sábado, abril 09, 2011

A MUNDIVIVÊNCIA DOS NOSSOS AFECTOS

(Continuação)

A história da nossa afectividade é, por excessos ou incúria, ignorância ou falta de autoestima, a história da nossa agressividade. Somos naturalmente agressivos, ou pelo menos propensos a actos pouco ou nada pacíficos. E isso é de tal modo importante que um dos valores centrais da nossa pós-modernidade é precisamente a agressividade. Levantar a voz a alguém porque reclama de uma injustiça ou de um mal entendido, conseguir um emprego estável, progredir profissionalmente, a própria forma de estar dentro de uma unidade escolar, quer para alunos, quer para professores e auxiliares de acção educativa, são alguns dos aspectos mais banais da agressividade.

O mundo tem criado espartilhos onde vencer é derrubar alguém, porque fraco, incompetente, ou simplesmente diferente ou regido por outros padrões culturais. A agressividade alimenta os desníveis, aumenta o controlo entre tudo o que é produzido, seja em uma fábrica ou empresa, seja na própria escola.

Por isso, há quem fale agressivamente de afectividade, há quem faça da agressão a razão forte, o meio de chegar mais longe, a energia milagrosa para atingir um alvo que se pretende traduzido em felicidade. Se passarmos em revista alguns dos artigos de oferta de emprego, nos jornais, deparamos com discursos verdadeiramente apelativos da agressividade:

“Se é ambicioso, se tem espírito de luta, se não é tímido, se é inteligente... Então você é a pessoa que procuramos.” É evidente que a ambição, o espírito de luta, a ausência de timidez, a inteligência, são as peças do xadrez da agressividade qual chave-mestra para o lugar, uma forma airosa e sub-reptícia de exigir que o candidato seja esperto. Se acrescermos o facto de que o emprego é para gente jovem, geralmente muito jovem, então o concorrente idoso, com trinta e poucos anos de idade, sente o peso da exclusão, da fraqueza e da inutilidade dentro de um mundo que se tornou apertado e onde parece estar a mais. Desta forma se constróem patologias em laboratório social, onde a exclusão é elemento-base do quimismo do potencial bombástico da agressão.

Assim, afecto e agressão misturam-se e indiferenciam-se, são indistintos. A agressão usa vulgarmente o afecto como ferramenta de fácil manuseamento para atingir os seus objectivos. O afecto passa à agressividade quando não consegue fazer-se corresponder. Afecto e agressão necessitam-se mutuamente para estabelecer o equilíbrio entre meios, objectivos e fins atingidos. E quando alguma coisa falha, habitualmente não perguntamos contas ao afecto, ninguém diz que perdeu uma oportunidade porque talvez tenha sido pouco afectuoso. É para a agressão que remetemos a nossa crítica feroz, ou seja, perdemos uma oportunidade porque não fomos suficientemente agressivos.

De facto, não sabemos como nem porquê, mas andamos à revelia da justiça. Exigimos demais da agressividade quando, muito justamente, seria à afectividade que deveríamos perguntar razões. Não nos lembramos, ou ainda não aprendemos que, perder oportunidades acontece quando precisamente algo não está bem ao nível do afecto. A falta de autoestima ou os excessos, como acima fizemos referência, são parte importante dos nossos falhanços. Talvez por isso, tenhamos tanta dificuldade em destrinçar afecto e agressão nesta luta de contrários em que, sabemo-lo, um vencerá o outro, definitivamente. Pelo menos é o que parece.

E apenas parece. O pensamento reencarnacionista diz que ainda não atingimos os níveis satisfatórios de afectividade, apenas satisfatórios. Diz esse pensamento que a afectividade, nas suas formas mais elevadas, ainda não faz parte do nosso mundo. É a agressividade que domina a humanidade porque perdida na confusão entre o que é Espírito e o que é Matéria. Isto significa que, na indefinição, não optamos por tomar uma decisão pacífica, escolhemos sempre a agressão em nome daquilo que pensamos ser amor por nós mesmos.

Porém, ela é escola, mola impulsionadora da força que a irá extinguir. Assim, à medida que o Espírito progride, a noção de afecto desoculta-se gradativamente até que um dia o Espírito será todo afecto, isto é, o seu agir será uma acção boa. Isso conseguir-se-á num para lá onde impera o Bem. Podemos dizer sem receios que a agressividade é uma forma distorcida de afecto, isto é, o afecto sem luz, tal como o para lá pode ser o aqui/agora, palco das lutas em que o bem forçosamente terá que se sobrepor.

Assim, na casa da afectividade moram os nossos desejos mais íntimos e profundos, as nossas vivências de passados remotos, antiguidade de um tempo perdido nos confins do esquecimento, arquivo na nossa memória.

Desta afectividade sobressaem pensamentos idílicos de amores puros que, segundo a teoria das reencarnações sucessivas, nunca existiram porque imerecidos, por vezes considerados mesmo com alguma relutância. Porém, é pelo imerecido que nos revelamos como somos, isto é, a representação que fazemos de um amor profundo, divinamente puro, o verdadeiro alvo que pretendemos.

Representamo-nos uma realidade por acontecer, ou parece que vivemos por antecipação, ou então agimos segundo uma representação do que não observámos. Há em nós um futuro latente mas que parece ter sido possuído em um outro mundo qualquer, isto é, parece que estamos programados para um futuro ao qual, por algum desarranjo ou desconexão mental, chamamos passado. Vamos a essa realidade imaginária procurar a razão de todas as coisas, o projecto do que pretendemos concretizar.
(Continua)
Referências bibliográficas
Platão, Fedro, Guimarães Editores, Lisboa, 1981 pag. 64, 244 d.
 
Margarida Azevedo

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