segunda-feira, outubro 31, 2011

Na ausência de Direitos Humanos mostramos a verdadeira identidade: Bárbaro/a


“A superioridade moral e política de uma sociedade livre e democrática consiste justamente em tratar os seus inimigos como pessoas com direitos fundamentais.”

(Kai Ambos. OA, p.82)

A temeridade criada e mantida pelos media, a construção de lobos humanos devoradores de cordeiros ingénuos e desprotegidos, eis alguns dos fantasmas com que a sociedade pós-moderna é confrontada, independentemente da estrutura social e política, dos índices económicos e culturais, bem como de factores raciais e étnicos. Jamais a dicotomia bons/maus foi tão incisiva quanto hoje, jamais a criação de barreiras com fim a delimitar territórios morais foi tão colossal.

Por outro lado, sendo a Internet uma forma de acesso a todo o tipo de informação, ela é também um meio de diálogo entre culturas, geradora de contágios entre elas, uma forma de derrubar o muro entre nós e os outros. Quem pretender estar mais e melhor informado já não procura este ou aquele jornal, ainda que especializado em determinada matéria. Hoje procura-se tudo no computador. A notícia está no ar, o idioma já não é problema, o tempo e o espaço relativizaram-se. Cabe a cada um escolher, ajuízar, fazer a triagem do que lê.

Porém, numa tentativa de quebrar a aproximação entre cidadãos, as relações internacionais, mercê de políticas discriminatórias manipuladas pelos interesses económicos, inventam buracos negros com discursos impressionáveis, criando, sub-repticiamente, ídolos e dogmas. O objectivo é derrubar a “ingenuidade” de acreditar em tudo o que se vê na Internet. Ensombrando as consciências e criando, não apenas o medo, mas garantido a sua manutenção e desenvolvimento, essas políticas têm adeptos garantidos pois todos querem fazer parte dos bons.

Assim sendo, inventam-se monstros sem quaisquer direitos, no pensar do senso comum que, sem se dar conta, vive manietado e iludido pelos perspicazes manipuladores das mentes e, consequentemente, de opiniões. Gerando o pânico, facilmente se cai na tirania, mascarada de moral puritana que visa banir mais que esclarecer e, consequentemente, ela própria geradora de infurtúnios tão ou mais perigosos e drásticos quanto os que diz combater.

Bin Laden e Kadafi são dois bons exemplos. Em nome de uma espécie de “limpeza social”, que visa a expurgação do mal, e em falsos conceitos de honra e falsas representações da fé, foram imolados na praça pública por multidões enfurecidas, convertendo em heróis os autores dos disparos. O crime torna-se virtude, a irracionalidade movida pelas palavras de ordem o móbil para a concretização de actos que, se praticados individualmente, seriam considerados crime. Nas multidões tudo se altera perigosamente: a fé, o senso de justiça, do dever, a punição, etc. Estes são matéria-prima facilmente manipulável, barris de pólvora que transformam cidadãos comuns em potenciais assassinos, sob a influência de líderes poderosos. “Os crimes das multidões resultam geralmente de uma sugestão poderosa, e os indivíduos que neles tomaram parte ficam depois convencidos que obedeceram a um dever.” ( BON, Gustave Le, Psicologia das Multidões, p.100).

Se acrescentarmos o exasperado sentido religioso, o homicídio colectivo passa a exorcização do mal, impondo crenças em nome de princípios salvíficos. “Convictos da importância do seu papel, começam por organizar uma espécie de tribunal e imediatamente surgem o espírito simplista e a noção de justiça não menso simplista das multidões.” (idem, p.101).

Não estão em causa religiões, estas são usadas como meios para atingir fins, um camuflado cuja acção é idêntica em qualquer parte. Está em causa o Direito, a Lei, a Justiça, a Ordem. E é do direito de cada um, é da Lei, é justo e faz parte da organização de qualquer nação democrática que um ser humano seja julgado em sede própria. “Os terroristas, incluindo Osama Bin Laden, são seres humanos. Assim sendo, são titulares de direitos humanos, entre os quais se incluem o direito à vida, a tratamento humano e a um processo penal justo.” ,afirma Kai Ambos (in: Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 81/82). Na ausência destes requisitos fundamentais dos direitos dos cidadãos, caímos na Inquisição, na perseguição aos Judeus, nas limpezas étnicas...

Em nome da boa moral, no pensar de alguns, criadora de imunidade e portanto justificadora de todos os actos classificados como expurgatórios, desculpam-se e justificam-se decisões bárbaras, tão deshumanas, ou mais, quanto as cometidas pelos suspeitos. Ora, “um Estado de Direito trata também os seus adversários com humanidade. Prende os terroristas e leva-os a julgamento. (…) Matá-las sem processo judicial equivale a uma execução fora da lei, (...)” (KAI AMBOS, p.82, o.c.). No caso de Kadafi, segundo alguns analistas políticos, entre eles Marcelo Rebelo de Sousa, a execução popular deveu-se ao facto de este “saber demais”; quanto a Bin Laden “(...) segundo muitas opiniões, ele era apenas um líder espiritual da Al Qaeda, sem influência sobre operações militares concretas.” ( idem, p.83).

As multidões, o meio mais arriscado e perigoso de tomar decisões, porque super-excitadas, advogam em nome da honra, da pátria ou da instauração de uma nova organização política que, na irreflecção que as caracteriza, irá repor a ordem e a justiça perdidas. Esta retórica tem levado, ao longo da História, à capitulação de governos, à queda de regimes, à exoneração de dirigentes, como também à condenação de muita gente e a actos de vandalismo. Aconteceu nos tribunais populares das antigas colónias portuguesas, em que as pessoas eram fuziladas imediatamente a seguir ao julgamento popular, sem serem ouvidas, aconteceu em Portugal quando multidões irromperam pelas herdades, tomando as terras aos legítimos proprietários, que se trancaram em casa temendo o linchamento que lhes parecia iminente, porém, nalguns casos, não escapando da ira os animais domésticos.

Um cidadão consciente, um país democrático ou um líder político ou religioso só o é verdadeiramente quando respeita a integridade do outro e o encara como ser humano com direitos e deveres. Não se podem legitimar execuções sob o pretexto de banir um perigo. Num estado de direito, os suspeitos têm que ser ouvidos e serem justamente julgados. Igualmente, não são legítimas as defesas baseadas em códigos de valores. A vida de um ser humano está acima de qualquer valor, não é discutível nem negociável, tal como o tribunal não é o lugar onde se julga a vida de alguém, mas os actos concretos.

A fé mal dirigida é das coisas mais perigosas que há. Aquele que a possuí torna-se cego e irracional, de tal forma que se julga a voz directa de Deus, agindo e pensando em Seu nome. Esse quadro alucinado da fé transforma o crente mais pacífico no terrorista mais bélico, sob o obscurantismo de falsos sentidos de verdade.

Esquecendo-se de que Jesus foi uma vítima das multidões, de interesses políticos bem como das disputas e intrigas entre líderes religiosos, os cristãos continuam a agir como estes. Estão longe de uma religiosidade que se pretende pacífica, baseada no perdão infinito.

Os cristãos não podem arrogar-se como os únicos detentores da verdade, nem pretender que Jesus seja igualmente aceite por todos os homens/mulheres. Fora de nós há um mundo imenso para conhecer, do qual a fé não pode ser um elemento impeditivo. Só assim foi possível que Jesus tivesse ficado maravilhado com a fé do centurião romano (Mt 8: 5-13; Lc 7: 1- 10), acrescentando “ que muitos virão do oriente e do ocidente, e assentar-se-ão à mesa com Abraão, e Isaac, e Jacob, no reino dos céus;” (Mt 8: 11). Esta visão universalista da fé não é uma conversão, mas a congregação da irmandade de todos/as os/as filhos/filhas de Deus.
Margarida Azevedo

Bibliografia
AMBOS, Kai, “Os Terroristas também têm Direitos”. OA, Boletim da Ordem dos Advogados. n.º 81/82, Agosto/Setembro, 2011, Lisboa, pp. 82-83.
LE BON, Gustave, Psicologia das multidões, Publicações Europa-América, Mem Martins, s/d, cap.I, II e IV, pp.21-39 e 47-50.
Bíblia Sagrada, trad. João Ferreira de Almeida, Sociedades Bíblicas Unidas, Lisboa,1968.

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