sábado, abril 29, 2023

O PERDÃO DE JESUS II

 



            O psicologismo calculista do sofrimento como mola evolutiva é revelador de que há um aperto na alma, na fé e na racionalidade, enfim, por dificuldade em aceitar que é tão difícil explicar o sofrimento como o perdão. A maior parte das vezes desculpamos em vez de perdoar, o que já não é mau, tudo depende da intenção com que o fazemos. Por exemplo, em espiritismo, desculpam-se os actos do outro por pena, porque ainda vive na ignorância, pobrezinho/a, quanto às suas raízes, os tais fundamentos perdidos na noite dos tempos e que ninguém sabe, mas que os espíritas sabem.

            Com isto se tem desenvolvido a desculpa da desculpa: desculpei-o/a porque é um/uma ignorante do passado. Ora isso não é perdão, mas o seu oposto. Tolentino Mendonça lembra: “O perdão não é desculpar. A desculpa é uma coisa, o perdão outra. A desculpa é uma coisa racional; é olharmos para uma pessoa que nos ofendeu e tentar compreender as razões e as condicionantes que ela tinha…(teve problemas graves na infância, não lhe foram dadas possibilidades que outros tiveram, sofre o abandono e falta de um contexto estável e protetor…). Isto é uma desculpa. É a procura racional das razões que, certa maneira, podem iluminar o ato de ofensa. Mas ainda não é o perdão.” (1)

Ele/ela sofre porque ignora totalmente que é o/a construtor/a do seu viver. De facto, somos nós os construtores do nosso percurso, mas com as características do humano e muito humano. Tudo o que nos acontece não poderia ser de outro modo porque somos como somos, porque é esta a nossa natureza, é este o nosso nível evolutivo, quer biológico quer espiritual. Temos que conseguir, se quisermos passar a um patamar superior, ultrapassar a desculpa, laica, pagã, ateia, e lutar por conseguir alcançar o perdão, a que só uma fé emancipada e livre pode subir. É aí que se situa o perdão de Jesus. Os perdoados não são escolhidos, mas são eles que se escolhem mediante uma fé inabalável em Deus e na prática do “vai e não tornes a pecar”.

Contrariamente, generalizando o que muitos afirmam, é por falta de conhecimentos do que chamaria arqueologia espiritual que o mundo está como está. Esquecem-se que se hoje somos de um país amanhã seremos de outro, se somos de uma cultura numa vida seremos de outra noutra, raça, etnia, língua, gostos, tendências, aptidões, etc. Isto é, uma pessoa pode encarnar em um país com leis, práticas sociais e culturais que nada têm a ver com aquele/s em que viveu anteriormente. Até podem ser totalmente incompatíveis com a sua ancestralidade, apenas é uma nova vida que vai começar. Por outro lado, mesmo que reencarne onde já viveu, isso não significa que se identifique com esse lugar, em todos os aspectos ou parcialmente. Esse lugar pode ter mudado de tal forma que já nada, ou muito pouco, será o mesmo. Há uma explicação, tem que haver, para os nossos passos na vida, só que nós não sabemos qual, e isso é uma graça divina, eu diria mesmo uma forma de seguir em frente sem pesadelos, sem sobressaltos, sem passagens bruscas e inconsequentes. Conhecer o passado seria viver artificialmente. Uma Entidade responde claramente a Kardec:

“Por que o espírito encarnado perde a lembrança do seu passado?

O homem não pode nem deve saber tudo; Deus assim o quer na sua sabedoria. Sem o véu que lhe oculta certas coisas, o homem ficaria ofuscado, como quem, sem transição, passa da obscuridade para a luz. Pelo esquecimento do passado ele é mais ele mesmo.” (2)

 

             A vida não pode ser encarada como uma perseguição de algo que corre atrás de nós. Isso é uma autêntica obsessão. O que se passou há centenas ou milhares de anos está-nos vedado. Esse natural oculto é o maior perdão de Deus, perdão que caracteriza a vida como um conjunto de possibilidades e de possíveis. Temos possibilidades na medida em que somo dotados de dispositivos e mecanismos que nos permitem sobreviver em condições adversas, físicas e espirituais numa simbiose perfeita. Por exemplo, o Povo Escolhido viveu exilado no Egipto e não perdeu a sua identidade, muito pelo contrário. Havia uma força unificadora e dinamizadora que jamais o deixou cair, apesar das naturais vacilações. Mediante essas possibilidades ofertadas por Deus, torna-se possível evoluir, possível aprender, possível querer ser melhor, possível mudar de vida, possível amar, possível mudar o rumo existencial. Enfim, é possível a esperança no dia de amanhã, nem que seja centenas de anos mais tarde.

Há que empurrar o passado para o esquecimento, caso contrário, viver tornar-se-ia numa luta permanente contra uma forma de maldição, uma acção poderosa de um fantasma voraz todo-poderoso. Se assim fosse, de nada serviria o arrependimento, falar de perdão, de misericórdia, do poder da oração, e cair-se-ia inevitavelmente no fatalismo. As possibilidades e os possíveis perderiam todo o sentido.

            Há quem se queixe de que tem um obsessor desde nascença. É possível. Mas ele só irá até onde Deus o permitir, e até onde vai a nossa fé, a oração, a nossa prática social, o modo como estamos na vida. Um alcoólico ou um mentiroso dificilmente se verão livres do seu obsessor pois que as suas práticas de vida só o atraem. Mudando de vida, o obsessor enfraquece, e o caminho abre-se ao divino. Nada existe maior que Deus.

A maior barreira contra as negatividades será sempre o amor como força poderosa, a única capaz de anular as crenças, tanto em penas eternas como em perseguições ferozes. Até porque a protecção de Deus não faria qualquer sentido, uma vez que há uma condenação de que é impossível escapar, aconteça o que acontecer.

Porém, nós também somos obsessores, e mais vezes do que pensamos. São os juízos de valor, os (pré) conceitos, as ideias feitas, a teimosia em permanecer na inércia e opor-se à mudança evolutiva, o apego aos títulos, o ridículo da ilusão de que tudo pode, tudo e mais alguma coisa, tendo-se por superior… Há até quem viva como se não fosse morrer um dia. Nós somos os nossos perseguidores, obsessores terríveis de nós mesmos, atraindo tudo o que de mais negativo possa existir do plano espiritual. Quantas vezes somos demónios portadores de outros demónios tão selvagens quanto nós?!

            No séc. XIX pretendia-se combater a teoria católica do fogo do inferno, hoje a das penas com data marcada; combatia-se a mediunidade espectáculo de teatro, hoje combate-se o desconhecimento de que a mediunidade pertence a toda a gente; combatia-se a pobreza como mau uso do dinheiro nos tempos de outras vidas, hoje combate-se a pobreza como um problema nosso (como já o disse Jesus), do presente, isto é, não há pobres porque há karma, há pobres porque há egoísmo, cinismo e falsa fé em Deus.

            O determinismo, negro e pessimista, existe nas cabeças de cada um de nós; é característica de quem ainda não sabe amar. O que é o perdão e para quê pedi-lo a Deus? Queremos ser perdoados de quê e para quê? Se o perdão consiste em uma oportunidade dada por Deus para vir à terra pagar os nossos débitos kármicos, confundindo-se com a pena de talião (dito de outro modo: Fizeste-as, hás-de pagá-las), em que o nosso viver estás totalmente pré-determinado, então onde fica a necessidade de melhoria do ser humano e do amor incondicional? A grande possibilidade de voltar à terra é uma graça divina na medida em que se torna possível repor uma ordem na desordem que nós criámos, ordem que é toda amor. Vimos para aprender a amar. Pagar uma dívida não significa purificação, pode significar um alívio para o devedor, mas não elevação espiritual. A grande força ao arrepio do espírito de perseguição é o arrependimento sincero e verdadeiro (Lc17: 3-4)

            (continua)

            Margarida Azevedo

 

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Referências

(1) MENDONÇA, J. T., Pai-Nosso que estais na Terra, Paulinas, Prior Velho, 2014, XI, Uma Decisão Unilateral de Amor, “…ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO”,  O que o Perdão não é, p.122.

(2) KARDEC, AL., Le Livre des Esprits, Les Éditions Philman, Saint-Amand-Montrond, 2002, cap. VII, Retour à la vie corporelle, Oubli du passé, perg. 392, p, 151. Trad. M. Azevedo.

(1)   Ver pergunta n.º459.

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