quinta-feira, junho 16, 2022

UMA MOCHILINHA E UM ANIMAL DE ESTIMAÇÃO

“A raça humana terá que sair da Terra se quiser sobreviver. Stephen Hawking * “Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?” Mt 12: 48 A loucura é o móbil das grandes transformações. O que seria a vida sem essa alavanca para a expulsão da zona de conforto (expressão tão interessante), sem os impulsos delirantes? Esses momentos tanto podem ocasionar impressionantes picos de lucidez, como serem a fonte de horrores. O problema, porém não é esse, mas até quando a loucura se irá impor como o grande móbil. Até quando a razão irá continuar a falhar, a coerência; até quando a avareza da ambição deshumanizante será justificada pelo passado, pela História que é reescrita sem fundamentos consistentes, pelo efeito de uma memória que lembra o passado como exclusivamente um mal?! Falamos tanto de experiências ditas metafísicas como de limpezas étnicas, ideologias políticas e religiosas homicidas, prontas a abater tudo o que se lhes opor em nome de um super-poder de que só os avaros são capazes. Os outros, os anónimos, os que pagam com a vida, numa fusão entre realidade e imaginário, peões no silêncio próprio de quem está no terreno e é protagonista a sério, caiem rapidamente na esperança psicológica de que isto vai acabar depressa, que algo milagroso vai acontecer, que Deus a tudo provê e que vai matar os maus. É nesses momentos que se veem cair por terra as grandes e belas teorias, calam-se os discursos e máximas, moralidades, éticas, doutrinas religiosas de toda a ordem, políticas nem se fala. Tudo cai, findam as pregações. Destroem-se os símbolos, significantes e significados confundem-se, fecham-se os livros, param as investigações. Resta a Arte. O ser humano perdeu o sentido do importante, do indispensável como uma virtude. Até perdeu o sentido da doce ignorância no facto incontestável de que não é capaz, porque não está ao seu alcance, de ter conhecimento de tudo o que se passa no mundo, nem em tempo real nem em diferido. Ainda que esteja munido do melhor dos telemóveis, do computador mais rápido, o mundo total não lhe é possível porque a realidade é outra coisa. Não o conseguir tornou-se uma angústia baseada na dependência: da máquina que sabe tudo; do limite na procura de se ilimitar; da entrega total à nova escravatura como a melhor das bem-aventuranças. Mas o outro sou eu, para o eu que é o outro; não estamos no tempo, somos tempo; não estamos no mundo, somos mundo. Se há um que desmorona, desmoronamos todos. De repente, pelos motivos mais variados, deixamos tudo: por problemas de alterações climáticas, regimes políticos totalitários, escassez de recursos, nomeadamente, água, terrorismo, guerras quando e onde menos se espera. Neste inferno dantesco, à rapidez do relâmpago, tudo começa a arder. O mundo e a vida mostram-se exactamente como são: uma casca de ovo. Os haveres tombam por terra em cinza, a casa desmorona-se. Tudo fica para trás: os projectos, os desejos, as contas bancárias, as férias de sonho; a pele seca ou oleosa deixou de ser um problema, o amaciador do cabelo já não faz falta, uma humidade no tecto da sala já não tem importância alguma. Tudo fica reduzido a uma mochilinha com um pouco de nada, ao animal de estimação; proteger a família e fugir… para onde não interessa. É o trágico nu e cru a sorrir daqueles que pensam que têm alguma coisa, que são alguma coisa, que sabem alguma coisa. É urgente a implementação de um padrão de valores real, uma fé ecológica, uma paz com a Natureza. Mais urgente ainda implementar o civismo, o equilíbrio, estabelecer normas que a todos cheguem. Suplantar interesses avaros de tudo querer só para si, do sadismo de ser indiferente à miséria com o objectivo de reduzir o outro a nada. O Cristianismo pica pedra há 2000 anos a pregar milagres, a construir santos, o que dá dinheiro para alguns grupos, na suposta procura da resolução transcendente do que só o humano pode resolver na sua materialidade. Por que está o mundo a revoltar-se contra ele, reescrevendo, e mal, a sua história? Porque a sua doutrina, os evangelhos e a vida de Jesus são totalmente incompatíveis entre si. Criou-se um fosso entre os textos e a prática religiosa; outro entre os que dirigem e os crentes, cuja prática e objectivos não falam a mesma linguagem. Não é de moralidades que o Cristianismo precisa, já chega de falácias. Precisa-se, para ontem, de fraternização, universalização, Amor. Alfred Loisy disse que Jesus pregou o Reino de Deus e o que apareceu foi a Igreja**. Interessante. Condenações, homicídios, impunidades, super-poderes, política e influências sem fim. Ainda hoje, em Portugal, se um grupo espírita quiser registar o Centro espírita, ou uma instituição de acção social, filantrópica, vê-se em papos de aranha. A maioria são chumbadas. A discursividade cristã, dos alguns cristãos, não se impôs pela resistência ao Mal, mas criou outro mal: um colégio sacrificial como forma de o combater, tipo luta de titãs. Andar com uma pedra no sapato ou chicotear-se não é nada agradável. Porém, se com isso for prometida a conquista do céu para sempre, quem o não fará? Lamentavelmente, ninguém se lembrou de apedrejar a mentira e as calúnias, os enredos e intrigas politiqueiras, ninguém se lembrou de chicotear a indomável inveja, o ciúme ou o ódio. Quanto aos planos sacrificiais, estes não surtiram efeito e a deshumanidade apenas tomou outro rosto, vestiu-se com outras cores, porque ainda não se queimou o medo, nem destruiu o egoísmo do eu sacrificial em prol da partilha libertadora, a começar num respeito total pelo corpo, templo do Espírito. Por mais e maiores que sejam as razões políticas para a guerra que está a acontecer na Europa, ela representa acima de tudo o chumbo do Cristianismo. Onde está o que tanto pregam nos púlpitos, arrogantemente como verdades universais, mas que, na prática, não passam de rudes formas de fé? O cristão jamais deve pactuar com interesses económicos escusos. O económico faz parte da vida como a fé. Têm muito em comum, isto é, carecem de vigilância atenta, crítica e reflexão. Se isso ainda não acontece, então é porque o Cristianismo ainda não existe, tão simplesmente porque ainda não foi implementado o amor universal como a única forma de paz estável, o Reino de Deus ainda não é o valor máximo, a linguagem de Jesus uma utopia. As florestas ardem, os animais extinguem-se, as guerras dizimam, o sofrimento impõe-se e fala mais alto. De mochila às costas de parcos haveres e com muita esperança, de animal de estimação como a companhia fiel, aí se vai correr mundo. Para algum lado se há-de ir, a pernoitar como as toupeiras, debaixo da terra, em caves e búnqueres. Os oportunistas, esses, estão felizes. Jogam em todas as frentes: inflaccionam os preços dos produtos, traficam mulheres e crianças, escravizam tudo o que lhes aparecer pela frente, impunes. Impõe-se cruamente como o valor máximo: “Vão-se os anéis, fiquem os dedos,”. Nada mais a propósito. A tragédia da injustiça tornou o mundo peregrino à força. Não porque procura Deus em outro lugar, lá muito longe, mas na procura da salvaguarda da vida. Também não é, consequentemente, na procura da imortalidade, porque essa não pertence à Terra, mas na terra, à procura do prolongamento da vida na imortalidade do Bem, pois essa luta já faz parte da Terra, ainda que incipiente, residente algures no coração de um voluntário só voluntário, apenas humano, crente ou não em Deus, mas de certeza crente na humanidade que ainda é possível salvar. Nesta fusão entre rico e pobre, a oração é o que resta no traço que é comum a todos: sobreviver. Deixar a casa, o trabalho, a escola, os hobbies, enfim, é entrar no vazio e descobrir novos sentidos da vida noutros rostos, com outros idiomas, novas paisagens, novas famílias. Os lares abrem as suas portas, os corações escancaram-se, o espanto de um amor que se desconhecia manifesta-se nos sorrisos e nos abraços dos desconhecidos. O conceito de família expande-se, efectivamente. “Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?”, já não é apenas uma abstracção, mas uma vivência bem real numa espiritualidade bem visível num pacote de bolachas ou numa tigela de sopa quentinha no outro lado da fronteira. O vazio vai-se preenchendo. Basta apenas desprender-se, desvalorar, despojar-se do seu que é uma falsa posse. A guerra cria a ressurreição, o ressurgir em qualquer outro lugar, em espírito ou em corpo, transportando na mochilinha os haveres materiais e espirituais, parcos mas é o que há. Quem sabe se nós, ao reencarnarmos aqui, não seremos também refugiados, fugidos de algum lugar sombrio, de um Adamastor fero e medonho, à procura de acalmar a sede em uma fonte de água cristalina, preferindo o desconhecido e a tempestade à monstruosidade impiedosa?! Somos seres que vimos de algum lugar, perdidos no tempo, em fuga, não tenhamos dúvidas, para quem as entranhas da terra ainda parece ser o mais seguro. Não admira, é dela que somos feitos, e por isso só ela nos pode acolher. Margarida Azevedo *https://brasil.elpais.com **https://www.dn.pt

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