A MUNDIVIVÊNCIA DOS NOSSOS AFECTOS
Nota Prévia: Os textos que vão seguir-se nas próximas semanas não apresentam uma análise espírita sobre o binómio afectividade/agressividade, mas o que a esse respeito uma espírita reflecte à luz da Doutrina.
INTRODUÇÃO I
Falar de afectividade significa embrenharmo-nos em uma infinidade de incoerências, viajarmos ao mais distante da nossa natureza, percorrermos uma mundivivência esquecida na teia tão perigosa quanto dolorosa da nossa existência, a qual ansiamos por desbravar e simultaneamente ocultar.
O vastíssimo universo mítico com que revestimos qualquer coisa sem nome, não mais que o desconhecido, faz-nos encarar a afectividade como uma estrutura do nosso imaginário, repleto de optimizações, sofrimentos, prazeres, fugas, receios. Por seu lado, se a reencarnação, com suas teorias complexas, e por vezes bastante insensivelmente dolorosas, nos ensina que viver é estar mergulhado em profundo esquecimento, então a nossa vida parece um mar de afectividades sucessivas drásticas, por vezes mais que inconsequentes, por demais dolorosas. Vivemos esquecidos de quem amámos, por quem lutámos e lutámos até à loucura, exaurindo fluxos de revolta ávida de liberdade que ecoaram no âmago profundo das infinitas famílias que repudiámos em nome desse grande amor.
Pela afectividade, a nossa ignorância é tão necessária quanto o amar, na trama de impulsos descontrolados, ou apenas diferentes e muito próprios de quem, em virtude do amar, a eles se entrega . Parece que a capacidade de amar é um estado afectivo supremo que depende de um sofrer, todo ele desconhecimento, olvido ou acção primária própria de Espíritos que ainda trilham os primitivos caminhos da vida. O não saber torna-se agradável felicidade, um alegre estado de idiotia, tornando excessivas e desastrosas todas as tentativas em percorrer um universo de sentidos explicativos. Por outras palavras, possuímos um espírito hyppie paradoxalmente identificado com um deus líder, amante irracional mimado, vindo de um lugar muito antigo e distante, que condena sob um código de uma única lei, a sua vontade suprema, e um único castigo, a pena capital, todos aqueles que ousem penetrar nos seus domínios ocultos.
Talvez por isso, os poucos que tiveram a coragem de afirmar que sabiam alguma coisa, mesmo tendo a nítida noção de que nada sabiam, no fundo, dos quês e porquês da razão de ser assim, foram os excluídos, os condenados, os excedentários de um mundo que prima pela agressividade porque sem afecto. Esse mundo identificado com a supremacia está permanentemente incomodado, não ido ao supremo afecto.
Mas eles também foram os que mais e melhor amaram. Fizeram da afectividade a maior das razões, a superlativa causa primária de tudo quanto existe, pondo à frente de todas as coisas o amargo coração humano. A natureza superior desse punhado de justos e felizes conduziu-os a uma felicidade sem precedentes, emprestando aos outros noções como a momentaneidade dos actos mais vis, a transitoriedade da hora mais dolorosa.
A afectividade é o estado geral da linguagem comum, é um discursar pelo imperativo valor sobreexcitado da Palavra, valor esse que a torna veículo de um dizer pelo bem e pela felicidade.
Que respostas temos para a nossa situação de problematicidade afectiva? Que respostas temos para este esquecimento de amar, de amor, de amantes? Que respostas para a complexidade, multiplicidade, para coisas como o vasto imaginário que nos torna vivos e fortes e dotados de sentido e empenhados e sedentos de um fora cá dentro? De onde esse desejo que nos conduz a um estado de insegurança, a um estar exposto a outro, ou outros, sem nos lembrarmos de nada? Sim, porque no fundo a razão é essa, expomo-nos permanentemente ao desconhecido não mais que esquecido, não mais que olvidado na torrente de reencarnações perdidas no universo por si próprio sem sentido (= fora dos nossos sentidos), no qual procuramos à viva força o sentido que tem que ser por nós e só por nós construído.
A afectividade é uma força, uma cadeia de alimentação criadora de um sentido para um universo que, sem ela, perde a sua noção, o seu cariz, a sua teatralidade. A afectividade, porque se identifica com outra noção de deidade, é uma personagem que representa o papel de quem inventa a fuga voraz ao sem sentido; ela cria a tonalidade, a realidade plástica indispensável a quem é artista em um mundo, que, sem nós, sem nós seria nada. Afinal de contas, a desobediência é um aparatoso cair em consciência, clivagem de uma estabilidade feita por outro, dizer não a uma estrutura que não satisfaz, a uma falsa noção de obediência.
O nosso afecto não suporta o já feito, a lei certa de tudo, o cosmos do construído e preparado para si mesmo. O afecto de que somos investidos vira-se contra quem o criou e pede-lhe que traga, sob a alçada da sua vontade de criança exigente, o brinquedo de luxo que os pais estão renitentes em ofertar. Nós pedimos a Deus o príncipe/princesa encantados do nosso inconsciente. Não sabemos se tem de ser assim, aquele ou aquela, nem tão pouco isso nos interessa. É aquele ser que, de repente, perde o seu cariz de Espírito em digressão, perde a sua aura de ser limitado, perde a coroa de espinhos do karma que paga nas lides da reencarnação, mas que, pelo muito amor de que é alvo, se transforma no ser mais puro, no mais desejado, no mais luminoso que pisa dolorosamente, contíguo ao nosso, o mundo do desejo. Ser amado é experimentar sensações de luz, transformar-se em deus, ser um qualquer daimon em trono de paraísos.
(continua)
Margarida Azevedo
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