O QUE E COMO LEMOS?
Nada é mais
difícil do que ler. As nossas conclusões, sempre provisórias, são o nosso
cárcere se elevadas a verdades absolutas. A vertente selectiva do nosso
cérebro, não raro perigosa se não estivermos devidamente despertos para a sua acção
limitadora e redutível, cria departamentos, estruturas dependentes do meio
social e religioso, (etc.), as mais fáceis de detectar, e da nossa vivência
interior, isto é, o arquivo sem fundo da nossa memória, dos nossos genes.
Qualquer bruxo
de renome ficaria siderado com a análise de um leitor perante um qualquer
texto. Mediante a interpretação, qualquer ouvinte experiente define o âmbito
intelectual em que o leitor se move, os conhecimentos que possuí, aspectos da
personalidade. Na leitura somos nós, apenas nós, com tudo a que somos
permeáveis. A leitura é uma forma de nudez.
Não é descabido
afirmar que ler é um acto mais psicológico que intelectivo. A sensibilidade
sobrepõe-se, muitas vezes ou quase sempre, infelizmente, aos conhecimentos
adquiridos. O gostar de uma determinada matéria já é uma condicionante, muito
embora seja simultaneamente o móbil da investigação. É uma espécie de peão que
com capa não anda e sem ela não pode andar. Esse brinquedo filosófico tem
aplicabilidade em uma infinidade de situações existenciais, nomeadamente esta que
estamos a tratar.
Se por um lado o
amor é um sentimento que faz dizer muitas coisas descabidas e ver o negro em
tons rosa, numa agradável deturpação do real, também é a mola impulsionadora da
descoberta.
Por exemplo, quando um cientista afirma que
uma ave possui plumagem exactamente da mesma cor do seu habitat, para se
camuflar dos predadores, pergunta-se: A ave sabe-o? Ela transportou-se a esse
ambiente para se proteger? O que sabemos é o que é ou o que dizemos ser? A ave
não deixa de estar em perigo, nem a plumagem a protege do predador perspicaz.
Em que ficamos? É o amor, na sua vertente deturpada que anseia por protecção,
ou na sua vertente impulsionadora de descoberta que se apaixona e espanta com a
realidade à sua volta?
Se se transpuser
esta dinâmica para os Evangelhos, cuja leitura segue idêntica estrutura, nós
dizemos que tudo o que deles se afirma, ou quase tudo, é o que pretendemos que
o texto diga, e não o que lá está. É o amor desejoso de protecção que fala. Mais,
é o amor e a fé, um outro condicionante, pois ler um texto na base da fé não é
de todo lê-lo sem ela. Daí a dificuldade, para muitos, em compreender e aceitar
o Jesus histórico e a respectiva leitura dos Evangelhos segundo o método
histórico-crítico.
Há ainda outra
barreira, a saber, aspectos ideológicos. Aquilo que deveria ser uma libertação
é, para muitos, factor aprisionante. Daí a pobreza das ideologias, porque
limitadoras, quando não sujeitas aos factores de crescimento que lhes devem
estar implícitos.
Ora,
os Evangelhos estão sujeitos a tantas interpretações quantos os homens e as mulheres.
E tem que ser assim. São as nossas experiências que leem, as nossas dores, as
nossas interrogações, os nossos surtos, ímpetos, furores, desejos, sensualidades…
É claro que queremos uma resposta, e temo-la, na medida em que o momento
reverte a razão em voz universal.
Impõe-se
saber ouvir o outro. O texto cresce tão mais quanto a troca de ideias for um
imperativo para a inteligibilidade dos seus conteúdos. Com isso se democratiza
o texto. Por outras palavras, ouvir o outro é democratizar a leitura.
Há leres, não há ler. Sem o contributo do
outro caímos nas nossas incongruências, amarramo-nos perigosamente aos nossos
sentidos e razão, tornamo-nos o centro universal do nosso umbigo.
Há quem não
esteja lembrado que Deus não precisa das religiões para nada, nem das igrejas,
nem das ideologias; não precisa de ritos nem de doutrinas. Somos nós que
precisamos e por isso os criámos.
Muitos
afirmam que a pluralidade de interpretações empobrece o sentido da mensagem de
Jesus de que os Evangelhos são a voz. Puro erro. Defender que devia haver
apenas uma interpretação seria aprisionar o texto a um parecer, fazer dela uma
interpretação perfeita, totalitária, um autoritarismo. Seria afirmar a maior
estupidez: ”Não preciso de reflectir ou
pensar, tenho quem o faça por mim. Sigo um grande líder!”Os grandes
ditadores começaram assim.
É natural que as
pessoas se agrupem por simpatias interpretativas. As igrejas dentro das
religiões são disso o mais vivo exemplo. Porém, isso jamais poderá ser um
processo de estagnação. Se tudo evolui, à excepção de Deus, essas leituras
doutrinárias não escapam à regra. Todos são chamados, ou pelo menos devem
sê-lo, à responsabilidade de estudar afincadamente as suas doutrinas, com
espírito crítico e honestidade intelectual.
Por vezes
acontece que determinado local é mais propenso a um tipo de trabalho
interpretativo do que outro. Aí múltiplos factores se conjugam: porque sujeito
a idênticas influências, por tradição cultural, ou até por semelhança
vivencial. Isso não significa que o texto seja propriedade desse grupo. Por
exemplo, podemos dizer que o Vaticano é a pátria do Evangelho? Não, é a pátria
de determinada organização dentro do Cristianismo, a qual gira em torno de
leituras de ordem diversa, de vivências, de ritos. Assim, o Vaticano é a sede
do mundo católico, não do Evangelho, nem tão pouco se pode dizer que seja a
sede de todas as suas interpretações. Qualquer que seja a igreja ou doutrina,
ela assenta sempre na pluralidade interpretativa que, quanto mais divergente,
maior a proximidade junto dos crentes, maior a capacidade de resposta às suas
questões.
E
ainda que houvesse um país muito santo, muito puro, muito seguidor dos
preceitos evangélicos, ele jamais seria a pátria do Evangelho, porque a
mensagem de Jesus será sempre universal, as bem-aventuranças serão sempre para
aqueles a quem se dirigem, porque serão sempre os doentes que precisarão de
médico, porque a Cruz é universal, porque uma santidade imposta nunca será uma
verdadeira santidade, nem a pureza nem os preceitos, porque crer em Jesus, como
um exemplo em tudo o que há de melhor, é liberdade, é virtude, é sabedoria.
Tudo isto, e muito mais, infinitamente mais, significa Cristo. Daí a afirmação
de Paulo, bastante complexa, ininteligível, “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” (Bíblia de
Jerusalém)
Margarida
Azevedo
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