício religioso-espiritual, na medida em que é uma benesse, por outro remete-o para uma espécie de mega-arquivo, onde está a informação de milhões de existências, cujo esquecimento é fundamental para o seu equilíbrio no presente. Por exemplo, a terapia de vidas passadas, tão em moda em alguns meios espiritualistas, em Espiritismo é um erro, uma actividade perigosa.

A cada vida, ao pretender corrigir esse passado inconsciente, esquecido, impenetrável e cheio de erros, viver torna-se uma reformulação desse mesmo passado. Dito de outra forma, viver é corrigir. No entanto, há aspectos que podem ter-se repetido mais que uma vez, pois o indivíduo pode ter falhado nas provações da vida, por exemplo, ter-se revoltado contra a sua má sorte.

Posto isto, perguntamos: como aliviar esse peso de um passado que causa tantas dores de cabeça? Cada religião tem as suas propostas, e o Espiritismo não foge à regra. Os ritos entram aqui com toda a sua punjança; pretendendo celebrar uma idade de ouro, lembrar um profeta importante ou agradar aos deuses, temos uma panóplia complexa de interditos e fórmulas.

No Espiritismo há uma transposição do rito para o passe purificador. Há quem chegue a acreditar que há médiuns especiais, muito desenvolvidos, os únicos em contacto directo com Entidades sublimes, logo os passes são mais eficazes. A relação de muitos espíritas com o passe é em muitos casos, semelhante com à relação que muitos religiosos têm com os seus deuses.

Desta forma, podemos afirmar sem grande margem de erro que, tal como a Eucaristia católica lembra a Morte, Paixão e Ressurreição de Jesus, o Passe lembra a imposição das mãos e todas as Suas curas, num objectivo de libertar o crente das negatividades.

Em suma, viver é conviver com o desconhecimento de nós próprios e, lamentavelmente, nem a Ciência, nem a Filosofia nem tão pouco a Religião têm a resposta. Nem sei mesmo se são caminhos. Acho que são ensaios, meras tentativas. Se forem mais do que isso, que Deus me perdoe por as reduzir a tão pouco. Moldam-nos, mas a modificação e a procura do Conhecimento e da Sabedoria, e de Deus, é trabalho pessoal e da Fé.

Viver é pesquisar, procurar a nossa arquê. Somos todos arqueólogos da nossa existência, buscamo-nos, procuramo-nos sem cessar. Mas essa arquê não me parece que seja a de vidas passadas, mas uma essência que nos projecta para um futuro longínquo. Pesquisar a nossa história individual e colectiva não tem a chave-mestra.

Quem sou? é uma pergunta a que Descartes responde “sou uma coisa que pensa”. Nesse contexto, com reencarnação ou sem ela, a procura de mim mesmo(a) é uma questão existencial. Nem a teoria das reencarnações a anula, nem o seu contrário. Estamos num impasse.

Talvez seja por isso que quem sou? não aparece na Codificação. Temos antes a pergunta O que é Deus? Se calhar é mais fácil. Quem sabe? Haja alguém que tenha a coragem de dizer “sim” ou “não”. A nossa existência é um dos nossos grandes mistérios.

“Quem sou?”, eis o grito de um animal que vive de cinzel, perdido no labirinto do universo sem saber onde está.

Margarida Azevedo

Bibliografia consultada

KARDEC, A., Le Livre des Esprits, Les Editions Philman, Marly-le-Roy, 2002, livro 2, cap. IV.

FREUD, Sigmund, Moisés e a Religião Monoteísta, Guimarães Editores, Lisboa.

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