segunda-feira, abril 25, 2011

A MUNDIVIVÊNCIA DOS NOSSOS AFECTOS

(Continuação)
1. O amor é um sentimento enganador

“É verdade que os amantes concordam que são mais doentes de espírito do que lúcidos, e que estão cientes da falta de bom senso, da desordem do seu pensamento e da incapacidade de se dominarem.” (PLATÃO, 1981, pp. 22-23).

Aprendemos, segundo os parâmetros da fecunda, teórica e impraticável coerência dos mais velhos, ou no interesse das regras sociais, que a escolha da pessoa por quem nos apaixonamos ou com quem vamos viver deve ter em consideração determinados requisitos. Geralmente esses requisitos obedecem a regras de interesses, pois que os apaixonados desconhecem o bom senso, o que só por si justifica o facto de haver tanta gente a quem a sorte, pelo casamento, bateu à porta.

“Se fosse uma pessoa de juízo não teria tido tanta sorte”, ouve-se com frequência. Porém, sem que o saibam, as pessoas que o dizem pronunciam uma máxima grandiosa. A todos, sem excepção, é dada uma oportunidade de melhorar a sua vida, seja pela via do trabalho, seja pela do casamento, seja pela dos filhos.

Não interessa o meio, é o afecto que, manifestando-se segundo uma multiplicidade de aspectos, se impõe ao próprio indivíduo facultando-lhe os meios necessários à sua reforma interior.

Não temos outro processo. A nossa ignorância, pela voz da inveja, é a grande criadora da infelicidade própria e alheia, esquecendo-se de que todos somos filhos de Deus e todos merecemos igualmente a Sua atenção.

Porque é que o amor é um sentimento enganador? Porque se confunde amor com egoísmo. Porque o amor impede que o trabalho siga o seu ritmo normal. “Há que não misturar os sentimentos com a vida profissional,” diz-se como apelo à competência. Mais, ser competente é trabalhar sem amor, é ter a capacidade colossal de deixar o coração fora das questões laborais, criando uma realidade à parte.

Por outro lado, ser bom marido ou boa esposa significa não trazer para casa os problemas referentes ao exercício da profissão, principalmente quando estes significam dedicação e afecto. Amar a profissão, sim, mas só dentro do local de trabalho.

Dizem alguns que o amor rebaixa, quem ama age com insensatez, que a paixão ofusca o raciocínio. Parece, dizem, que o amor é um sentimento egoísta. Por exemplo, quando devemos alguma coisa a alguém, pagamos primeiro a quem não amamos é só depois a quem amamos. Há quem defenda, por isso, que o amado é um bode expiatório do egoísmo do amante, explorado e tido em menor conta, que o apaixonado, ele mesmo, não acredita no poder do amor, pois que amar é estar possuído de loucura incontrolável, de tal modo que a pessoa age frequentemente contra os seus próprios interesses.

Diz-se ainda que quem ama vive iludido, apático, é indisciplinado, deixa-se possuir por um único objectivo que é possuir o amado, aliás, faz a vida depender dessa posse. Para o amante, a razão de viver depende da felicidade que lhe possa advir do amado, e cai em infelicidade quando não é correspondido. Abandona tudo o que gosta em função do outro e deixa-se tomar pelos vícios quando não atinge o objectivo. Num quadro mais avançado, o amante suicida-se quando não consegue realizar o sonho de possuir o amado.

O amante torna-se crente ou agnóstico, “ateu” ou místico só para agradar ao amado. Muda os gostos, a personalidade. Deixa de frequentar os locais habituais, muda a aparência, cuida-se excessivamente, cultivando uma ridícula narcísica imagem do ego. Torna-se desleixado, porém, quando não consegue fazer com que o amado aprecie a sua imagem como ele deseja.

O amante mente com frequência se vir que tal lhe é importante para chegar ao amado, inventa situações, ilude, faz parecer ingénuo o indivíduo mais crítico, enegrece a boa reputação do mais honrado dos seres.

O apaixonado não tem qualquer noção do belo. Ele observa o horrível e, porque apaixonado, ama-o como uma coisa bela, a mais bela das coisas.

Também não sabe o que é o bem. Ama o mau que, cegamente, lhe parece o melhor dos bons, o melhor dos melhores. Sente-se feliz apenas porque experimenta o sentimento do amor, desconhecendo que está a cultivar o seu próprio fosso.

É em nome da ilusão amorosa que se são feitos os discursos oratórios, rezas, infindáveis pedidos a Deus e aos anjos. O amor, quando enfatizado, acarreta graves consequências para qualquer orador, bem como para a multidão que o ouve. Ele alude, pela força da insensatez, quer à passividade estúpida e adormecida, quer à agressividade. Por seu lado, na multidão, pelo excesso de admiração e zelo, todos vêem o líder como um deus, o ser melhor do mundo. A multidão sobreexcitada endeusa o líder encarando-o como a voz directa de um ser supremo.

Movido pelo sentimento do amor, o apaixonado toma decisões que põem em risco o bom funcionamento de um grupo ou colectividade, apenas porque age segundo moldes que vão contra os interesses de todos, bem como de si mesmo.

Em nosso mundo, não são poucos os exemplos de homens que se deixaram corromper nas mãos de mulheres manipuladoras, conduzindo-os à miséria, à subserviência, à escravidão.

As disputas entre famílias são oriundas do amor entre alguns dos seus membros que, temendo perder o afecto dos que amam, caluniam de modo a separar pessoas que, de outro modo, seriam muito amigas.

O amor torna perigosa a pessoa apaixonada, pois, qualquer pessoa, por mais pacífica, é capaz de se tornar violenta e agressiva, por vezes homicida.

O amor tem sentido na medida em que há ciúme, sentimento que prova a sua real existência. Quem ama quer o amado só para si, com todas as suas atenções, todos os seus mimos, todos os seus carinhos.

O amor age na insegurança, na desconfiança, não conhece quaisquer barreiras à sua concretização. O amor não olha a meios para atingir os seus fins, uma vez que tudo lhe serve para conseguir seus intentos.

Por todas estas razões e mais algumas, o amor tem sido a desgraça da humanidade que se vê perdida entre guerras, destruição em massa, violações, desrespeito pelos direitos próprios e alheios, confusão entre o que pode e o que deve ser feito.

O amor é a voz da insensatez, da desordem, rosto da malvadez e de tudo o que de mais ignóbil a humanidade tem produzido.

2. “O amor é um deus”

“(…)mas acontece que muitos dos nossos bens nascem da loucura inspirada pelos deuses.”(ibid., p.61).

É impossível confundir o egoísmo, ou qualquer sentimento enganador, com amor. Não é possível confundir um turbilhão de sentimentos loucos e desarrumados, perdidos na indefinição, com o sentimento mais livre e sincero. Não é possível ter a prisão como um lugar de liberdade, as trevas como luz, a mentira como verdade, o ódio como amor.

Na desordem espiritual em que se encontra, a humanidade não compreende que amar só depende de si, como acto de boa vontade, de abnegação, exigindo que cada um vá, por vezes, contra si próprio.

Mas isso não significa colisão com a ordem estabelecida. Pelo contrário, é impor à ordem a aparente das coisas, ou seja, a desordem, a ordem verdadeira do Espírito. Também não significa interesses opostos entre o singular e o particular. O eu e o todo só fazem sentido na convergência de interesses que são sempre comuns, partilhados.

Não podemos considerar amor tudo o que é pertença do mais puro egoísmo.

É o egoísmo que nos faz chamar amor ao jogo de interesses, manipulações, tráfico de influências, comportamentos, com aparência de positivos mas por dentro desfasados e mesquinhos.

É o egoísmo que, na sua forma mais comum de apresentação, o orgulho, faz as afeições mais puras parecerem um mal.

O amor tem a noção exacta da justa medida, da justiça e do bem. Tudo isso ele deseja porque sabe que a sua concretização depende da boa conduta.

O amor depende inteiramente da fé. É paciente, sabe esperar, sabe compreender, sabe lutar, sabe existir.

O amor não tem inimigos porque sabe que nem o ódio, nem o rancor, nem a humilhação fazem parte da sua existência, do seu mundo.

O amor não tem absurdos. Tudo lhe é lícito porque tudo o que é seu é bom, é fácil, é suave, é belo.

Pelo amor somos companheiros de um caminho longo que, de pesado, se torna leve; curvamos o inimigo ao bem e destruimos-lhe a sede de vingança.

O amor não altera o ego, pois ele é o verdadeiro estado, o real estado de todo o vivente.

O amor não se reduz à posse.

O amor não é um fosso, um mal, uma fonte de desentendimentos.

É o amor que nos traz a noção de imortalidade, do que permanece. Pelo amor somos contemplativos, estamos despertos para o que é verdadeiramente real.

O amante possui coragem e discernimento, quer da justiça quer da paz. Ele sabe que a concretização do amor consegue-se apenas na realização das virtudes.

O amante deseja ardentemente o bem estar do amado, deseja-o livre, livre para amar num viver todo amor. Não escraviza, não explora, nada teme, tudo deseja na medida em que for um bem, e só um bem.

O amante nunca poderá ser homicida ou suicida. Amar é vida.

O amante não muda os seus gostos ou tendências, nem a personalidade ou a postura espiritual. O amor é por si mesmo divino.

O amante não mente porque o amor exige a verdade. Sem verdade não há amor, e sem amor não há verdade.

O amante não é uma pessoa perigosa, violenta ou apática. O amante possui a verdadeira consciência da realidade. Por isso, não conhece o ciúme, é todo confiança, todo discernimento, todo compreensão.

Não existe a ilusão amorosa. No amor tudo é real, verdadeiro e claro.

Movida pelo amor, uma multidão age segundo os fins do bem com o discernimento da paz e da luz.

Quando a humanidade viver em amor teremos a Grande Fraternidade.

É este o binómio que alicerça a feitura deste trabalho. O amor é um sentimento enganador, cheio de imperfeições, versus o amor é um deus, o amor é perfeito. Desta forma, vamos estar em presença do jogo entre o lado humano e divino de um sentimento que por sua própria natureza não se define, não se encerra em nenhum preceito, por mais belo e puro que seja.

Só Deus é Amor.
(Continua)
Margarida Azevedo
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Referências Bibliográficas
PLATÃO,Fedro,Guimarães e Cª Editores,1981,Lisboa, pp.22-23,61.

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