segunda-feira, outubro 24, 2011

NA ERA DA GANÂNCIA


As referências identitárias tais como a nacionalidade, o idioma, a cultura, a família constituem o fundamento da integridade social e política de todo o ser humano, sem excepção. Elas são o palco sobre o qual representamos todas as nossas acções, são a nossa referência, a estrutura causal responsável por uma parte significativa do que somos.

Não raro, porém, entramos em conflito com essa estrutura esquecendo que é dentro da mesma que nos revoltamos, tal como o jovem que diz que o pai está ultrapassado, mas a viver na casa do pai, ou como Job que fala com Deus contra Deus. São os sinais do crescimento, indícios de um ímpeto de liberdade e emancipação absolutamente necessários; a luta contra a injustiça e as discriminações de toda a ordem.

Se assim não fosse, o progresso estaria comprometido, condenado para a eternidade a ser letra morta, perdido entre farrapos a que chamamos ancestralidade. Superar as bases, conferir-lhes novos significados e engrandecê-las de forma a arrastar, positivamente, o mais velho pode não ser fácil, mas é um desafio que se impõe a cada nova geração.

Viver na tradição é viver numa geração a que não se pertence, é hipotecar o futuro, virar as costas à responsabilidade de engrandecer a sociedade mediante o nosso empenho enquanto cidadãos. Contudo, isto não significa anular tudo o que ficou para trás.

Se colocarmos as questões: O que é que a humanidade cresce com a minha presença? Em que medida contribuo para o seu enriquecimento? De que forma exerço os meus deveres cívicos e que legado deixo para as gerações futuras, verificamos que a nota atribuída é fraco.

O empobrecimento dos valores, reduzidos a um número mínimo, a falsa ideia de um mundo onde tudo está feito, pronto, acabado, com fim a anular o indispensável espírito crítico e a criatividade, culminam numa timidez e apatia que fazem perigar o próprio sentido de humanidade.

O mundo não está pronto, está por fazer; caminha numa eterna novidade de que cada um de nós é portador. Há que dizer bem alto às novas gerações que não nasceram num mundo já feito, mas que lhes cabe continuar na sua construção.

Os nossos jovens estão a ser “educados” para trabalhar e adquirir competências. O maior valor dos nossos tempos consiste em tirar um curso qualquer e exercê-lo, ou melhor, ganhar o mais possível. Quem não partilhar deste ideal é perigoso; quanto aos que partilhem, mas noutros moldes e, portanto, não conseguem lá chegar, são os fracos, os excluídos a quem a miséria espera.

O trabalho deixou de ser um caminho para a realização pessoal, o contributo para a sociedade na engrenagem complexa que a caracteriza. A progressão no trabalho deixou de ser o aperfeiçoamento de técnicas e de saberes na base de uma sólida formação ética e deontológica. O curriculum já não significa percurso, corrente ininterrupta da nascente até à foz, limando arestas à sua passagem, desenvolvendo o prazer da mestria de um ofício que deixaria marcas para a posteridade. A formação contínua já não é a consciência desse percurso e da sua real necessidade. O trabalhador talentoso já não vê o seu nome no quadro de honra da fábrica ou da empresa. Os talentos deixaram de fazer falta. Estão obsoletos, e o quadro de honra passou a tentáculo político.

Hoje, a formação contínua do trabalhador é uma falsa formação. Ela é sobretudo um reforço da ideologia vigente, cujas novas tecnologias são o instrumento. Além disso, a formação não garante a permanência do trabalhador no seu posto de trabalho. Facilmente este é substituído por outro em função da idade, da sua maior permeabilidade ao novo sistema laboral, por ser homem ou mulher, ter ou não uma família, ser pai ou mãe. São estes alguns dos factores que influem na permanência e na manutenção do posto de trabalho. Pode morar a duas horas da empresa, pode chegar desgastado ao trabalho com três horas de sono mal dormidas. Nada disso é importante. Aliás, é-o noutro contexto. O cansaço não deixa pensar, não cede tempo para a família, nem tão pouco permite que esta se constitua.

Se ajuntarmos a isto conceitos de conforto sinónimos de luxo, temos o aliciamento num circo que mais cedo ou mais tarde pegará fogo. Ele transformar-se-á em ganância, a que mais docemente chamam protagonismo, onde viver significa exibir. E vale tudo: exibem o carro, a casa, a escola dos filhos, as marcas de tudo e mais alguma coisa. É para isso que vale a pena trabalhar. É o novo conceito de gente, de pessoa e de cidadão, porque tudo o mais não conta. È o novo conceito de trabalhador competente e realizado. É aquele que, quanto ao ter, não diz “Basta!” Porque não consegue, porque não o deixam, porque é demasiado ganancioso.

E o processo irá até ao primeiro ataque cardíaco, na melhor das hipóteses, ou até ao AVC (Acidente Vascular Cerebral). Nalguns casos, raros, terá uma boa assistência médica de que se gaba, porém, os melhores tempos de vida enquanto homem/mulher, os tempos para progredir, ter e viver com uma família, o tempo para a fé estão irremediavelmente perdidos. Não há assistência que lhe valha.

Deus surge como refúgio, e não como Ser Supremo. A pessoa diz que se modificou com o problema, que a vida tomou outro significado, mas esquece-se de que para trás ficou tudo o que de melhor Deus lhe deu e que, a seu tempo, não soube aproveitar. A fé torna-se uma tábua de salvação, fragmentada, o último investimento frágil. Se vier outro problema, é muito natural que surja a revolta contra tudo: Deus, fé, mundo.

O ganancioso não sabe, mas tudo isso fez parte de um episódio doloroso a que chamamos, em Espiritismo, suicídio. Esta noção de suicídio mais não é que o processo social e político em curso que caracteriza a nossa sociedade pos-moderna, o qual não dá mostras de abrandar. As pessoas são aliciadas, manipuladas de tal forma que perdem a noção do que é para si, do que realmente está ao seu alcance, culminando em doença precoce e na morte prematura. Morrem mal amadas, abandonadas e vazias.

A felicidade é uma viagem muito grande, um horizonte sem fim à vista e, portanto, não pode estar aprisionada ao luxo, à vaidade tola, à anulação de si próprio e do outro. A felicidade só é possível mediante o prazer de estar com o outro, no reconhecimento de dignidades, apetências, caminhos…

É importante não confundir progresso com anulação das bases; ninguém chega a catedrático sem passar pelos bancos da Escola Primária. Progredir não é anular, mas acrescentar, desenvolver, expandir.

Os valores de hoje não têm forçosamente que anular os de ontem. Poderá e deverá haver novos valores, mas isso não significa total supressão dos antigos. Os velhos podem ser acrescidos de mais sentido, mais e maior abrangência significativa. No entanto, o problema não reside na dicotomia velho versus novo, mas na capacidade de resposta que os novos valores têm para nós, como os dos nossos avós tiveram para eles. Eles tinham os valores como um fundamento ao qual iam beber na procura de soluções. Tinham muito claro o que é de César e o que é de Deus, isto é, homem é homem e sagrado é sagrado. Hoje, tudo se confunde. Crendo-se deus, perde-se o homem. Não se pode confundir a fonte com o que dela jorra. E esse é que é o problema.

Margarida Azevedo

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