JESUS;MESSIAS PARA OS CRISTÃOS,NÃO PARA OS JUDEUS III
“Por
conseguinte, não existe qualquer certeza de que Jesus se considerasse a si
próprio como portador do título de “Messias”. Pelo contrário, é improvável que
o tivesse feito…” (SANDERS, E.P.,
p.302).
Se quisermos ser
fiéis aos textos, os evangelhos não oferecem uma resposta clara para a questão
de saber se Jesus era ou não o Messias. Pelo contrário, sentimo-nos sob um céu
nublado cujo debate está em aberto: Mt 26:64;
Lc 22:67, no conjunto, envolvem Jesus em mistério; excepção para o
evangelho de Marcos no qual é posta na boca de Jesus uma clara resposta: “Eu sou.”( 14:62), não menos misteriosa.
Em João a questão nem sequer surge.
Quanto aos
grupos cristãos, mercê da literatura em que navegam, Jesus, como o Messias, não
é igualmente visto do mesmo modo: para uns, veio para remissão dos pecados do
mundo; a Encarnação aconteceu pela graça do Espírito Santo e Maria continuou
virgem após o parto; Jesus é Deus, um dos três elementos da Santíssima Trindade,
o Filho, porque Deus é Uno e Trino. Para outros, Jesus não teve corpo físico, mas
fluídico, dada a sua elevada transcendência espiritual. Outros, ainda, não
reconhecem em Jesus Deus, nem o nascimento por imaculada conceição, nem que tivesse
corpo fluídico; é um homem como os outros, com os mesmos sentimentos, vivências,
sexualidade, porém, de uma estirpe espiritual superior, médium directo de Deus;
igualmente, rejeitam a Trindade (o Espiritismo segue esta última perspectiva).
Desta forma,
impondo um Messias essencialmente da fé e descurando o Jesus histórico, os cristãos devem repensar qual foi o papel de Jesus. E para isso já temos resposta clara: veio pregar o reino de Deus,
nos sinópticos; pregar-se a si próprio, em João. E pergunta-se: É isso o Messias?
Quer no contexto sinóptico, quer
joânico, sim, com um novo conceito, uma nova definição: Messias
sofredor/salvador.
Enquanto no
Judaísmo o Messias vem após uma preparação prévia, tornando a sua vinda o
resultado de um merecimento, pressupondo uma noção mais justa e assertiva da
Lei; no Cristianismo é o próprio Messias que vem trazer a remissão dos pecados,
um código de conduta, um universo de esperança, uma nova vivência da Lei, pregando
um banquete num outro mundo reservado aos desafortunados da terra.
Desta forma, o
Cristianismo construiu uma imagem de Deus como Pai exclusivamente, ou quase,
dos pobres, dos renegados, dos infelizes e dos excluídos da sociedade. Criou a
imagem de que os ricos já são felizes que baste, e como tal já não precisam de
outra felicidade; a fé em Deus tornou-se numa contraposição do materialismo, o
reino de Deus como um lugar paralelo à vida terrena, reduzindo a existência
humana a uma dualidade: a terra e o céu,
Porém, isso é
impensável para uma fé livre, segundo Paulo, por exemplo (ver Gálatas). Deus
não é Pai porque há infelicidade. Deus não pode ser uma construção imaginária,
mágica e contemplativa dos sofredores. O sofrimento é um problema humano, e é
dentro do humano que tem que resolvido. Por outro lado, ser feliz na opressão ou
na tortura, porque está ciente de que Deus está dentro de si, é uma perspectiva
como outra qualquer, egoísta até à medula, muito boa para quem confunde fé com
sadismo, e para quem perspectiva a fé como um acto heróico, gerador do
fundamentalismo; estar feliz porque fez feliz alguém, partilhou do que lhe
sobra, essa sim é a verdadeira felicidade. Ser um ombro nas horas incertas é um
acto de grande dignidade humana, momento singular de altruísmo.
Esta imagem, baseada
na exploração humana, refém da ignorância, no seu pior, criou um mundo de
pobrezinhos e de caridadezinha, cada qual permanecendo igual a si mesmo,
reduzindo a conquista do reino de Deus ao receber ad aeternum. Esta binaridade, vida terrena e reino de Deus, numa
luta constante pela supremacia de uma sobre o outro, não tem fim à vista. Ora,
não estará o reino de Deus aqui e agora? Não será a materialidade um dos seus
fundamentais elementos, também? É apenas uma questão que não vamos desenvolver
por agora.
Desta forma, em
nome dos desafortunados da terra, Jesus é o Messias prometido do AT, o salvador
que vai estabelecer uma nova Aliança. Ora, assim sendo, é uma figura que tem
origem nas tradições sírias e egípcias, no helenismo, muito difundido entre a
diáspora judaica e pelo povos do mediterrâneo, em geral. Trata-se de um Messias
semelhante ao das correntes gnósticas, carregado de elementos estrangeiros ao
Judaísmo e ao qual este se impunha vivamente, entre a ala intelectual de
Jerusalém, muito embora estes não estivessem de todo imunes à sua influência (o grego era a língua franca, na altura, é bom lembrar).
Ora, sendo o
Deus de Jesus o mesmo do do AT, facto a ter sempre presente, muito embora haja
quem chegue ao ponto de pensar o contrário, infelizmente, as comunidades
cristãs emergentes, mercê das suas influências pluralistas, estavam a dar o
mote para uma religião mais aberta. Deus já não é apenas o Deus da aliança com
os judeus, mas uma divindade, conceito oriundo das correntes gnósticas de então
(elas mesmas bastante pluralistas nos seus princípios), com espírito mais
aberto e universalista. A estes grupos cristãos, ou melhor, judeu-cristãos, são
admitidos pagãos judaizantes, circuncisos e incircuncisos (motivo de grande
polémica entre Pedro e Paulo, além das questões referentes à Lei e alimentação
kosher), sendo eles mesmos influenciados pelos atraentes cultos de mistérios, que
vão ser introduzidos no movimento cristão, num sincretismo que chegava às
comunidades judaicas da diáspora. Do lado de Jerusalém, aceitar tal situação?
Nem pensar.
Em termos
práticos, os convertidos a este novo movimento são judeus, judeus helenizados, pagãos, pagãos
helenizados, essénios, essénios de ambientes gnósticos, grupos baptistas,
etc., e respectiva introdução de novos
conceitos e naturalmente nova linguagem. Jesus, o Messias salvador, é o
representante e fundador deste novo movimento, uma referência unificadora. Ou
seja, o Messias não é, obrigatoriamente, um descendente da casa de David, (ver
a linhagem de Jesus segundo os Evangelhos), um rei, mas um salvador em sentido
lato.
Há, no entanto,
uma insistência em fazer de Jesus o Messias
Quando e como é
que triunfa o Messias salvador? No o ano 70, com a derrota de Jerusalém pelas
tropas imperiais romanas. O ano negro ano 70 leva à reflexão sobre a
identidade do Judaísmo e sua sobrevivência sem terra, rei, Templo. Que judaísmo
é este? O Judaísmo farizaico, que também era o de Jesus.
A partir de
então, o judaísmo vai sobreviver em torno de uma memória, da Tora e dos
profetas, na Sinagoga, onde o rabino é o orientador da comunidade, com funções
pedagógicas e de congregação. Acontece uma fusão entre essa reflexão e o
agudizar da esperança messiânica.
Quanto ao
Messias Jesus vai impôr-se como o salvador da humanidade oprimida, não apenas
na condição de pobreza material e exploração laboral (numa linguagem actual),
mas ele próprio o sofredor crucificado e Ressuscitado, numa apologética do
reino de Deus como um mundo de bem-aventuranças para os que persistirem na fé,
independentemente da classe social. O Messias sedimenta-se no coração dos
crentes, mais do que num espaço geográfico.
Esta diferença
entre os dois conceitos de Messias, o descendente de David, político, e o
salvador é um erro que a história se tem encarregado de provar, tão
simplesmente porque a diferença é conceptual. “Jesus vive para o Pai, imita o Pai, transmite o que o Pai quer que
transmita, vive só para a imitatio
Patris. No seu tempo, os judeus não tratavam a Deus por Pai, mas sobretudo
por Rei e Senhor.” (NEVES, pp.. 196-197). À”lógica” de alguém superior que
vem dirigir o seu povo politica e/ou religiosamente, o Messias-Rei, surge uma
nova “definição”, a do Messsias-Sofredor, um Crucificado e Ressuscitado, num
desafio jamais pensado, que culmina numa extensão do significado de rei. Com
Jesus, o divino torna-se humano e o humano é torna-se divino. Por outras
palavras, na contingência do humano sofredor também se transmitisse a vontade
de Deus. São as leituras e vivências intolerantes e imprecisas que reclamam
para si a exclusividade de uma coisa que, à partida, é inqualificável. Nem
Judeus nem Cristãos têm a mínima ideia do que verdadeiramente é o Messias.
Mais, quando os
cristãos afirmam que Jesus é o Messias prometido do AT, à luz das Escrituras
cristãs, estão precisamente a a firmar a unicidade desse Messias. Que, para
uns, ainda não tenha vindo, que, para outros´, já tenha vindo, pensamos que se
referem ao mesmo: o que já veio tem características do que está para vir e
vice-versa. Alguém pode afirmar, com toda a certeza, que há uma clara oposição
entre ambos? Não poderemos afirmar que o Messias-Jesus deu um testemunho de
Deus incompleto, apenas aquele que foi perceptível à época? O que significa,
por exemplo, esta passagem de João, “Se
me amardes, observareis os meus mandamentos. E eu pedirei ao Pai, que vos dará
outro auxiliador, para que fique convosco até sempre; o espírito da verdade,
que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece.”(14: 15-17);
ou ainda, no mesmo capítulo, “Mas o
auxiliador, o espírito santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará
todas as coisas e lembrar-vos-á tudo o que eu disse.”(vv.25)..
Esse auxiliador
joânico não poderá ser um Messias todo amor, paz e entendimento? Não estará em
conformidade com uma natureza sábia e consciente, voz do Altíssimo? Para quem
virá esse auxiliador? Para os que muito se amarem. Estamos noutro discurso, com
novos objectivos: Quem vier dar continuidade ao trabalho profético de Jesus,
que vier ensinar todas as coisas, vai, mais uma vez, e como não, lembrar o que foi dito: Amar
incondicionalmente.
Não estamos a
falar de ficção. O Messias segundo história e segundo a fé é uma realidade espiritual
identitária da esperança de um povo, extensível à humanidade inteira. O
auxiliador poderá ser muitas coisas, rei, líder, conhecedor de todos os
mistérios, dominar todas as ciências, mas terá que ser, inevitavelmente, um
filho de Deus que, com sapiência e autoridade, que pregará o amor sublime a que
Jesus deu corpo. Esse Messias é um ser cósmico.
Há que perceber
que cada época é responsável por uma tipologia literária que confere aos
conceitos significação muito própria. Assim, hoje, há quem diga que há um
Messias da fé, da história, da salvação, da libertação. É facto que pode ser
tudo isso, mas, acima de todo e qualquer qualificativo, o Messias de Amor,
transversal à humanidade inteira, oposto ao politicamente correcto,
religiosamente correcto, socialmente correcto é, certamente, uma realidade que
ultrapassa o nosso entendimento.
O messianismo não
confunde fé com esquizofrenia, puritanismo fútil, suicídio lento da fé
sacrificial, o homicídio da indiferença. Está e estará sempre envolvido na história,
na panóplia de acontecimentos que giram em torno de grandes momentos de crise e
revolta, subjugação e esperança. O Crucificado e Ressuscitado deu o mote para a
independência do pré-conceito, impôs-se pela sua mesma pregação, milagres e
singularidade profética, de tal forma que foi rosto de um universo de esperança
para judeo-cristão e pagano-cristãos à procura da felicidade suprema.
Em suma, será
Jesus o Messias, segundo as Escrituras, AT e NT? Deixamos ao/à Leitor/a a
resposta segundo a sua fé.de qualquer forma, atendendo à nossa natureza e à
singularidade profética de Jesus, a Ressurreição é o monumento teológico que
identifica o Cristianismo, inaugurando o novo conceito de Messias:um
Crucificado que ressuscitou.
Por outro lado,
na grande temática que é o messianismo, a fé e a esperança confundem-se
objectivando algo que é seminal no ser humano: a crença de que alguém, vindo
directamente de Deus, terá poder para abolir para sempre o sofrimento. Este é
que é o grande móbil. Será Jesus esse protagonista?
Tomemos a advertência de Carreira das Neves: “(…), as Escrituras Gregas (Novo
Testamento)referem de maneira clara e indirecta a pessoa de Jesus como o Messias
prometido do Antigo Testamento. Mas o que era claro para os escritores dos 27
livrinhos do NT, a começar pelos quatro evangelhos, não o é da mesma maneira
para a exegese moderna. E os exegetas judeus contestam, igualmente, esta
interpretação. O que não é objectivamente claro consiste na determinação de quem
é Jesus de Nazaré, de forma realmente objectiva e de forma objectivamente determinada. O mundo profético e messiânico do AT evoca pessoas, tempos,
geografias, sempre de maneira indeterminada. O cristão não pode afirmar de
modo objectivamente histórico: o profeta A ou B, seja ele Isaías, Miqueias ou
Zacarias referiu, nos seus textos, a pessoa de Jesus de Nazaré que devia
aparecer alguns séculos depois. Foi o acontecimento dessa pessoa histórica com
tudo o que disse e fez que levou os evangelistas, demais hagiógrafos, são
Paulo, a escrever o que escreveram. Descobriram, a partir da fonte
“jesuânica”, o seu espelho no AT.” (idem, pp.188-189).
Temos a certeza
de que o tema ficou pela rama, dada a sua extensão e profundidade. No entanto,
para aquele que O espera ou para quem já Ele veio, o Messias é um filho de Deus
no cumprimento de uma promessa consoladora. Para nós, cristãos, até hoje, Jesus
foi quem melhor a representou. Mas a porta não está fechada. Manda o bom senso
que nos ouçamos uns aos outros. Ninguém é superior a ninguém e Deus é o mesmo
para toda a humanidade.
Por outro lado, fazer
uma abordagem ao Messias Jesus divino e salvador, à semelhança de tradições
siríacas e egípcias, numa tentativa de minimizar o seu papel, ou fazê-lo a
concretização de profecias do AT, é erro gigante na medida em que não se está a
falar de exclusivismos religiosos, temas aprisionados nas respectivas liturgias,
mas da universal natureza do ser humano, isto é, para lá das tradições, para lá
dos pormenores teológicos, chegados ao grande tema “Messias”, todos, mas todos,
estão igualmente envolvidos, e essa é que é a grande riqueza deste tema: o seu
natural universalismo.
Margarida Azevedo
Bibliografia
NEVES, Pe. Carreira
das, Deus existe?,Editorial Presença,
Lisboa, 2013, Cristianismo,
pp.184-205.
SANDERS, E.P., A Verdadeira História de Jesus, Editorial
Notícias, Cruz Quebrada, 2004, cap. 15, A
forma como Jesus encarava o seu papel no plano de Deus, pp. 297-310.
Bibliografia
consultada
Bíblia, vol I, Novo Testmento, Os Quatro Evangelhos,trad.
Frederico Lourenço, Quetzal, Lisboa, 2016.
ROPS, Daniel-, O Povo Bíblico, Liraria Tavares Martins,
Pôrto, 1945, III A Vida Interior da
Comunidade, itens: O Messianismo,
pp. 345-351; Quem será o Messias?,
pp. 352-357.
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