O SOFRIMENTO NÃO TEM ÉTICA
Quando vai ao médico certamente não lhe interessa a sua
vida privada. Não quer saber se é cumpridor da Lei, se é violento no lar, se é
ateu ou crente; se é maledicente, se furta, se é preguiçoso ou se tem um feitio
intragável. Quando vai ao médico a única coisa que lhe importa é que ele
consiga resolver o seu problema de saúde.
Com os videntes, bruxos, virtuosos, médiuns, ou o que de
mais lhes queira chamar, a situação é
semelhante. Quando as pessoas vão solicitar os serviços relacionados com o
Além, o oculto, o misterioso, o sagrado, o divino, ou o que de mais lhe queira
chamar, também não querem saber dos
comportamentos do dito cujo. Apenas pretendem que o seu problema seja resolvido
definitivamente.
O
caso João de Deus, a par de muitos outros semelhantes que haverá por esse mundo,
é o resultado do aproveitamento do sofrimento alheio, que não carece de grandes
habilidades para ser facilmente manipulado, e do instinto de sobrevivência
segundo os parâmetros, não da ciência dos homens mas da ciência de Deus
representada e transmitida por um suposto ser muito especial, escolhido para o
efeito. Mas não são apenas os chamados virtuosos ou bruxos que são
manipuladores. Estes são muitas vezes utilizados para camuflar outras
realidades mais incisivas, isto é, enquanto se denunciam, e com razão, os seus
aspectos mais obscuros fazendo grande alarido, calam-se idênticas práticas
levadas a efeito por organizações religiosas (veja-se o escãndalo da pedofilia,
por exemplo).
Urge
compreender que o sofrimento é o estado mais perigoso do ser humano. Por isso
não tem ética. Mas não só. Os que estão no outro lado da barricada também nâo.
Os líderes religiosos, tal como os videntes, chamemos-lhes assim, são
igualmente humanos, igualmente
sofredores e, como tal, sujeitos às mesmas regras. Um indivíduo pode ser um
grande medium curador, simultaneamente um crápula que isso não impede ninguém
de solicitar os seus serviços curadores porque ele pode ser bom naquilo que faz.
Por
outro lado, o sofrimento fragiliza, torna a pessoa vulnerável, exposta e
frágil. No auge do sofrimento aceita o inaceitável, adere ao irracional,
torna-se estranha perante si mesma. O sofrimento cria fantasmas levando, não
raro ao homicídio/suicídio na perspectiva de anular definitivamente o mal. No
auge do sofrimento são tomadas as piores decisões, cometidos erros
irreversíveis, são feitos pactos com o ilícito se preciso for. Por um filho
doente um pai ou uma mãe fazem tudo; na expecativa de curar um cancro é
percorrido o mundo inteiro; na esperança de uma palavra poderosa que chegue ao
céu e traga o tão desejado emprego é dado tudo o que for pedido. Neste ponto,
quem será que tem autoridade para dizer”Eu
jamais faria tal coisa!” Se cada pessoa puser a mão na consciência verifica que não precisa de grandes
reflexões para compreender que em situação de grande sofrimento vai até ao fim
do mundo.
Mais.
Sem o sofrimento o que seria dos videntes e das religiões? Será possível
dissociar a problemática da fé, da crença, da religião da do sofrimento? Em última
análise, para que serve a religião, ou para que serve o vidente? Todas as
sociedades têm os seus videntes como têm as suas religiões. Todas possuem
aquelas pessoas muito especiais que recebem fórmulas mágicas de como manipular os
materiais da Natureza, fazer mézinhas, intervenções “cirúrgicas”, curar
enfermidades muito complexas e estranhas.
A
relação sexual não escapa a esta vivência. Não porque o crente se queixe de
perturbações do foro sexual, pode tê-las ou não, mas porque a sexualidade
também tem sido encarada como um elemento de referência das curas e das
religiões. Não é raro um vidente dizer a uma mulher que a cura só será
definitivamente concretizada quando esta tiver relações sexuais com ele a fim
de receber a sua energia curadora. E, geralmente, não é uma só vez. Do ponto de
vista religioso, surgem práticas idênticas. O que era a prostituição dos
templos na Grécia Antiga? Qual o papel das pitonisas, além da prática da
adivinhação, senão o da prática sexual para transmitir forças sobrenaturais?
Qual o papel de líderes religiosos dos nossos tempos com uma miríade de
mulheres sexualmente ao seu dispor? Podemos não saber desde quando existe a crença de que a sexualidade é transmissora de
poderes, mas não estaremos longe da verdade se dissermos que é tão antiga
quanto a existência dos próprios videntes, líderes religiosos, os chamados directores
espirituais, etc., a sexualidade utilizada para fins catárticos e exorcísticos é
uma tematica que está e estará sempre em aberto. Mas primeiro urge sarar
preconceitos.
Uma
coisa, no entanto, convém esclarecer: Não confundamos práticas culturais
tendentes a dissipar-se com o passar do tempo, com tráfico de tudo o que é
ilícito justificado com a desculpa esfarrapada do tipo “Eu não obrigava ninguém!”A vulnerabilidade das pessoas, por um
lado, ou a própria actividade mediúnica, por outro, jamais podem ser um
justificativo para a falta de educação cívica e espiritual.
Resquícios
de um passado espiritual ainda muito presente jamais se podem sobrepor ao
avanço civilizacional onde os conhecimentos científicos e a educação mediúnica
estão ao alcance de todos.
Muitos
espíritas fanáticos diziam que João de Deus era espírita, só que não o sabia, dadas
a maravilhas que realizava. A sua actividade só poderia ser devida a um ser
superior e, sempre que alguém punha em causa a sua prática, tal como quem
escreve estas linhas, era tido como herege. Agora, perante as horríveis
descobertas que vieram a lume, calaram-se. Nem um pio. Aqui D´El –Rei que isto
não é comigo. Pois é, a fragmentação do movimento espírita, a crendice que o
invadiu, a falta de leitura de Kardec e a ignorância bíblica (quer do Antigo
quer do Novo Testamentos) têm construído uma panóplia de seres tão superiores
que facilmente se desmoronam à velocidade do relâmpago. Aqui, não podemos
deixar de lembrar o grande S. Paulo com o seu texto espectacular 1Cor 13: 1-13.
Esses espíritas palradores esquecem-se de que a mediunidade é transversal ao
ser humano; mediuns de cura há muitos, oradores de cátedra ainda mais, fama
mundial e ribalta nem se fala. Mas oração, estudo aprofundado e livre, empenho
na sua modificação interior, espírito de sacrifício, altruísmo, preocupar-se em
cumprir os Dez Mandamentos, estudar os profetas, desenvolver a auto-crítica,
etc., isso fica para depois.
Quanto
à mediunidade propriamente dita, e partindo do princípio de que houve efectivamente
curas em que João de Deus foi medianeiro, é de lamentar que as Entidades que
descem a este planeta para trabalhar em prol do nosso bem-estar tenham que se
sujeitar a tais pessoas. Os que estão cá deste lado esquecem-se de que
essas Entidades também evoluem com o
trabalho que realizam junto de nós. Obedecem a ordens superiores de que não
temos a menor noção. Infelizmente, a falta de respeito pelas Entidades
generalizou-se.
Tudo isto nos remete para questões muito
incisivas, entre as quais a maior de todas será sempre: O que é, efectivamente,
a mediunidade? Mas também qual o peso da educação na actividade mediúnica; porque
algumas pessoas que manifestam tanta fé não conseguem o que a outras é dado
fazer, tais como João de Deus, por exemplo? Não consta que Teresa de Calcutá
fizesse operações, nem que as curas realizadas por Jesus fossem sobrenaturais,
dito por ele mesmo, supostamente, pois elas estão ao alcance de todo aquele que
tiver fé (Mt 17:20; Jo 14:12).
Acreditar
nos homens mais do que em Deus é o maior risco do ser humano. O resultado está
à vista de todos.
Margarida
Azevedo
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