segunda-feira, dezembro 29, 2008

MORTE É FELICIDADE XXX

Breve Apontamento sobre a Morte no Popular Português
(Continuação)

a) o ritual fúnebre

O rito fúnebre e o luto são, no entanto, uma forma de expressar que a morte não apaga de todo aquela presença, mas que apenas afastou “definitivamente” o indivíduo da comunidade, garantindo que ele não vai manifestar-se aos vivos. Desta forma, o rito é ambivalente. Ele “reenvia” o morto para o eterno descanso, a pátria dos mortos (o que é uma felicidade para ele), isto é, como vimos anteriormente, mata o morto ao garantir que ele não volta, mas mantém-no vivo criando a esperança de que ele um dia regressará em plenitude. Para isso é necessário não contrariar a vontade do morto sob pena de lhe retrair liberdade causando-lhe distúrbios e instintos de vingança. Por isso, o que o falecido pretendeu que se fizesse após a sua morte é sagrado.
Daqui se depreende que a morte não apaga a memória. Aliás, a morte, no Baixo Alentejo, tem, como iremos ver, uma componente pedagógica. Ela visita as pessoas, batendo-lhes à porta a altas horas da noite, fala com elas, exige-lhes o cumprimento de ritos, e até chega a perdoar ofensas caso o faltoso se mostre verdadeiramente arrependido. Ela ensina a viver em conformidade com a natureza, isto é, dentro da simplicidade, da humildade e do cumprimento dos deveres. Quem não cumpre, arrisca-se a ter uma morte prematura, sem direito a gozar a vida, deixando mergulhados na tristeza e luto muito dolorosos os que se amam, ao separá-los.
Assim, as comunidades agrárias, em seu contacto mais próximo com a natureza, geram considerável conjunto de fórmulas, verdadeiras epopeias das quais a personagem Morte é protagonizada pelo homem, animal incoerente, o único que precisa dela para se redimir. Isto significa que a morte é uma outra pessoa, alguém imaginário mas representável, unicamente figurado pelo homem e advém de forma sábia absolutamente detentora dos segredos da felicidade.
Por outras palavras, sente-se, no popular português desta região, que a morte é passível de representação enquanto geradora de ritos, o mesmo é dizer sentimentos, sensações, aspectos que fundamentam a congregação, reunião, partilha.
Podemos igualmente reflectir sobre o facto de quão feliz é aquele que morre, como aquele que vive. O primeiro porque vive no mundo dos felizes, aquele que se transportou para lá; o segundo porque tem consciência de que é perseguido por uma sombra que o observa, obrigando-o a mudar de atitude(s) infinitas vezes ao longo da vida. E assim se define a morte como mudança com fim a um bem sempre maior.
Fechar os olhos é, assim, uma forma simbólica de expressar que alguém deixou de existir. Não uma inexistência total qual niilismo, mas que já não existe no mundo da incoerência, da treva ou do erro. Fechar os olhos ou apagar-se é sair de um mundo ao qual deixou de pertencer, tornar-se pó, voltando à terra e fundindo-se com ela.
Ir ao cemitério é ir visitar os entes que estão de olhos fechados, apagados, “parcialmente mortos” e que vivem na Eternidade, mas que um dia (daqui a muitos séculos) despertarão novamente, voltando a povoar a terra. Visitar a tumba é fazer-se ouvir pelo falecido, expressar-lhe mais de perto que se partilha desse desejo.
As Testemunhas de Jeová, à semelhança de algumas leituras mágicas dos contos de fadas, afirmam precisamente que os corpos dos justos se erguerão de suas tumbas, reabrirão os olhos no Dia do Juízo e governarão a Terra para sempre. Voltar do mundo dos mortos é trazer a paz, o saber e o ver diferentes, mais mansos e pacíficos que estes que por agora temos.
Para o Espiritismo, que bebe parte considerável do seu manancial doutrinário no populismo, a morte é despertar no outro lado da vida, obtenção de um ver que no estado de encarnado não é possível, ou pelo menos não o é com a clareza e a objectividade que só a morte confere.
Por consequência, também se diz em Espiritismo que a morte é um simples fechar de olhos para este mundo, um virar-se para a outra realidade paralela que nos observa e interfere nas nossas decisões.
A propósito desse populismo, coexistem duas tendências dentro da doutrina espírita, opostas mas complementares e perfeitamente articuladas: a primeira, basicamente, é uma vertente que tem como objecto a manifestação do desejo de domínio e protecção face à influência das forças maléficas, muito enraizada nas comunidades agrárias; a segunda, mais elaborada, intelectual, tem como tarefa a interrogação e explicação científicas, a partir dos conhecimentos adquiridos na formação académica, extensíveis ao que vulgarmente se entende por conhecimentos científicos não convencionais. Ambas têm como base a formação ética, isto é, os preceitos do Evangelho, e não podem existir de per si. São dependentes e interagem uma com a outra de modo a estabelecerem um equilíbrio entre acontecer e conhecer.
Terminado este parêntesis, reentremos no popular português, na província em questão, onde são precisamente defendidos estes pontos de vista, mas com uma teofania muito própria. A Morte é uma divindade que se manifesta, uma outra razão, fala com o moribundo, ou com a sua família, ridicularizando os receios destes, assim como a todos os processos mágicos que se inventam, alimentam e desenvolvem para a combater. Por vezes pede rituais para depois troçar deles.
Esse levar a ridículo é voz de uma justiça fecunda, perfeita e intransigente, porque possuidora de uma racionalidade singular. Por exemplo, o ridículo dos receios da morte, com tudo o que os compõe, é pertença de todas as classes sociais, coisa que a Morte-razão não conhece. A Morte ridiculariza os processos de adesão, crença e manifestação afectiva que os “outros” vivos manifestam para com ela. Como exemplo, fiquemos com uma história do universo popular alentejano “A Morte e o Príncipe”, muito contada aos serões de lareira.

Era uma vez um jovem e belo príncipe, mas muito vaidoso, que estava à beira da morte. Não sabendo já o que fazer, pois tinham vindo mágicos e fadas de todo o lado, cada qual com seus preceitos infalíveis, diziam, mas que não davam resultado algum, o rei deu ordens a todos os mensageiros do reino para que partissem à procura dos melhores curandeiros que encontrassem. Ordenou mesmo que nenhum deles regressasse sozinho, sob pena de grande castigo.
Os mensageiros assim fizeram. Cada um partiu para seu lado à procura do curandeiro. Mas nunca mais chegavam, e o príncipe definhava de dia para dia.
Até que uma noite de grande tempestade, chuva intensa, frio e vento de nortada, e estando já o Príncipe mesmo nas suas últimas horas de vida, alguém bateu à porta
_Quem é? _ perguntou uma aia.
_ Eu sou a Morte e venho buscar o menino Príncipe.
_ Oh! _ exclamaram todos, principalmente o rei e a rainha, porque não tinham mais filhos _ Vá buscar um qualquer jovem do reino, que os há bem feios e tão pobres que será uma benção levá-los.
_ Não! Eu quero o menino Príncipe.
O rei toma-se de coragem e pergunta:
_ O que é que a Morte quer que lhe ofereça em troca da vida do meu filho? Pode pedir-me o que quiser, eu sou o rei deste reino.
_ Não quero nada. _ responde a Morte. _ Não preciso dos vossos tesouros, nem de terras do vosso reino. Mas já que me dá a escolher, eu não vou de mãos vazias. Se quiser salvar o menino Príncipe, então ele terá que, à meia-noite, ir dar um beijo no rabo do burro do padeiro. _ e dizendo isto retira-se.
_ Oh! _ voltaram a exclamar todos _Que vergonha! O menino Príncipe, que tanto tem, vai escapar da morte com um beijo no rabo do burro do padeiro!!
Mas, como não havia mais nada a fazer, as aias levantaram o jovem Príncipe da cama, agasalharam-no, pois teria que atravessar todo o jardim do palácio até chegar à casa do padeiro, que ficava no outro lado. Cumprida a missão, o Príncipe regressava ao seu leito
Isto aconteceu durante mais duas noites até que, finalmente à terceira, o Príncipe ficou curado e a Morte não mais apareceu.
Só que o Príncipe, habituado a troçar dos meninos pobres do reino, e a usar e abusar dos seus poderes de futuro rei, continuava na mesma: vaidoso, intransigente e mau. E assim, ao ir brincar pela primeira vez após a doença, disse aos outros meninos, exibindo-se, que vivia num palácio e que eles eram os seus subalternos, que ele tinha, no fim de contas, poder sobre as suas vidas. Só que estes responderam-lhe:
_ Mas foste tu que, para te livrares da morte, tiveste que dar três beijos no rabo do burro do padeiro. Não nós!
E sem dizer nada, o menino Príncipe foge envergonhado.
No outro dia, ao ir brincar com as crianças pobres, disse-lhes que tinha os mais belos tesouros do mundo, ao que estas deram a mesma resposta e ele voltou a fugir envergonhado.
No terceiro dia, não se dando ainda por vencido, disse aos meninos que tinha as mais belas roupas, feitas de tecidos estrangeiros, bordadas a ouro e da cor das estrelas. As crianças não ligaram, voltaram a dar a mesma resposta, e ele voltou a fugir do mesmo modo.
Entretanto, o Príncipe tornou a ficar doente, ao que todos pensaram que era por causa do seu mau comportamento, e provavelmente da Morte que ainda não se tivesse ido embora de vez.
Só que agora, ao ficar doente de novo, o Príncipe começou a reflectir no que se havia passado. Pede às aias que, ao levarem-no como de costume a cumprir tão estranha exigência da Morte, procedam de forma diferente. Antes de ir dar o beijo no rabo do burro, à meia-noite, queria primeiro perseguir o vulto da Morte. Estas recusaram, dizendo com firmeza:
_ Não se pode perseguir a Morte, nem jamais alguém tentou fazê-lo. Nunca ninguém a viu e escapou com vida. Os que a viram, não voltaram para contar como ela é. A Morte esconde segredos terríveis! – exclamaram aflitas.
No entanto, acabaram por aceitar dada a insistência do rei para que acedessem ao pedido do filho, uma vez que este poderia ser o seu último desejo. As aias, contrariadas, lá aceitaram a exigência do menino Príncipe, e deixaram-no ir sozinho perseguir a Morte.
Assim que a Morte se retira, após repetir a já habitual insólita exigência, o Príncipe persegue-a. Como o seu cavalo era mais veloz, conseguiu apanhá-la e, ao tirar-lhe o capuz negro que lhe cobria a cabeça e o rosto, qual não é o seu espanto. Em vez de uma velha horrível, de voz trémula e ar medonho, vê uma bela e atraente jovem, não mais que uma das crianças, que ele supunha pobre como as outras, mas que afinal revela-se uma linda princesa que por magia se tornava criança, disfarçada de mendiga, e da qual ele tanto havia troçado.
Apaixonaram-se, casaram, foram muito felizes e, rendido ao bom coração da jovem princesa, o Príncipe nunca mais foi vaidoso.
A esta hora ainda lá estarão a comer pão com melão.
(Fontes orais: Úrsula Teodoro e Eufrásia Janeiro . Pias, concelho de Serpa)


DESEJO A TODOS UM FELIZ ANO NOVO COM MUITA PAZ,SAÚDE E AMOR.


Barbara Diller

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